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Hungria: a mãe esquecida do futebol – Parte III

Gabriel Said 27 de março de 2020

Esta é a terceira parte sobre a história da Hungria no futebol e sua influência no jogo moderno. Leia antes a primeira parte e a segunda.

Inauguração do Obelisco de Buenos Aires, em 1937. Foto: Wikipedia.

Foram duas grandes escolas de futebol na primeira metade do século XX: a escola danubiana e a rio-platense. São também as maiores filosofias táticas com características pré-modernas, sem o excesso de racionalização e a inclusão de lógicas fordistas e tayloristas. O futebol no Danúbio e no Rio da Prata era muito empírico, fluido, improvisado e inventivo, mas tomaram caminhos diferentes para desenvolver seus estilos: enquanto os argentinos e uruguaios romperam com o futebol inglês para criar o seu próprio estilo, sendo uma antítese do robusto futebol europeu, a Hungria usou o futebol britânico como base para reinventá-lo. Partindo daí, pode-se entender como o futebol rio-platense tenha se tornado mais criativo e ofensivo, com jogadores de imensa técnica enquanto os húngaros tinham várias competências coletivas visando a defesa.

Quando os húngaros chegaram ao Uruguai e à Argentina, ambos os países já eram um dos melhores países do mundo, o que faz a declaração do húngaro Imre Hirschl no início dos anos 1930 soar um pouco estranha:

“Eu não tenho segredos, não vou falar nada de extraordinário. Eu não ensino futebol, seria ridículo insinuar que ensino futebol onde é jogado o melhor futebol do mundo. Não se encontra jogadores como os argentinos em nenhum lugar do mundo. Os criollos têm potencial, eu só me aproveito dele”.

É estranho ver alguém falar que a Argentina jogava o melhor futebol com os melhores jogadores e falar em potencial, mas existia – e existe até hoje – uma sensação que a América deve à Europa, vinda de um pensamento colonialista que impossibilita as antigas colônias de reconhecerem seus méritos ao mesmo tempo que valoriza sua garra charrua, sua argentinidade ou brasilidade. A presença dos húngaros em Buenos Aires e Montevidéu fez os rio-platenses conhecerem o melhor do futebol europeu e com mais aceitação que um inglês teria.

Imre Hirschl tem um passado confuso, mas é sabido que saiu do norte da França e chegou ao porto de Santos em 1929. Existem relatos que indicam que o húngaro trabalhou brevemente no Palestra Itália (atual Palmeiras) como auxiliar do seu compatriota Jenő Medgyessy. No mesmo ano, o clube estadunidense New York Hakoah estava fazendo um tour pela América do Sul e, em São Paulo, Hirschl conseguiu se encontrar com Béla Guttmann, então jogador do time e convencê-lo a fazer o time contratá-lo como massagista durante o tour. Conseguiu assim chegar em Buenos Aires e ficar na cidade.

Imre Hirschl ou Emérico Hirschl, treinador húngaro. Foto: Wikipedia.

A história de Hirschl é nebulosa e em parte por sua culpa, pois exagerava em alguns fatos seus, mentia sobre realizações e alguns registros e documentos pessoais tinham informações confusas. Hirsch, mentiu na Argentina sobre seu passado como jogador e que treinava o time do Feréncvaros durante o tour do time no país. Conseguiu, assim, 18 meses após chegar na Argentina a ser o primeiro treinador estrangeiro desde 1912, época em que o futebol do país ainda era dominado por ingleses. O clube que o contratara era o Gimnasia y Esgrima La Plata.

Em 1933, o Gimnasia y Esgrima começou o campeonato com cinco vitórias seguidas e liderava o campeonato quando estava no meio da competição. O El Gráfico, jornal esportivo argentino mais influente da época, escreveu sobre a campanha do time:

“sem nunca antes ser um time de meio de tabela, que lutava bravamente contra os grandes, mas sempre terminava o campeonato com decepção. Como aconteceu o milagre? A verdade é quase inquestionável. ‘É o húngaro’, as pessoas falam… A mudança no Gimnasia é surpreendente”.

O futebol argentino estava na transição para o profissionalismo e muitos dos jogadores do Gimnasia eram transferidos para os grandes. A solução de Hirschl era promover jogadores da equipe reserva para a principal. A atitude era contestada, mas o treinador conseguia fazer dar certo. O treinador implantou ginástica sueca e americana no treinamento, além de misturas com atletismo e basquete e incentivou o uso pragmático de bolas longas para contra-atacar. Aquele time do Gimnasia ficou conhecido como El Expresso e o principal jogador era Pepe Minella, atacante de origem, mas que foi recuado para o meio de campo em uma emergência e nunca mais voltou ao ataque. Minella, Montañez e Miguens formaram “las tres Ms”, trio famoso no clube.

Faltando nove jogos no campeonato e dois pontos à frente na liderança, o Gimnasia jogou uma partida cheia de polêmicas contra o Boca Juniors fora de casa. Os mandantes estavam perdendo por 2 a 1 até o início do segundo tempo, quando um pênalti polêmico permitiu o empate e um gol controverso virou o jogo. Semanas mais tarde a arbitragem prejudicou novamente o time, dessa vez contra o San Lorenzo, que seria campeão mais tarde com três pontos a mais que o time de La Plata, justamente os três pontos “roubados”. Após o jogo contra o Boca a revista La Cancha escreveu sobre o árbitro:

Por tocar tan bien el pito                                   Por tocar tão bem o apito
Em aquella tarde loca                                       Naquela tarde louca
Lo nombraron a Angelito                                  O nomearam Anjinho
Bombero* voluntario de la Boca                       Bombero voluntário do Boca

*Bombero era a forma como os argentinos chamavam os árbitros que estariam favorecendo uma equipe.

O River Plate estava procurando alguém considerado especialista para treinar seu time. Tentaram primeiro o italiano Felipe Pascucci, que mais tarde trabalharia com Árpád Weisz no Bologna, e então convenceram Hirschl a deixar La Plata.

Capa do El Gráfico em 1947 com José Manuel Moreno na capa. Foto: Reprodução.

Assim como fez no Gimnasia, Hirschl se preocupava em promover jovens para o time principal, introduzir a função de meia-central recuado (assim como Erbstein) e garantir com que o time tivesse em ótimas condições físicas. Bernabé Ferreyra se estabeleceu como ídolo do clube e José Manuel “El Charro” Moreno (outra lenda argentina) foi promovido ao time principal. O River foi campeão da Copa Campeonato e da Copa de Oro em 1937 sem que “nenhum outro time conseguisse competir com seu preparo físico. A estamina mostrada nos dois tempos era muito melhor do que dos adversários. Eles tinham um plano tático claro no ataque e na defesa e essa era a harmonia vital para suas vitórias”, como publicou El Gráfico. O time marcou 106 gols em 34 jogos no campeonato desse ano, 49 gols em 17 jogos no título de 1936 e 105 gols em 34 jogos no vice-campeonato de 1938. Hirschl saiu após o 2º lugar e uma década mais tarde estaria no Uruguai.

O Nacional foi campeão de seis dos primeiros oito campeonatos uruguaios desde o início do profissionalismo, e o Peñarol estava tentando mudar o cenário. Em 1948 contrataram o inglês Randolph Galloway, que queria implantar o W-M no time. O inglês conseguiu 15 vitórias nos primeiros 19 jogos, mas jogadores e torcida não estavam satisfeitos com suas ideias. Acostumados com uma marcação por zona, o W-M estava desagradando os jogadores a ponto de promoverem uma greve contra o treinador, que terminou demitido.

Hirschl chegou ao Peñarol com entusiasmo: 1.500 pessoas foram ver o primeiro treino, no dia 8 de maio de 1949. Nesse dia, o húngaro reuniu 40 jogadores do time principal, reserva e júnior para fazer uma seletiva. O jovem Alcides Ghiggia chamou a atenção de Hirschl e foi promovido ao time principal, jogando como titular no lugar de jogadores com experiência de seleção.

Alcides Ghiggia com a camisa do Peñarol. Foto: Reprodução/Twitter.

Ghiggia se tornaria a revelação da escuadrilla de la muerte formada por ele, Hohberg, Míguez, Schiaffino e Vidal. O Peñarol ganhou de maneira invicta todas as três competições naquele ano. O maior impacto de Hirschl no clube pode ser na formação da La Maquina, mas existe uma disputa sobre isso. Onde é inegável a sua influência é na aparição de Ghiggia – que rapidamente chegaria à seleção uruguaia e faria o gol do título na final da Copa do Mundo de 1950, conhecida como Maracanazzo – na tática do Peñarol e no seu treinamento. Os jogadores estavam acostumados a dar voltas no campo e jogar partidas como treino e então começaram a fazer várias atividades com bola, treino em academia, os goleiros tinham treinamentos individuais e todos desenvolviam ambos os pés. “Eu não ficava entediado porque sabia que era bom para mim, então aceitava tudo que ele dizia”, falou Ghiggia no livro El gol del siglo, de Atilio Garrido e Joselo González.

O Peñarol jogava seu estilo de W-M de contra-ataque, coesão e sem excesso de individualismo, como era o estilo do MTK Budapeste pós 1925, mas provavelmente melhor: o sociólogo Rafael Bayce escreveu em 1970 para a 22ª edição de 100 años de fútbol o artigo ‘La evolución de los sistemas del juego’, onde diz que em 1951 o Peñarol (terceira e última temporada de Hirschl no clube) levou o W-M ao seu ápice com mais um título nacional invicto do clube. Schiaffino deu coro aos elogios de Ghiggia afirmando que “oitenta por cento do time era Hirschl”. No Maracanazzo, seis titulares celestes eram do Peñarol, com Obduilio Varela entre eles, sendo o jogador mais cerebral do time e jogando contra o Brasil mais recuado, como fazia com Hirschl no Peñarol.

Seleção uruguaia em campo antes da final de 1950. Ghiggia é o primeiro jogador agachado, da esquerda para a direita, e Varela é o primeiro em pé. Foto: Wikipedia.

Em janeiro de 1939, Argentina e Brasil jogariam uma série de quatro jogos pela Copa Roca. A primeira partida reforçou a hierarquia da época, com uma goleada argentina por 5 a 1. Na volta, o Brasil fez mudanças táticas inspiradas no Botafogo de Dori Kürschner e a partida terminou empatada em 2 a 2. Uma confusão nessa partida adiou as duas restantes em um ano, que terminaram em outro empate e mais uma goleada argentina. O Brasil na época ainda não era uma grande força no futebol, mas o futebol brasileiro já estava pra começar sua era dourada.

Em 1936, José Bastos Padilha, presidente do Flamengo contratou o trio Fausto dos Santos, Domingos da Guia e Leônidas da Silva. No ano seguinte Dori Kürschner (chamado de Kruschner no Brasil) foi contratado como treinador, com Flávio Costa como auxiliar e intérprete. Padilha escolheu Kürschner talvez por ver nos trabalhos de Jenő Medgyessy no Botafogo e Fluminense que o futebol centro-europeu tinha algo de especial.

Taticamente, Kürschner preferia o 2-3-5 até a mudança da regra do impedimento em 1925 e assim como grande parte dos húngaros, fazia uso do sistema. A diferença é que ele via o antigo meia central mais como um zagueiro com alguma habilidade técnica do que como um meio campista com mais responsabilidades defensivas. Fausto deveria jogar nessa posição, a menos valorada hierarquicamente. Fausto era meio campista, jogava aonde todos queriam jogar, mas Kürschner queria que ele jogasse na ‘pior’ posição. A princípio, o jogador se recusou, mas eventualmente cedeu.

Flamengo de Flávio Costa com Carlos Volante. Foto: TacticalPad.

No carioca de 1937, o Flamengo marcou 83 gols e venceu 15 dos 22 jogos, mas terminou em 2º, com o título indo para o maior rival; Fluminense. Em 1938, o rubro-negro estreou no campeonato com derrota perante o Vasco da Gama e Kürschner foi demitido. No mesmo ano, formaria parte da comissão brasileira na Copa do Mundo de 1938 como conselheiro do técnico Adhemar Pimenta. No ano seguinte, estaria no Botafogo sendo vice-campeão carioca, atrás do Flamengo de Flávio Costa. Kürschner deixou o Botafogo em 1940 e morreu no ano seguinte após contrair algum vírus, mas deixou uma ideia valiosa para Flávio Costa, mesmo que sempre estivesse ironizando o húngaro. Eventualmente, o brasileiro reconheceu os méritos de Kürschner e após um jogo do Flamengo em Budapeste contra o Ferencváros em 1954 de vitória rubro-negra por 5 a 0, Costa admite: “Nosso conhecimento sobre o quê é bom vem do seu professor, Dori Kürschner”.

A ideia de Costa era simples: inclinava o W-M para um dos lados, fazendo a formação ficar diagonal, em especial no meio de campo. Por mais que já fosse comum no W-M que um dos pontas recuasse mais e que em Portugal a ideia brasileira tivesse sido desconsiderada por ser supostamente apenas uma outra forma de W-M, já podemos perceber que as inovações estão em detalhes que podem passar despercebidos: o posicionamento e a função de um jogador pode representar estilos muito diferentes.

Fluminense nos anos 1950 tinha Telê Santana fazendo função semelhante a Zagallo na Seleção. Foto: TacticalPad.

Três jogadores podem representar a inovação de Flávio Costa: Carlos Volante, meio-campista argentino que jogou no Flamengo e originou o nome da sua posição no Brasil e posteriormente o primeiro treinador estrangeiro a ser campeão brasileiro como treinador (com o Bahia em 1959), Telê Santana e Zagallo. As adaptações brasileiras ao W-M geraram o W-M diagonal, que virou o 4-2-4 usado nas Copas de 58 e 62, e dá pra traçar uma continuidade evolutiva ao 4-3-3 de 1970 (essa tática porém, já era usada nos Países Baixos pelo Feyernoord e Ajax). Durante esses doze anos, o Brasil foi a melhor seleção do mundo tecnicamente, a mais avançada taticamente e conseguiu traduzir isso em títulos mundiais, algo não tão comum de acontecer, como mostra as derrotas da Itália em 94, Países Baixos em 74, a ausência de Copas na década de 40 impediu a Argentina de fazer e como veremos na próxima parte, a Hungria de 54 também não conseguiu.

Brasil de 1958 com Vicente Feola e o seu 4-2-4. Foto: TacticalPad.
Brasil da Copa do Mundo de 1970 no 4-3-3 de Zagallo. Foto: TacticalPad.
Garrincha prepara o drible contra o marcador em partida contra a União Soviética, na Copa de 1958. Foto: Reprodução/Twitter.

Aqui devem ser feitas algumas ressalvas para entender um pouco melhor como os húngaros tiveram parte do seu sucesso na América do Sul. Na Argentina, quando os clubes procuravam um especialista, ele costumava ser um centro-europeu, apesar de Argentina e Uruguai serem as maiores forças futebolísticas dos anos 20 a 40. No Brasil, o negro e ex-marinheiro Gentil Cardoso assistiu ao Arsenal de Herbert Chapman e já falava em jogar com três defensores antes de Kürschner chegar ao Flamengo. Flávio Costa falou sobre Cardoso: “Quando Kürschner chegou ao Brasil, Cardoso já falava do W-M mas nunca teve o prestígio para aplicá-lo. Kürschner que conseguiu implantar o futebol sistema”. De acordo com Richard Giulianotti, em Sociologia do Futebol, a seleção paraguaia começou a jogar com 3 defensores desde 1926 e adotou o 4-2-4 em 1953, cinco anos antes do Brasil, mas como diz Gilles Deleuze em Negotiations (1995), “o esporte mostra incrível ingratidão com os inventores”.

Abaixo, a evolução do 2-3-5 para Il Sistema, ao W-M Diagonal, seguido do 4-2-4 e 4-3-3 brasileiros de 1958 e 1970, respectivamente.

Importante lembrar que esta série é feita a partir do livro The names heard long ago, de Jonathan Wilson. O livro é muito mais rico em detalhes e de histórias e é uma super-recomendação aos interessados. Wilson também escreveu um livro sobre a história da Argentina sob a perspectiva do futebol, com tradução para o espanhol, chamado Angeles con caras sucias: la historia definitiva del fútbol argentino.

Leia a parte IV aqui.

 

ERRATA: Originalmente havia sido publicado que Béla Guttmann estava em um tour pela América do Sul pelo clube húngaro Feréncvaros. Apesar dos húngaros estarem em tour pela região na época de encontro entre Guttmann e Hirschl, Béla estava jogando nos Estados Unidos na época.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gabriel Said

Formado em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestrando em Antropologia pela UFF e aluno da Associação de Treinadores do Futebol Argentino (ATFA). Participa do grupo de estudos de Futebol e Cultura, do LEME/UERJ; do grupo de Futebol e Humanidades da Universidade do Futebol e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte e Sociedade (NEPESS), da UFF. Além de escrever a coluna Danúbio Azul no Ludopédio, também escreve para a Universidade do Futebol. E-mail: [email protected]

Como citar

SAID, Gabriel. Hungria: a mãe esquecida do futebol – Parte III. Ludopédio, São Paulo, v. 129, n. 33, 2020.
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