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História das Copas do Mundo: Quando duas Alemanhas se enfrentaram

Copa Além da Copa 12 de outubro de 2022

Em 22 de junho de 1974, a cidade de Hamburgo foi palco daquele que talvez tenha sido o jogo mais político da história dos Mundiais. Por 90 minutos, as duas Alemanhas, Ocidental e Oriental, se reunificaram num campo de futebol em plena Guerra Fria.

O Estado alemão que havia causado dor e sofrimento ao mundo na Segunda Guerra havia ficado para trás, deixando um país dividido contra si próprio. Mais que duas seleções se enfrentando, seria um combate entre modelos econômicos e de sociedade, entre duas visões de mundo: a capitalista e a comunista. 

Este texto é mais um da série sobre momentos políticos em Copas do Mundo que o podcast Copa Além da Copa preparou para sua coluna no Ludopédio nos próximos meses.

Um país, três seleções

Ao final da guerra em 1945, EUA, Reino Unido, França e União Soviética ficaram responsáveis por administrar cada um, um pedaço da Alemanha. A zona francesa se tornaria o Protetorado de Sarre, sobre o qual já falamos aqui. Nas demais ocupações, a tensão se elevaria.

Com a queda de Hitler, já não havia mais consenso entre os Aliados. As zonas britânica e estadunidense logo se fundiriam, enquanto a zona soviética estava cada vez mais alinhada a Moscou, ao passo que se expandia a esfera de influência comunista no leste europeu. Para Londres e Washington, era preciso agir e recriar uma Alemanha forte, que servisse como contenção ao expansionismo soviético. 

Em 1949, dois países novos surgiriam: a República Federal da Alemanha, ou Alemanha Ocidental, e a República da Democrática da Alemanha, ou Alemanha Oriental. O futebol estava longe de ser uma prioridade nesse momento, até porque a Alemanha havia sido desfiliada da FIFA. Nenhum Estado alemão participaria da Copa de 1950.

Mas o banimento não seria para sempre. Primeiro, o Sarre criaria sua própria seleção, já em 1950. A federação alemã pré-guerra seria refundada na Alemanha Ocidental, sem a presença dos orientais. O governo oriental percebeu que ficaria isolado se não tivesse o seu time e, por isso, criou uma federação em 1951, sob protestos dos alemães ocidentais. Assim, aquela Alemanha que havia disputado as Copas do Mundo de 1934 e 1938 agora tinha virado três seleções diferentes.

Muro de Berlim
Localização do Muro de Berlim em frente ao Portão de Brandemburgo em 1961. Fonte: Wikipédia

Batendo bola contra o muro

Mesmo antes da criação de duas repúblicas novas, a bola já havia voltado a rolar pelas diferentes zonas de ocupação, e até mesmo um campeonato entre os vencedores de cada liga regional foi criado. No entanto, a ideia foi abandonada porque os times da região soviética, sob uma administração esportiva centralizada e politizada, fracassavam constantemente diante dos demais.

E o fracasso esportivo, claro, poderia ser simbólico para a população de um fracasso político, num mundo que agora se dividia entre capitalismo e comunismo. O triunfo da Alemanha Ocidental na Copa de 1954, por exemplo, foi comemorado por alemães orientais, mas apenas de forma discreta, para que não se confundisse com apoio ao regime político adversário.

Enquanto a população do Sarre votou para se integrar à Alemanha Ocidental em 1956, o lado oriental sofria com protestos e deserção de seus cidadãos, que fugiam seduzidos pela nova sociedade capitalista alemã do outro lado do país. Em 1961, as autoridades de Berlim Oriental decidiram construir um muro separando as duas metades da cidade, tornando literal a divisão do país. 

Para vender ao mundo a ideia de que a Alemanha Ocidental era a verdadeira Alemanha, as autoridades esportivas do país conseguiram, em 1966, os direitos para sediar as duas maiores competições que existem. As Olimpíadas seriam na cidade de Munique, em 1972, e o país como um todo receberia a Copa do Mundo de 1974.

Justo para aquela Copa, a despeito de seus vários insucessos nos gramados, a Alemanha Oriental conseguiu se classificar. No sorteio das chaves, em janeiro de 74, coube a um garotinho membro do coral de Berlim puxar uma bolinha que colocou a Alemanha Oriental na mesma chave que sua contraparte ocidental, que era cabeça de chave. “Ein kampf zwischen brüdern”, ou “uma briga entre irmãos”, como diria a imprensa alemã.

Um florescer tardio

O bloco soviético produziu grandes seleções de futebol enquanto existiu: União Soviética, Hungria, Iugoslávia, Tchecoslováquia e Polônia tiveram equipes de altíssimo nível e brilharam em Copas do Mundo, batendo na trave de um título repetidas vezes. Nos Jogos Olímpicos, por contornarem a regra do amadorismo, tais países tinham domínio completo.

Mas na Alemanha Oriental, a história era outra. 1974 foi apenas a primeira classificação do país para uma Copa do Mundo. Nas Eliminatórias, nem sequer aparecia como uma competidora relevante.

A situação começou a mudar na disputa por uma vaga no Mundial de 1970: os comunistas quase conseguiram roubar a classificação da Itália, com o jogo decisivo em Nápoles acontecendo com as duas seleções empatadas em pontos. Os italianos, como sabemos, seriam vice-campeões da Copa do Mundo disputada no México.

E em 1974, pouco antes da Copa do Mundo, o futebol da Alemanha Oriental, que enfim carimbara seu passaporte para um Mundial (mesmo que nos seus vizinhos/irmãos), deixou seu cartão de visitas para a Europa: o Magdeburg venceu o Milan por 2 a 0 em Roterdã e conquistou a Copa dos Vencedores de Copas, então a segunda competição de clubes mais importante do continente.

O esperado encontro

As Alemanhas caíram em um grupo com Chile e Austrália – grupo que poderia ser ainda mais politizado se a União Soviética não tivesse se recusado a enfrentar os chilenos, pela repescagem, no Estádio Nacional de Santiago que era usado como campo de tortura a céu aberto por Augusto Pinochet. Contamos essa história no podcast Copa Além da Copa #37.

O começo do Mundial foi positivo para todos os alemães: do lado Ocidental, vitória por 1 a 0 sobre o Chile, e para a equipe Oriental, triunfo por 2 a 0 contra a Austrália. Em seguida, os donos da casa atropelaram os australianos por 3 a 0, enquanto seus vizinhos ficaram no 1 a 1 com os chilenos.

Na época, as rodadas finais ainda não eram decididas com partidas simultâneas. Como Austrália e Chile não saíram do 0 a 0, as duas Alemanhas já entraram em campo classificadas. O duelo só teria valor na Copa do Mundo para decidir a liderança da chave, porém, o significado político era imensurável.

A importância do jogo era maior para os governos, que poderiam contar com um eventual triunfo para fazer uso político, do que para os jogadores, que viam os atletas do outro lado como irmãos – todos eram alemães. Um mesmo povo separado por um muro se encontrava no campo de futebol vestindo dois uniformes diferentes, mas ainda sendo um mesmo povo.

Na Alemanha Oriental, opositores do governo torceram para os ocidentais: acreditavam que a propaganda política que surgiria com a vitória do lado comunista seria enorme e, portanto, precisava ser evitada.

O público no Volksparkstadion, em Hamburgo, foi superior a 60 mil pessoas. A enorme maioria torcia para a dona da casa, a Alemanha Ocidental, com cerca de 1500 pessoas recebendo a permissão para viajaram da Alemanha Oriental para o país vizinho com o intuito de acompanhar a partida. Além de terem o mando de campo, os campeões mundiais de 1954 eram favoritos por possuírem os melhores jogadores.

Outro fator que parecia favorecer a seleção dona da casa era que seu treinador, Helmut Schön, era nascido em Dresden e fugira para o lado ocidental com sua família. O capitão Franz Beckenbauer até teria usado o “vamos jogar por Helmut” em seu discurso pré-jogo.

Quando o árbitro uruguaio Ramón Barreto Ruiz apitou o início da partida, gritos em uníssono de “Deutschland!” tomaram conta do estádio. Afinal, eles eram só uma forma de torcer para a Alemanha Ocidental ou eram a constatação de que, dentro de campo, havia só uma nação?

Como era esperado, a Alemanha Ocidental pressionou e dominou a maior parte da partida, criando as melhores chances. Mas a Alemanha Oriental se defendeu bem e conseguiu levar o placar zerado para o segundo tempo. Com o ímpeto dos anfitriões diminuindo, Jurgen Sparwasser, aos 32 minutos do segundo tempo, anotou o chocante gol da vitória dos visitantes. O final foi de uma pressão inócua dos futuros campeões mundiais, basicamente com faltas e escanteios sem grande perigo.

“Se um dia minha tumba só disser Hamburgo 1974, todos saberão que sou eu o enterrado ali”, declarou Sparwasser. A intensa festa política na Alemanha Oriental, mais tarde, seria minimizada pelos protagonistas da vitória. O goleiro Jurgen Croy falou muitos anos depois que “foi importante porque era a Copa do Mundo, e porque era Alemanha contra Alemanha. Claro que os políticos usaram o triunfo a seu favor, mas eles o fazem em qualquer lugar do planeta”.

Alemanha Oriental
Fonte: Wikipédia/Deutsches Bundesarchiv

Caminhos trocados

O favoritismo da Alemanha Ocidental na partida era grande, e a derrota foi uma surpresa. Mas perder foi, afinal, uma bênção. A chave do segundo colocado daquele grupo acabou sendo muito mais fácil no decorrer da competição – os donos da casa enfrentaram Suécia, Polônia e Iugoslávia na segunda fase, enquanto a Alemanha Oriental teve que encarar nada menos que Brasil, Argentina e a sensação Holanda.

Junto aos gigantes, a Alemanha Oriental conseguiu somar apenas um ponto. Comandada por Johan Cruyff, a Holanda avançou para encarar a Alemanha Ocidental na decisão, que passou por sua chave com grande tranquilidade. De virada, os alemães se tornariam bicampeões mundiais no dia 7 de julho de 1974.

A glória para a Alemanha Oriental ainda estava por vir: com a sua melhor geração futebolística, seguiram a escrita do domínio do bloco soviético nas Olimpíadas e conquistaram a inédita medalha de ouro em 1976.

Ainda assim, pouco sobrou da memória daquele jogo. Sparwasser, o grande herói, disse: “falaram que eu fui muito recompensado por aquele gol. Que eu ganhei um carro, que eu ganhei uma casa. Mas tudo isso era mentira”. Em 1988, pouco antes da queda do Muro de Berlim, o atacante fugiria para o lado ocidental.

Em 41 anos de Alemanha dividida, esse foi o único confronto futebolístico entre os dois lados. A Alemanha Oriental não voltaria a se classificar para uma Copa do Mundo. Por muito pouco, os dois lados não escreveram uma nova história em 1989, quando foram sorteadas no mesmo grupo das Eliminatórias para a Eurocopa de 1992. Mas não houve tempo – foi naquele ano que caiu o Muro de Berlim.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

COPA, Copa Além da. História das Copas do Mundo: Quando duas Alemanhas se enfrentaram. Ludopédio, São Paulo, v. 160, n. 12, 2022.
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