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Gripe Espanhola e Futebol no Brasil (Parte 4): Curitiba

A gripe espanhola e os esportes em Curitiba

Aspectos da arquibancada, provavelmente do Campo da Graciosa, em Curitiba, no Torneio de Encerramento de 1919. Foto/reprodução: Vida Sportiva, 26 abr 1919, p.5

Anteriormente, vimos como Recife, Rio de Janeiro e São Paulo foram afetados com a gripe espanhola e a realização dos esportes. Agora, é a vez de compreender como a mesma pandemia afetou a capital paranaense, Curitiba, nas práticas esportivas e de lazer na cidade.

Os domingos na capital paranaense costumavam ser agitados. Eram os jogos do campeonato da Associação Paranaense de Futebol e também as corridas de turfe, no Jockey Club Paranaense. Os jornais da época eram enfáticos em relatar que uma grande plateia comparecia a esses eventos. 

Consultei dois jornais de Curitiba, o Diário da Tarde e A República. No momento em que a gripe espanhola começou a aparecer em suas páginas, este jornais dedicavam suas principais manchetes para os desfechos da primeira guerra mundial e o conflito entre Chile e Peru. Era comum, também, uma seção de telégrafos de outros estados, em que se podia acompanhar a situação da capital federal, o Rio de Janeiro.

Foto/reprodução: Diário da Tarde, 21 out 1918, p.1

Quanto aos esportes, ambos os jornais costumavam anunciar as partidas de futebol que ocorreriam nos finais de semana. O jornal A República tinha a coluna Vida Sportiva. O Diário da Tarde tinha a Secção Sportiva. Além disso, na segunda-feira, tais colunas apresentavam os resultados das partidas realizadas no final de semana. 

A revista Vida Sportiva, do Rio de Janeiro, também fazia cobertura tímida dos esportes de outros estados. No dia 4 de maio de 1918, falava-se que “nos meios sportivos paranaenses é intensa a animação pelo campeonato de football de 1918” (p. 22). Entre os participantes do campeonato, estavam sete equipes, sendo o América-Paraná F. Club o defensor do título que havia conquistado no ano anterior. Além dele, também jogavam o Curytiba F. Club, o Britania F. Club, o Agua Verde F. Club, o Operario F. Club. Além desses, havia a Associação Athletica Academica (formada a partir de estudantes da Universidade do Paraná), com o diferencial de contar com alguns jogadores que haviam jogado em São Paulo.  

Um exemplo da cobertura da imprensa paranaense das partidas foi o jogo disputado entre o Água Verde contra o América, no dia 20 de outubro de 1918. Uma grande plateia foi torcer pelas equipes. Segundo o jornal Diário da Tarde, “a assistência foi numerosa e não cessou de torcer grandemente, acompanhando com visível interesse todas as peripécias do jogo” (21 out. 1918, p. 2).

Quanto ao turfe, foi dito que, devido ao mau tempo, as “Grandes Corridas” do dia 20 de outubro foram remarcadas para a semana seguinte, no dia 27 de outubro. Os anúncios da nova data apresentavam uma nota avisando que, “…para evitar agglomeração nos guichês do Prado” colocariam à disposição dos interessados na secretaria do Jockey (…) “bilhetes de ingresso a preço de costume” (Diário da Tarde, p. 3). Essa nota não está presente em corridas anteriores. Nem nos anúncios feitos no ano seguinte, o que demonstra, desde já, uma preocupação da sociedade com possíveis aglomerações para venda de bilhetes e agravamento da doença.

Foto/reprodução: Diário da Tarde, 26 out 1918, p.4

Na edição de 21 de outubro do jornal A República, foi noticiado que Curitiba ainda não registrava casos da doença. Porém, o próprio jornal demonstrava que a doença chegou em outras cidades do estado antes da capital. O fato do vírus de a gripe circular por cidades como Rio de Janeiro e São Paulo era demonstrada com preocupação pelos veículos de imprensa paranaenses. Estes jornais noticiavam diariamente a situação da Capital Federal por meio da seção de telégrafos.

O que viria a mudar a rotina das práticas esportivas na cidade se daria no dia 25 de outubro. Foi publicado um decreto, vinculado em ambos os jornais, em que a prefeitura da cidade pede que seja evitada qualquer tipo de aglomeração. Principalmente à noite, como era de costume aparecer nas recomendações. Suspendeu também o funcionamento de cinemas e outras formas de divertimento. Por estes termos, as práticas esportivas podem estar incluídas, mas não foram mencionadas diretamente.

O decreto n. 122 apontava “como medida preventiva contra a invasão dessa epidemia, suspender o funcionamento de cinemas e outras casas de diversões desta capital” (A República, 24 out. 1918, p.1).  

Uma curiosidade a se notar é que, mesmo com o decreto, as corridas do Jockey Club anunciadas para o dia 27 de outubro, alguns dias após a publicação do decreto, foram realizadas. As matérias que foram dedicadas a falar dos resultados das corridas no dia 28 de outubro estavam ilegíveis, com suas letras borradas, o que não permitiu uma conclusão de como essa realização foi possível mesmo estando sob vigência do decreto. 

Após essas corridas, há ausência de notícias de eventos esportivos por mais de dois meses. Logo, por essa fonte, não foi possível compreender como foi o último evento esportivo que se tem notícia em Curitiba antes da chegada da gripe na cidade.

A gripe chega em Curitiba

Foto/reprodução: A República, 01 nov 1918, p.1

Entre os meses de outubro, mês provável da chegada da gripe à cidade, e dezembro, mês em que se declarou que a gripe já não estava mais presente no estado do Paraná, muitas foram as discussões e diferentes visões sobre a pandemia. 

O jornal A República, pertencente ao Partido Republicano Paranaense, que governava o estado naquele período, apresentava um discurso de Estado sobre a pandemia. Publicava diariamente informações de como prevenir e como evitar o contágio. O mesmo jornal anunciava diariamente as ações do governo para combater a gripe.

Isto aconteceu, por exemplo, no dia da decisão de não permitir a romaria do dia de finados no dia 2 de novembro. Anunciava também o serviço da polícia sanitária, que ia nas casas. Além disso, expunha no jornal as condições das casas, dando o endereço mesmas e descrevendo sua condição de higiene.

Enquanto isso, no Diário da Tarde, não havia uma cobertura tão frequente sobre a epidemia. Entretanto, no dia 30 de outubro, cinco dias após a publicação do decreto que suspendia o funcionamento dos cinemas, foi escrita uma coluna que defendia a reabertura dos cinemas. Mesmo tendo em consideração que essa era uma medida de combate ao contágio da doença, a coluna defendia que “estamos em tempo de ver os cinemas funcionando. Assim, ao menos, sem que haja probabilidade de perigo, a cidade, durante a noite, voltaria à sua actividade normal. E que, presentemente, ao anoitecer, Coritiba mais se parece uma cidade de mortos do que com uma capital populosa” (Diário da Tarde, 30 out. 1918, p.1).

O argumento principal se baseava na premissa de que a capital paranaense ainda não apresentava um grande número de casos. Dizia ainda que a cidade de Curitiba tinha uma movimentação atípica sem seus cinemas abertos. Não obstante, percebe-se que frequentemente um cinema chamado “América Cine” anunciava nesse diário, o que demonstra uma defesa dos interesses dos anunciantes. 

Em um anúncio que o América Cine fez no Diário da Tarde no dia 31 de outubro, um dia após a publicação da coluna, o cinema se declarava como “o cinema mais bem ventilado da capital”. Afirmava ter desinfecções diárias no estabelecimento. O fato de ser bem arejado e desinfectado diariamente, no entanto, não seria o impeditivo de que o vírus da gripe circulasse entre os frequentadores dos cinemas, uma vez que a aglomeração de pessoas era o principal fator de contágio.

Foto/reprodução: Diário da Tarde, 31 out 1918, p.3

Outro ponto que faz questionar a eficácia do decreto n. 122 se deve ao fato desse cinema continuar publicizando atrações durante a vigência deste decreto, principalmente no mês de novembro, mês em que ocorreu o pico da doença na cidade. Isto pode indicar que tal decreto foi desrespeitado por esse estabelecimento.

Diversos argumentos advindos de empresários são comuns aos usados atualmente em relação às medidas de prevenção às pandemias. Principalmente tendo em vista que ações, como o isolamento social, prejudicavam os negócios dos empresários. A raiz desse discurso, no entanto, ignora a forma que os vírus se propagam, tanto em 1918, quanto em 2020. Além disso, havia falta de informações e desinformações da própria população, uma vez que os jornais da cidade sofriam censura e a disseminação de boatos era facilitada por conta disso. 

Algo presente em ambos os jornais é a presença de conselhos e avisos para a população de como combater a gripe. Em geral, se reforçavam pedidos com foco na higiene e na diminuição de circulação e aglomeração. Além disso, também se pedia que pessoas contaminadas e residentes da mesma casa de um contaminado evitassem sair às ruas. Outra medida também pedia que a população evitasse fazer exercícios físicos que causassem fadiga, o que seria um impeditivo de prática de esportes.

Foto/reprodução: A República, 21 out 1918, p. 1

A suspensão e a retomada dos esportes

Foto/reprodução: Diário da Tarde, 19 dez 1918, p.1

A vitória do Água Verde por 4 a 2 em cima do América, em matéria publicada no dia 21 de outubro, foram as últimas notícias sobre a realização de partidas de futebol na cidade de Curitiba até o mês de dezembro. Apenas no dia 14 de dezembro é informado que havia ocorrido uma paralisação no campeonato da Associação Desportiva Paranaense em decorrência de seus diretores haverem contraído a gripe.

No dia 19 de dezembro, é marcado um amistoso entre as equipes do Coritiba contra o Internacional para o dia 22 de dezembro. A reunião que determinou o amistoso também tratou do começo do campeonato da Associação Sportiva Paranaense, que foi marcado para o dia 5 de janeiro de 1919. Assim, após quase três meses sem notícias de que tenham ocorrido partidas de futebol, o Coritiba enfrentaria o Britania por um jogo oficial.

A final do campeonato da Associação Sportiva Paranaense de 1918 seria disputada já no ano seguinte, no dia 26 de janeiro de 1919, entre as equipes do Britania contra o Internacional. As duas equipes  estavam empatadas em pontos. A partida foi realizada no campo do Coritiba F. C., que, nas palavras do jornal A República, despertava em seu público um “vivo interesse” (29 jan 1919, p.2).  

Ambas as equipes jogaram o campeonato com um time fixo e o jornal A República destacava fortemente o rigor físico dos atletas. O Britania foi para a final desacreditado inclusive pela própria torcida, uma vez que dois de seus melhores jogadores foram suspensos por um caso de indisciplina. 

A descrença na equipe do Britania, no entanto, surpreendeu os mais pessimistas torcedores. A equipe aplicou uma goleada de 5 a 0 no Internacional, tendo feito 3 gols ainda no primeiro tempo. Segundo o jornal A República, a equipe do Internacional disputou apenas 20 minutos da partida, sendo uma equipe apática no restante dela, sendo, assim, o jogo caracterizado como um “verdadeiro bate-bola sem interesse” (29 jan 1919, p.2).

Jogadores do America e do Acadêmico juntos para a foto, após a vitória dos “americanos” por 4×0. Foi uma das últimas partidas antes da paralisação do campeonato paranaense. Foto/Reprodução: Vida Sportiva, 19 out 1918, p. 15

Com a goleada, o Britania foi declarado o campeão do campeonato da Associação Sportiva Paranaense de 1918, conquistando a taça Affonso Camargo. No domingo que sucedeu a data, seria disputado uma partida entre o campeão, Britania, contra um scratch montado pela Associação Paranaense, que seria como uma seleção do campeonato sem os jogadores do Britania. Assim observou-se que, após um longo período sem notícias sobre o futebol, o jornal A República voltou com suas reportagens, cobrindo a fase final do campeonato.

Foto/reprodução: A República, 29 jan 1919, p.2

As corridas no Jockey Club só voltariam a ser anunciadas em abril de 1919. Não se encontra o motivo certo da finalização das corridas em outubro. Mas a demora para recomeçar se deve pela troca de gestão do Jockey Club, como noticiado nos meses de fevereiro e março.

Sobre o futebol, no contexto de 1918, quase não encontrei nada sobre a situação da continuidade do certame. Não encontrei notícias diretas sobre a suspensão do campeonato. Assim, não se sabe quando e de que forma foi paralisado, só se tendo notícias na reunião que definiria seu retorno.

Já  em 2020, um dos maiores destaques da imprensa é justamente quanto a retomada dos campeonatos estaduais em todo o país. As competições estaduais foram interrompidas em março. O campeonato paranaense de 2020 foi interrompido no dia 16 de março, quando terminou a primeira fase da competição. Restam ainda as fases finais a serem disputadas.

Quanto ao retorno, Hélio Cury, presidente da Federação Paranaense de Futebol, afirmou ao Globoesporte (26 mai 2020) ter o desejo de que a competição retorne na segunda quinzena de junho. Isso caso o número de infectados não suba no Paraná, tendo em vista que o estado não é considerado um epicentro da doença no país.

A volta às competições, mesmo que com portões fechados para a torcida, envolve uma série de discussões de segurança sanitária e de saúde. Em 1918, sabe-se que o campeonato da Associação Sportiva Paranaense foi suspenso devido a infecção de diretores da associação. Mas não há evidências de que, após o retorno, houve alguma preocupação de segurança sanitária em relação aos atletas e aos torcedores.

Entretanto, a retomada do campeonato só foi realizada quando o pico da doença já havia passado e tendo poucas vítimas fatais, quando se acreditava que a gripe já havia sido extinta no estado do Paraná. Em 2020, enquanto a Organização Mundial da Saúde ainda afirma que os países sul-americanos não atingiram o pico de contágio do Covid-19, há uma pressão por parte dos clubes de futebol para a retomada dos campeonatos. Inclusive, tendo equipes que retornaram aos treinamentos coletivos, contrariando legislações estaduais e as recomendações da saúde pública.  

Em 1918, a ciência tinha poucas conclusões sobre a pandemia da gripe espanhola. Em 2020, cientistas conseguiram tirar diversas conclusões de como o Covid-19 é disseminado e seu comportamento. No surto de gripe espanhola, no entanto, a entidade esportiva paranaense teve o entendimento da importância de paralisar o campeonato. Enquanto isso, o discurso do espetáculo e da preocupação econômica ignora o que a ciência diz em 2020, muito motivado pela falta de empatia, pela ignorância, pela falta de ações do poder executivo brasileiro e pela eficiência da disseminação de notícias falsas, sustentadas por um forte discurso anti-ciência.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Eduardo Santos Costa

Graduado em História pela Universidade Federal de Santa Maria. Membro do Stadium - Grupo de Estudos de História do Esporte e das Práticas Lúdicas e pesquisador do período da ditadura civil-militar

Como citar

COSTA, Eduardo Santos. Gripe Espanhola e Futebol no Brasil (Parte 4): Curitiba. Ludopédio, São Paulo, v. 132, n. 18, 2020.
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