Há pelo menos uma década que torcedores independentes veem formando grupos que lutam contra preconceitos e discriminações no mundo do futebol. Das chamadas “torcidas livres” ou “alternativas”, nos idos de 2012-2013, hoje temos também os coletivos LGBT, ou LGBTQIA+, numa sigla que continua crescendo.
Com o passar do tempo, no entanto, não são apenas letras que vão se avolumando, numa complexa engrenagem de maior presença e representatividade. As demandas igualmente mudaram e se diversificaram. Se a Palmeiras Livre ainda é uma torcida que luta contra a homofobia, o racismo e o machismo no futebol, outros coletivos detalham mais a causa – particularmente militando, especificamente, dentro do campo de gênero e sexualidade.
Impedir xingamentos e cânticos ofensivos desferidos em momentos decisivos de um jogo já não basta. É necessária uma postura permanente de vigia sobre um futebol de base cisgênera e heteronormativa, que privilegia a heterossexualidade obrigatória. E, por isso, importante focar na LGBTfobia, ou seja, numa violência disparada, de modo implícito ou explícito, verbal ou simbolicamente, contra uma pessoa que se identifica como lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual, trans(gênero) ou outros.
É assim que surgem coletivos torcedores, que desejam frequentar estádios, ter vínculos com clubes oficiais e exigir posicionamentos éticos dos mesmos em relação a esta temática. O reconhecimento de suas existências é um ato de visibilidade, que busca uma representatividade cada vez maior.
Um futebol plural, mais acessível e menos preconceituoso, mais inclusivo e menos excludente, mais LGBTQIA+ e menos heterossexual. Há vários coletivos surgidos nos últimos três anos, como as Marias de Minas (torcedores/as do Cruzeiro), a LGBTricolor (do Bahia), o Orgulho Rubro Negro (do Vitória), a Torcida Porcoíris (do Palmeiras), a Furacão LGBT (do Atlético Paranaense), a Fiel LGBT (do Corinthians).
Outros são muito recentes, como Vasco LGBTQ+ (do Vasco), o Vozão Pride (do Ceará Sporting Club), Frasqueira LGBTQ (do ABC do Rio Grande do Norte), Coral Pride (do Santa Cruz Futebol Club), Torcida LGBTQIA (do Botafogo), Leões com Orgulho (do Remo) e Fora da Toca (do América Futebol Clube de BH). E ainda alguns mais antigos, como o Papão Livre (do Paysandu) e Fla Gay (do Flamengo), que possuem entre cinco e sete anos de existência.
Curiosamente a Fla Gay nasceu como homenagem a um agrupamento torcedor flamenguista de mesmo nome, que existiu em fins dos anos 1970 e durou pouco tempo. Assim como é clássica a existência da Coligay, torcida do Grêmio de Porto Alegre, que teve uma história mais longa na mesma época e foi “adotada” como mascote do clube.
Mas os coletivos torcedores de hoje não têm quase nada a ver com tais manifestações torcedoras de trinta ou quarenta anos atrás. Se nos anos 1970-1980 a homossexualidade e a transgeneridade eram patologizadas e consideradas doenças mentais, atualmente estão fora desta classificação e são apenas formas distintas de orientação sexual e de identidade de gênero.
Se torcedores naqueles tempos viviam escondidos (nos armários da sexualidade) ou eram tratados como “aberrações”, nos dias atuais há uma multiplicidade de performatividades de gênero que invadem os espaços torcedores, que estão fora do armário e são de difícil classificação.
Recentemente, para agenciar as múltiplas pautas em questão e representar estes coletivos surgiram os Canarinhos LGBTQ+, um coletivo nacional de torcidas LGBTQIA+ de futebol, que agrega 19 torcidas LGBTQIA+, de 18 diferentes clubes, entre as séries A, B, C e D, de todas as regiões econômicas do Brasil.
A pauta prioritária dos Canarinhos LGBTQ+ é o combate à LGBTfobia generalizada e a busca pela ampla democratização dos espaços futebolísticos. No mês de setembro último, membros do coletivo estiveram na capital paulista na BFEXPO, a maior feira de futebol da América Latina, um importante local para a visibilidade de pautas minoritárias como esta.
Cada um dos coletivos torcedores listados anteriormente tem se manifestado junto aos clubes oficiais de várias formas. Desde atuações ligadas à conscientização de que as arquibancadas podem e devem ser mais plurais e inclusivas, até mediações de casos de homofobia junto ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD).
Assim, no mundo das redes sociais, os coletivos de torcidas LGBTQIA+ tem hora e vez. Basta buscarmos informação no Instagram (@canarinhoslgbtq+) ou mesmo em sites (como o www.torcidaslgbt.com.br) para denunciarmos agressões LGBTfóbicas, violências localizadas, crimes de todas as ordens em quaisquer espaços vinculados ao futebol.
É um processo sem volta: enquanto houver um recrudescimento do conservadorismo e de valores que excluem e matam pessoas LGBTQIA+, mais e mais coletivos torcedores desta natureza aparecerão. O futebol deve ser democrático e acessível para qualquer pessoa, independente de crenças, origem étnica, identidade de gênero ou orientação sexual.