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Hora de contra-atacar a lesbofobia nos esportes!

Marina Carvalho, Wagner Xavier de Camargo 20 de setembro de 2020

Agosto foi o mês da visibilidade lésbica ou de mulheres que rejeitam a heteronormatividade e desenvolvem afetos e relações sexuais com outras mulheres. O dia 29 do mencionado mês foi escolhido como o de comemoração Nacional da Visibilidade Lésbica, definido no I Seminário Nacional de Lésbicas (hoje SENALESBI), em 1996. O registro é importante na exata medida que lembra que, para além do sexismo e do machismo que oprimem mulheres, a causa lésbica agrega sobre si outras discriminações, que desembocam em fobias e violências generalizadas contra essas mulheres, tanto na sociedade, como no esporte.

Mayara Faria, atleta brasileira de Crossfit e autoidentificada como lésbica, recentemente tomou a palavra e participou de uma conversa no Instagram a respeito da lesbofobia no meio esportivo, que deve ser combatida. Ela contou ter sofrido com sua aparência e mesmo com as vestes, os trejeitos e as formas corporais. Disse ter ouvido que deveria “colocar aplique no cabelo”, pois seu cabelo curto e corpo forte davam-lhe uma “feição masculinizada” e, por isso, ela era “pouco atraente” para os seguidores (homens, obviamente).

Mayara Faria. Foto: Reprodução.

Comentários como esses, sobre o visual das atletas, são inadmissíveis e caracterizam uma explícita – e inaceitável – manifestação de lesbofobia. Você sabe o que é lesbofobia? Lesbofobia é a aversão, a rejeição e ódio contra mulheres lésbicas, uma forma de violência sobre seus comportamentos homoeróticos e homoafetivos, originada por parte de pessoas cisgênero e heteronormativas. Tais preconceitos se manifestam em diversas ações violentas, muitas vezes físicas, e fazem parte do cotidiano de homens e grupos sociais contra mulheres lésbicas.

Portanto, a mulher lésbica sofre preconceito, ao menos, em duas vias: uma pelo fato de ser mulher e outra por ser homoafetiva. A lesbofobia, muitas vezes, pode aparecer de forma sutil, como quando a mulher se diz lésbica e familiares ou amigos/as veem sua orientação sexual como “uma fase que logo vai passar”, quando falam “falta conhecer um homem de verdade” ou, pior ainda, quando erotizam pornograficamente mulheres lésbicas.

Nas arenas esportivas, tais preconceitos instituídos (e, muitas vezes, ocultos nos discursos das federações, confederações e mesmo dos agentes), explicitam-se do mesmo modo. Quando a lesbofobia não aparece nua e crua por meio de xingamentos a atletas, técnicas ou juízas, ela está implícita nos julgamentos sobre as mulheres, taxadas, cotidiana e constantemente, de inferiores em relação aos homens, como se seus corpos fossem inferiores à eficiência masculina, tomada como modelo ideal a ser alcançado.

E as ações discriminatórias em relação às mulheres começam desde cedo no esporte. Afinal, é comum em escolas, mesmo professores e professoras com formação humanista, defenderem atividades sectárias, voltadas ou para meninos, ou para meninas. Em que pese as inúmeras pesquisas, no Brasil e no exterior, a realidade predominante ainda é de valores generificados, e tanto brincadeiras quanto brinquedos possuem componentes definitivamente sexistas: bonecas, bambolês, arcos e acessórios considerados “delicados” são para meninas-mulheres, e carros, bicicletas, bolas, ferramentas e outros objetos “viris”, são para meninos-homens.

Voltando ao caso de Mayara, é possível identificar uma problemática gritante: as mulheres não deveriam precisar adequar cabelos, vestimentas e comportamentos que performam a “feminilidade” aceita socialmente, simplesmente para agradarem os desejos de consumo de uma sociedade que é centrada no homem como parâmetro universal. Ou seja, nenhuma mulher, independentemente de sua classe, etnia, orientação sexual e de gênero deveria precisar se sujeitar aos ditames dessa perversão androcêntrica, pois todo e qualquer corpo tem direito de adquirir a forma que quiser, com mais ou menos músculos, ou com qualquer característica corporal ou subjetiva desejada.

E um alerta decorrente disso: quanto mais essa sociedade ocidental, meritocrática e machista, insistir em comparar mulheres a homens e exigir delas altas performances “femininas” (aspas nesse termo arbitrário), mais mulheres hipertrofiarão seus corpos em busca de uma masculinidade artificial para se sentirem aceitas e respeitadas.

Rafaela Silva, atleta medalhista de ouro no judô (na categoria de até 57 kg) nos Jogos Olímpicos Rio-2016, sofreu preconceito semelhante por ser mulher, lésbica e negra. Com o resultado dos Jogos, veio a “saída do armário” no quesito sexualidade. Apesar de estar com sua companheira desde 2013, Rafaela se assumiu lésbica apenas após o resultado olímpico. Ao não ter obtido êxito em Londres-2012, chegou a ser chamada de “macaco” – se já não fosse o racismo explícito, a comparação com o animal e a referência no masculino desrespeita-a triplamente. Ao rechaçar os comentários preconceituosos em sua conta no Twitter, acabou sendo taxada de agressiva e de comportamento antidesportivo.

Rafaela Silva. Foto: Pedro Ramos/rededoesporte.gov.br.

Há um ano, em agosto de 2019, ela conquistou ouro na mesma categoria, nos Jogos Pan-Americanos de Lima, no Peru. Somado ao feito da medalha de ouro no Mundial de Judô (no Rio de Janeiro, em 2013) e do resultado olímpico anteriormente mencionado, Rafaela é a única mulher brasileira – negra e lésbica – a ter atingido o mais alto lugar do pódio nas três mais importantes competições do sistema esportivo e na carreira de uma/um atleta.

A lesbofobia nos esportes nem sempre é tão evidente, mas não é, definitivamente, algo isolado e circunscrito a uma ou outra atleta. No futebol, por exemplo, mulheres atletas têm seu talento e competência questionados continuamente apenas pelo fato de serem mulheres. São consideradas “frágeis e inaptas” nas horas decisivas, quase nunca tendo seus talentos reconhecidos. E, mais grave: “mulher” é usada como categoria de xingamento, quando um homem cisgênero não apresenta bom desempenho em momentos importantes, no jogo de futebol ou no esporte, e é taxado de “mulherzinha”. Um exemplo de desvalorização grosseira no futebol é o da jogadora Marta, que já foi eleita seis vezes a melhor do mundo, porém, a visibilidade e o salário são incrivelmente menores do que os de Neymar Jr., mesmo ele nunca ter sido considerado o melhor em tal categoria. 

Portanto, a divisão binária entre corpos de homens e de mulheres nos ambientes institucionalizados (escolas, exército, esporte), e mesmo no restante da sociedade, não passa de uma posição conservadora e retrógrada, que insiste em criticar as diferenças sexuais e de gênero, e se omite de exaltar as semelhanças. Atribuem o status de verdade e coerência apenas aos corpos que seguem as regras inscritas no nascimento: meninos devem ter pênis e meninas devem ter vaginas; meninos devem usar azul e meninas devem usar rosa. Qualquer mudança nesse enquadramento é digno de repulsa, preconceito ou fobia. Ou ainda, se esses corpos quiserem assumir outras performances de gênero com seus pênis e vaginas, certamente também serão criticados e, muitas vezes, excluídos, ficando as margens dos que formam este sistema considerado cis/hetero/normativo.

Assim, como denunciou Mayara, Rafaela e muitas atletas no futebol, inúmeras outras mulheres lésbicas vivem opressões em arenas esportivas. É inadmissível que uma atleta, independentemente de sua performance ou resultado no esporte escolhido, seja julgada em consequência da orientação sexual que, inclusive, nada tem a ver com o rendimento desempenhado de seu corpo. A prática de atividades esportivas é um direito inalienável de cada pessoa, de qualquer orientação sexual, grupo étnico ou classe social.

Do ponto de vista de uma possível transformação nesse cenário, temos não apenas cada vez mais a participação de mulheres no mundo esportivo, como há real representatividade de lésbicas em maior número do que homens gays.  Isso não é fruto de uma “presença” cada vez mais numerosa, mas também de exposição da condição, dos debates em torno da pauta e da problematização de gênero em campos, quadras, piscinas e ginásios.

Por fim, os debates dessas questões se tornam cada vez mais indispensáveis não somente no esporte, mas na sociedade.  É de suma importância tratar as pessoas de forma igualitária, independente de sua identidade de gênero ou orientação sexual, pois quando se atribui julgamentos de valor desse sentido para corpos – valores sabidamente não “naturais” e sim discursivamente construídos no social – maiores são as desigualdades e injustiças instauradas. É urgente que mulheres e homens tenham direitos equitativos de se desenvolverem amplamente; que mulheres lésbicas e heterossexuais recebam o mesmo tratamento respeitoso nos esportes e acesso a salários igualitários (dentro de mesmas categorias), ostentem o mesmo poder de voz e adquiram lugares semelhantes de prestígio, nas arenas esportivas e nos espaços sociais.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marina Carvalho

Formada em Administração de Empresas em 2014. Atualmente estudante de Educação Física na Unicamp. 

Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CARVALHO, Marina; CAMARGO, Wagner Xavier de. Hora de contra-atacar a lesbofobia nos esportes!. Ludopédio, São Paulo, v. 135, n. 45, 2020.
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