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Futebol Chileno(III): hinchadas nos anos 90

Fabio Perina 23 de outubro de 2020

No início dos anos 90, o futebol chileno viveu dentro de campo um auge inédito para os seus três clubes grandes: principalmente em 91 com o título da Libertadores para o Colo-Colo (até hoje o primeiro e único para um clube chileno), mas também em 93 com o vice da Libertadores pela Universidad Católica e em 94 com o fim de uma fila de duas décadas e meia da Universidad de Chile. Enquanto fora de campo o futebol no país vivia um momento ainda mais dinâmico com os primeiros anos das barras populares (Garra Blanca do Colo-Colo, Los de Abajo da la U, Los Cruzados da Católica, dentre outras) desde o final dos anos 80. Evidente que estimulado pela midiatização das conhecidas barras argentinas sobre as recém-criadas barras nos países andinos, mas principalmente por um motivo mais amplo que o futebol: a ausência de participação política nas ruas e nas instituições nos anos finais da ditadura de Pinochet canalizando para os estádios outra participação popular.

Una barra demasiado abajo” (La Tercera 8/4/91)

Violencia, un cáncer que mata al fútbol” (La Tercera 9/4/91)

Quien para a los vándalos” (Las Ultimas Noticias 8/3/94)

Vergonzoso: bochornosos incidentes Barra alba” (La Tercera 11/3/94)

Os fragmentos acima são algumas típicas manchetes sensacionalistas dos meios de comunicação que escancaram um desconhecimento dos barristas. Coletados na dissertação de Cifuentes e Molina (2000), esse estudo se inicia instigado por uma profunda curiosidade sobre esse novo sujeito social dividindo com estudantes, trabalhadores e comunistas os protestos de ruas de meados da década de 90. Mais curiosidade ainda, pois as constantes manifestações de torcedores costumam carecer de uma pauta dentro da política institucional que fosse facilmente identificável. A pesquisa de campo entre 1995 e 2000 foi bem além da participação dos barristas nos estádios nos 90 minutos. Também identificou que a transgressão cultural e social é uma constante em suas vidas mesmo fora do contexto do futebol. O envolvimento musical com hip hop e punk rock lhes permitiu uma contestação ao sistema que tanto os exclui.

Garra Blanca, barra brava do Colo Colo, em 2009. Foto: Wikipedia.

Quanto aos exageros de drogas e bebidas alcoólicas, os autores sustentam uma hipótese bem original por não serem exatamente uma fuga para outro mundo, como o senso comum tende a pensar, mas aderirem a outro papel nesse mesmo mundo de consumo no qual passam a ser aceitos entre seus semelhantes. Ou seja, geograficamente ainda muito próximo, porém culturalmente muito distantes. Uma forma de encontrar com as drogas o pertencimento que durante a ‘normalidade’ tanto lhes é negado. O que chama a atenção para os vários debates sociológicos e de outras humanidades naquela década sobre superdimensionar o possível papel do álcool em incidentes no futebol e principalmente o papel dos jovens no impasse de tomarem uma posição de conflito ou acomodação ao sistema.

Evidente que a marginalização social que os jovens barristas são relegados em suas vidas diárias acaba reforçada pela marginalização cultural. Pois como se sabe nos meios de comunicação se expressam os discursos das classes altas contra as classes populares. O que no futebol é intensificado pelo seu fator de aglomeração e de festa popular. Se até aquele momento a exclusão dos barristas pelos clubes e pelos governos ainda era modesta, o impacto da midiatização já era significativo nos debates. Sem que se espere alguma isenção dos meios de comunicação, pois afinal desde essa época são parte do negócio de transformar torcedores em consumidores. Grande parte do equívoco sobre a chamada “violência no futebol” tem a ver com dispositivos convencionais julgarem sem compreender as disputas simbólicas entre barristas em campos não convencionais. Há um dispositivo de expor a violência supostamente provocada por barras bravas; mas nada se menciona de uma serie de violências cotidianas como a educação desigual, abusos policiais, precariedade dos direitos sociais, privilégios elitistas, a falta de espaços de expressão aos jovens, repressão aos mapuches, etc.

Los de Abajo, barra brava de la Universidad de Chile, em 2018. Foto: Wikipedia.

“Nos enfrentamos a un tipo de participación juvenil con gran capacidad de adaptación y cambio frente a un médio social adverso, sin embargo esta participación no estaría insertada en los espacios llamados tradicionales como son los partidos políticos, los sindicatos y los centros juveniles, entre otros. Los intereses y motivaciones juveniles no poseen uma representación válida en la institucionalidad vigente, dicho de otra manera, la voluntad del Estado soberano no coincide com la voluntad deseante juvenil.”(CIFUENTES; MOLINA, 2000, p. 23).

Um aspecto também destacado nesse e em outros estudos é o da importância do acolhimento aos barristas pelos “piños”, ou seja, os grupos da barra principal que se ramificam pelas “poblaciones” (bairros). Existe uma espécie de amálgama quase indistinta entre os integrantes da barra e os moradores do bairro, dados os laços materiais como os símbolos que demarcam território ou os laços imateriais como a coesão de grupo mutuamente estimulada. É ali que os elementos identitários são mais sentidos quanto a um fortalecimento interno do próprio grupo que os capacite ao enfrentamento externo contra um rival. Evidente que, para um observador externo que não participe das disputas, elas soam como desordem ou até barbárie. O que para os autores torna o futebol um ambiente muito mais arrebatador aos jovens barristas do que as drogas e a música tanto pelo pertencimento mais visceral e mais duradouro ao “piño” como pela liberdade de serem protagonistas de um espetáculo que é o das “canchas”. Chamam a atenção que deveria preocupar o poder publico, ainda mais na mentalidade neoliberal que tanto elogia a ‘livre escolha’, que nenhuma outra vivência anime tanto os jovens e os faça tão protagonistas de algo quanto ir ao estádio.

Los Cruzados, barra brava de la Universidad Católica, em 2007. Foto: Wikipedia.

Abarca (2003) entende que a noção de aguante como “quanto pior, melhor” coloca à prova a capacidade de resistência tanto nas “canchas” como nas “poblaciones” e até mesmo restitui uma fé e devoção pré-modernos em tempos pós-modernos. Ou seja, os barristas fazem uso da violência entre si como um mecanismo compensatório para se fortalecerem para os obstáculos do dia a dia. Não é de surpreender que uma sociedade que segrega violentamente, receba mais violência como resposta. Embora a complexidade dos barristas seja dessa tão incompreensível ressignificação de transformarem a violência de negativa em positiva. Contrário ao senso comum, a violência não é a negação da linguagem, mas muitas vezes o último recurso quando todos os outros foram negados. Recasens (1999) vai além e defende até mesmo que somente pela ação dos barristas que o futebol profissional tem uma restituição temporária do sentido ancestral do Jogo.

Na época ainda era mais comum um saber acadêmico que se trata da distinção entre violência física e violência simbólica, diferente dos tempos atuais que se argumenta mais distinguindo violência direta de violência estrutural (SOTO LAGOS, 2016). Como conclusão, Cifuentes e Molina (2000) relatam o paradoxo pelo qual os barristas querem fazer parte do sistema, embora com seus próprios valores. Ou seja, eles têm a franqueza de saber que na recente democracia “por procuração” (como se fosse um contrato liberal), eles não querem ter sua inclusão também “por procuração”. Mas sim que ao menos a sociedade os respeite e compreenda quais as condições que os trouxeram até onde estão ao invés de simplesmente culpá-los por tudo. De lá para cá não somente os meios de comunicação, mas sobretudo governos e os próprios clubes ampliaram a distância e por consequência a incompreensão dos próprios barristas.

Resta-nos ao menos admitir que se entre a realidade mesma e nossa compreensão sobre ela ficam lacunas, entre a realidade e a intervenção punitiva ficam lacunas ainda maiores. Assim como maiores os prejuízos sociais que se vem colhendo diante dessa recente exclusão no/do futebol. Vide a desistência do poder público em prevenir as muitas determinações sociais que levam à violência em troca de um tratamento apenas corretivo. Vide também uma postura cínica dos clubes, pois em sua maioria convocam a participação dos torcedores apenas por simulacros de programas de marketing, porém basta um rumor de suposta violência para voltarem a querer segregar o que é um torcedor de verdade e o que não é. O que é sem dúvida um dos grandes obstáculos de se construir um futebol de fato mais popular.

Leituras de apoio

ABARCA, H. Adolescencia, masculinidad y violencia: el caso de los barristas del fútbol. Varones adolescentes: genero, identidades y sexualidad en América Latina, p. 85-96, 2003.

CIFUENTES, M.; MOLINA, J. (2000). La Garra Blanca. Entre la supervivencia y la transgresión. La otra cara de la participación juvenil (Santiago de Chile 1995-2000). Obtenido de Biblioteca Virtual CLACSO. Santiago de Chile: U. ARCIS. Universidad de Artes y Ciencias Sociales.

RECASENS, A. (1999). Diagnóstico antropológico de las barras bravas y de la violencia ligada al fútbol. Libros electrónicos, Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Chile.

SOTO LAGOS, R.¿Agresión o violencias en el futbol profesional? Análisis y perspectivas de la seguridad a partir de la psicologia social. In: VERGARA, O. F.; LAGOS, R. S. (Org.) ¿Quién raya la cancha?: visiones, tensiones y nuevas perspectivas en los estudios socioculturales del deporte en latinoamérica. 1. ed. Buenos Aires: CLACSO, 2016.


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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Futebol Chileno(III): hinchadas nos anos 90. Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 51, 2020.
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