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Heróis improváveis, crimes e castigos

Fim de ano é sempre uma época de juntarmos os doze meses numa sacola de memórias e rever o que passou como um clipe bem editado, ou um “melhores momentos” de uma partida num intervalo entediante.

Podemos dizer que 2013 é um ano que começou sem muita expectativa e, aos poucos, se mostrou de transformações dentro e fora de campo. A começar pelos heróis improváveis no futebol brasileiro. Veja esses dois casos: Um jovem meia que não conseguia repetir suas atuações de quando estava nas categorias de base do Corinthians, e que estava “esquecido” em Curitiba. Um atacante desconhecido, vindo de um time do interior de São Paulo para substituir um craque mundial. Dois jogadores que ilustram a imprevisibilidade deste ano.

Éverton Ribeiro, menino do Coritiba, chegou ao Cruzeiro num pacote de contratações. De início, viu o arquirrival ser campeão estadual e da América. Cobrança de metade de Minas nas costas. Mas numa equipe de bom futebol, foi eleito o melhor jogador do Campeonato Brasileiro, num título soberano. Hernane, o Brocador, teve a missão difícil de substituir Ronaldinho, primeiro, e depois Vágner Love, no coração dos flamenguistas. Trombador, e acima de tudo, goleador. Foi o artilheiro de todo o ano. Ídolo rubro-negro.

Everton Ribeiro, meia do Cruzeiro. Foto: Juliana Flister – VIPCOMM.
Hernane, atacante do Flamengo. Foto: André Portugal – VIPCOMM.

 

É interessante analisar como a mídia construiu a imagem desses jogadores. É, em parte, pelo discurso adotado pela imprensa que eles se tornam heróis e vilões. Que gera identificação com os torcedores. Veja o caso de Seedorf. Craque incontestável que foi desconstruído ao longo do Brasileirão pela imprensa, em reportagens que o colocavam como um desagregador do elenco, o que quase teria custado a vaga na pré-Libertadores. Qual a imagem que fica do 10 botafoguense? A cara fechada criticando os colegas ou as lágrimas de conseguir vencer a sua saga em levar a equipe de volta para a competição continental?

Se parte do que entendemos como realidade vem da mídia, a relação discurso do torcedor x discurso da imprensa é uma relação direta. Outros casos foram marcantes neste ano:

– Em dezembro de 2012, os corinthianos comemoravam o Mundo. Em doze meses, os heróis foram dando lugar nas páginas de jornais e internet, além de programas de rádio e TV aos jogadores questionados pelas atitudes fora de campo e dentro dele também. Só o técnico Tite foi poupado na sua saída.

– Rogério Ceni, quarentão, do inferno tricolor ao quase céu. Aposenta, desaposenta e é um ídolo do São Paulo que passou por momentos complicados quando o time estava na Zona de Rebaixamento, quando perdeu pênaltis seguidos. Na mídia, a má campanha estava centrada na imagem desse atleta, referência da equipe.

– Até Neymar foi colocado em dúvida antes de conquistar a Copa das Confederações com a Seleção Brasileira. Roberto Dinamite, um dos maiores nomes da história do Vasco da Gama, prova um pouco do outro lado, é hoje um dos responsabilizados pela mídia e torcida pela queda do time para a Série B.

Roberto Dinamite, presidente do Vasco da Gama. Foto: Maurício Val – FOTOCOM.NET.

As reportagens esportivas, muitas delas em caráter opinativo, abrem precedentes para que alguns preceitos do jornalismo não sejam cumpridos, como ouvir os lados envolvidos. E aí, personagens são criados e desconstruídos em poucas linhas escritas.

Esse “julgamento” da imprensa não está apenas no Brasil. O ano complicado de Lionel Messi, envolto com contusões, agora ganha um contorno mais dramático no período pré-Copa: seu pai estaria envolvido em um esquema de amistosos com ligação com o tráfico de drogas. O jornal espanhol “El Mundo” traz a denúncia. A imagem de bom moço do argentino pode ser manchada por uma manchete.

Por se falar em “crime”, o ano termina nos tribunais. Infrações cometidas por Portuguesa e Flamengo mudariam os resultados em campo. Prato cheio para os meios de comunicação, que nessa época sabática não tem o que noticiar – como escreveu meu amigo João Paulo no Blog Comunicação, Esporte e Cultura.

Qualquer que seja a definição de quem cai, quem sobe, quem vai, quem fica, é difícil aceitar decisões fora de campo. Aprendemos que os heróis esportivos vêm em batalhas dentro dos gramados.

Nesse perde e ganha no STJD, a mídia já coloca o Fluminense como o principal vilão da história. Corre o risco dos torcedores tricolores ficarem como Raskólnikov, personagem de Dostoiévski, que não conseguiu viver sob a sombra de ter cometido um crime, perseguido pelo sentimento de culpa. E, por mais que o Flu não tenha motivos, já que não pode ser responsabilizado por algo que não cometeu, o time é parte interessada no caso.

O técnico Dorival Junior passa informações para os jogadores do Fluminense durante a última partida do Brasileirão de 2013 contra o Bahia. Foto: Ricardo Ayres – Photocamera.

 

Prefiro acompanhar os desenlaces dentro de campo. O ano ainda poderia terminar com mais um herói improvável: do fim de carreira boêmio no Rio, ao melhor de todos os tempos do Atlético, Ronaldinho poderia conquistar um título inédito para o futebol mineiro, mas no meio do caminho tinha o Raja Casablanca.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Chico Brinati

Professor de Jornalismo Esportivo do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Pós-doutor em Estudos do Lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Como jornalista, atuou como produtor e editor na TV Integração, afiliada Rede Globo em Juiz de Fora-MG. Foi repórter de campo e plantonista da Rádio Panorama FM. Escreveu a coluna "Caneladas & Canetadas" no jornal "JF Hoje". Autor do livro "Maracanazo e Mineiratzen: Imprensa e Representação da Seleção Brasileira nas Copas do Mundo de 1950 e 2014".

Como citar

BRINATI, Chico. Heróis improváveis, crimes e castigos. Ludopédio, São Paulo, v. 54, n. 9, 2013.
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