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Histórias das Copas do Mundo: o sheikh e a invasão de campo

Copa Além da Copa 12 de setembro de 2022

No dia 21 de junho de 1982, o estádio José Zorrilla, na cidade espanhola de Valladolid, foi palco de um dos momentos mais marcantes da história das Copas do Mundo: a invasão de campo de um cartola e membro da família real do Kuwait para reclamar de um gol dado contra o seu time. 

Aquela foi a primeira e até hoje última participação em Copas do Mundo por parte da pequena nação, localizada entre o Iraque e a Arábia Saudita. É um pouco cruel o fato de que o episódio tenha ofuscado sua heroica campanha nas Eliminatórias e, mais ainda, seu resultado expressivo na estreia diante da Tchecoslováquia, segurando uma grande seleção europeia num empate em 1 a 1.

Este texto é o primeiro de uma série sobre momentos políticos em Copas do Mundo que o podcast Copa Além da Copa preparou para sua coluna no Ludopédio nos próximos meses.

Kuwait
Fonte: reprodução

Um pouco de história

Situado numa das regiões mais áridas do planeta, o Kuwait é uma monarquia – para ser mais preciso, um emirado. As origens de seu Estado moderno remetem ao século XVIII, quando os Al Sabah, dinastia que ainda hoje comanda o país, fundaram uma cidade portuária exitosa, que viria a se transformar no que hoje é o Kuwait. O nome vem do diminutivo da palavra hindustâni “kut”, que quer dizer “porto”, e a região era importante por estar entre polos comerciais como Bagdá, a Índia e a Península Arábica.

Essa é uma das razões pelas quais, no século XIX, o Kuwait não chegou a fazer parte do Império Otomano, que se expandia. Sabedores da importância do emirado, os britânicos se aproximaram e impediram que ocorresse essa incorporação, transformando o país num protetorado. O Kuwait se tornaria independente na década de 60, quando vivia uma época de prosperidade, algo que começou a se desfazer com a guerra entre Irã e Iraque.

Em 1979, enquanto Saddam Hussein subia ao poder no Iraque, o Irã passava por uma revolução que o levaria a se tornar uma teocracia. Uma disputa fronteiriça entre as duas novas forças no poder fez com que eclodisse uma guerra que causaria 1 milhão de mortos e se estenderia pelos próximos anos. Enquanto isso, a seleção do Kuwait ia fazendo história em campo.

A era de ouro do futebol kuwaitiano

O status de protetorado britânico do qual os kuwaitianos gozavam durou até 1961, quando o país alcançou sua independência. O pós-guerra foi positivo para o Kuwait: suas reservas de petróleo garantiram uma época de prosperidade e crescimento acelerado para o país. E, como o futebol era o seu esporte mais popular, o investimento cresceu e começou a dar resultado em campo.

Em 1970, quando foi organizada a primeira Copa do Golfo entre os países da região, o Kuwait venceu o torneio. A conquista se repetiria muitas outras vezes nos anos seguintes, com os kuwaitianos acumulando 7 títulos nas 10 primeiras edições do torneio, que era então bienal. Até hoje, o país é o maior campeão do Golfo.

Com dinheiro e apoio estatal, a seleção do Kuwait ainda trouxe brasileiros campeões mundiais em 70 para comandarem sua equipe. Primeiro, Mário Jorge Lobo Zagallo, em 1976. Dois anos depois, um até então desconhecido Carlos Alberto Parreira, que comandou a seleção kuwaitiana em seu auge, ficando no cargo até 1983.

O país ainda sediou a Copa da Ásia de 1980, alcançando em casa sua maior glória, o título continental. No mesmo ano, nas Olimpíadas de Moscou, ainda fez frente a países mais tradicionais, como Colômbia e Nigéria, e chegou até as quartas de final – mas sucumbiu diante dos soviéticos jogando em casa.

Não havia tempo para lamentar. O ano de 1981 teria disputa de Eliminatórias para o Mundial, com apenas duas vagas para Ásia e Oceania. Se, fora de campo, a guerra entre Irã e Iraque se aprofundava e trazia um prenúncio de tempos difíceis na região, dentro dele, a seleção seguia enfileirando vitórias: embalada pela segurança do goleiro Ahmed Al-Tarabulsi, um libanês naturalizado, e pelos gols do atacante bigodudo Faisal Al-Dakhil, o Kuwait fez uma campanha histórica, com 9 vitórias, um empate e apenas uma derrota. Assim, chegou à Copa do Mundo.

A participação marcada pela invasão

O Kuwait era visto como possível saco de pancadas da Copa do Mundo de 1982: caiu em um grupo dificílimo, com Inglaterra, França e Tchecoslováquia. O destino da pequena nação do Golfo Pérsico parecia tenebroso. Mas a seleção era muito mais aguerrida e talentosa do que o planeta imaginava.

Na estreia, um empate por 1 a 1 com a Tchecoslováquia. Panenka, aquele, abriu o placar – cobrando pênalti, porém não ao seu estilo. A marcação fora muito duvidosa. Antes, Abdulaziz Al-Anberi perdera um dos gols mais inacreditáveis da história das Copas, uma chance claríssima de colocar o Kuwait na frente. Mas Al-Dakhil, o craque da equipe, deixou tudo igual no segundo tempo com um chutaço de fora da área. Todas as grandes oportunidades de desempatar foram da seleção do Golfo. Se a justiça fosse um componente na decisão de resultados de partidas de futebol, os kuwaitianos teriam saído de campo vencedores naquele dia.

A performance da seleção kuwaitiana na estreia deixou ótima impressão. Mas, a seguir, viriam França e Inglaterra. Derrotados pelos arquirrivais por 3 a 1 na primeira rodada, os franceses, comandados por Michel Platini, precisavam do resultado.

Não houve tantas chances de gol para o Kuwait como na estreia, mas a seleção se defendeu bem pelos primeiros trinta minutos. Quando Bernard Genghini abriu o placar, aos 31, a sensação clássica de que “a porteira se abriria” apareceu. Platini ampliou aos 43. Logo aos 3 do segundo tempo, Didier Six anotou o 3 a 0. Depois da surpresa contra a Tchecoslováquia, os kuwaitianos pareciam prestes a sofrer uma goleada histórica.

Só que a França diminuiu o ritmo e, aos 30, Abdullah Al-Buloushi conseguiu descontar. Talvez uma nova esperança? Talvez não. Rapidamente, Alain Giresse devolveu a diferença no placar para três gols. O quarto tento francês foi alvo de efusivos protestos dos atletas kuwaitianos.

A reclamação era que os jogadores de defesa teriam ouvido um apito e, portanto, parado na jogada. Mas não fora o árbitro que apitara, e sim alguém nas arquibancadas. Entra em cena, então, Fahad Al-Ahmed Al-Jaber Al-Sabah, príncipe do Kuwait e presidente da federação de futebol do país.

Príncipe Fahad, vestido com suas roupas tradicionais, invadiu o campo e correu em direção ao árbitro, imagem que ficou famosa e até foi parte da identidade visual do Copa Além da Copa por um longo período. Após ameaçar tirar sua seleção de campo e conversar efusivamente com o árbitro soviético Miroslav Stupar, conseguiu o que parecia improvável: a anulação do gol.

Os franceses ficaram indignados, mas logo a partida recomeçou: com a vantagem de 3 a 1, não havia muito o que protestar. Maxime Bossis ainda fecharia o placar com um quarto gol que, dessa vez, valeu.

Na última rodada, contra a já classificada Inglaterra, os kuwaitianos venderam caro uma derrota por 1 a 0. A França avançou em segundo lugar na chave. Logo após a Copa, o árbitro Miroslav Stupar foi banido do futebol internacional.

O trágico fim do príncipe

Como é comum ainda hoje com príncipes do Golfo Pérsico, Fahad Al-Ahmed Al-Jaber Al-Sabah acumulou diversos cargos esportivos. Foi o primeiro presidente da Federação Asiática de Handball, presidente do Conselho Olímpico Asiático, presidente da Federação de Basquete do Kuwait, membro do Comitê Olímpico Internacional e muito, muito mais.

Sua era à frente da Federação Kuwaitiana de Futebol durou até 1985. Os tempos mudavam, como veremos a seguir. A maré no pequeno país era outra. E só pioraria cada vez mais.

Cinco anos depois, em 1990, o Iraque invadiu o Kuwait. Seu pai, o emir, fugira do país. Mas o Príncipe Fahad era capitão do exército e ficou, em uma tentativa de defesa. Acabou morto aos 44 anos de idade, uma das primeiras vítimas da Guerra do Golfo, que duraria cinco meses, custaria dezenas de milhares de vidas e teria um papel importantíssimo no xadrez da geopolítica mundial.

Poucos meses antes da invasão e, consequentemente, de sua morte, o Príncipe Fahad recebera Michel Platini no Kuwait e pedira desculpas pelo seu comportamento na Copa do Mundo de 1982.

O futebol do Kuwait nunca mais voltou a brilhar

O mundo pouco falava em Catar, Bahrein e Emirados Árabes quando o Kuwait se impulsionou como a primeira força dentre os emirados do Golfo Pérsico. Para que se tenha uma ideia, a bolsa de valores de Souk Al-Manakh era o terceiro maior mercado financeiro do mundo, muito por causa do petróleo. Como já dissemos, foi essa abundância que permitiu o sucesso do futebol kuwaitiano em uma época que poucos países da Ásia tinham relevância futebolística.

Mas logo após a Copa do Mundo, em agosto de 1982, a bolsa quebrou. Toda a economia do país foi severamente afetada, gerando uma enorme recessão e precisando de resgate internacional. A crise afetou todos os países da região do Golfo Pérsico, que já vivia situação delicada com a guerra entre Irã e Iraque.

Não havia mais como investir no esporte. A seleção do Kuwait nem sequer passou da primeira fase das Eliminatórias da Ásia para as Copas do Mundo seguintes, de 1986 e 1990. Com o passar do tempo, transformou-se em uma mera figurante no contexto do futebol asiático.

O fundo do poço chegou em 2015: após breves suspensões em 2007 e 2008, a Federação Kuwaitiana de Futebol recebeu uma nova suspensão da FIFA, bem mais pesada, no dia 16 de agosto. O motivo era uma nova legislação relacionada aos esportes que permitia interferência direta do governo nas federações. Assim, o país perdeu o direito de sediar a Copa do Golfo de 2016, que passou para o Catar e, pior ainda, foi banida das Eliminatórias para a Copa do Mundo de 2018. 

Só em 7 de dezembro de 2017, mais de dois anos depois, o Kuwait voltou a ser um membro ativo da FIFA. Devido à inatividade, ressurgiu apenas na 189ª posição do ranking mundial, o que colocou ainda mais dificuldades para as performances em disputas internacionais.

Até mesmo quando conseguiu um recorde histórico, a seleção do Kuwait o viu durar pouco: no dia 14 de fevereiro de 2000, aplicou a maior goleada de um jogo oficial entre seleções da história, um 20 a 0 sobre o Butão. Mas, apenas um ano depois, a Austrália roubou o posto ao marcar 31 a 0 na Samoa Americana.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

COPA, Copa Além da. Histórias das Copas do Mundo: o sheikh e a invasão de campo. Ludopédio, São Paulo, v. 159, n. 14, 2022.
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