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Identidade corporativa: uma nova preocupação para estudiosos do esporte

Daniel Vinicius Ferreira 24 de janeiro de 2018
Valores que orientam o estilo de jogo do FC Barcelona, e refletem a identidade corporativa do clube. Fonte: museu do clube (foto do autor)
Valores que orientam o estilo de jogo do FC Barcelona, e refletem a identidade corporativa do clube.
Fonte: museu do clube (foto do autor)

Se há um tema, nas ciências humanas, que levanta discussões acaloradas (e até apaixonadas) é o tema das identidades. E não é por acaso: identidade é um tema o qual se pode abordar por diversos ângulos. Desde a história, antropologia, sociologia, psicanálise até por saberes (muitas vezes) considerados não restritos ao campo das ciências humanas: a neurociência, a administração, o marketing, entre outros. Tal condição revela a complexidade da categoria identidade, mas também disputas ideológicas e de legitimidade do trato científico sobre ela, sugerindo uma abordagem prudente quando se trabalha com o conceito. Na minha concepção, a simples e recorrente dificuldade de uma resposta objetiva a pergunta, “o que é identidade social/individual?” ou “afinal qual o conjunto de elementos define a identidade?” já demonstra a dimensão do problema.

Na história do esporte são recorrentes os estudos que tratam de identidade. No Brasil, o estudo do esporte interligado ao tema da identidade nacional se tornou recorrente, ainda que outras temáticas ou abordagens como identidade de gênero, identidade étnica, identidade regional, identidade de classe, identidade clubística, etc., apareçam.

Um tema, entretanto, deve começar a cada vez mais de mostrar presente entre aqueles que se dedicam ao estudo das identidades no futebol. Trata-se da “identidade corporativa” dos clubes, fenômeno interligado ao processo de globalização e industrialização do deporto, a partir da segunda metade do século XX. Antes de abordar o que seria a “identidade corporativa” de um clube, abro um parênteses:

Num quadro geral, a leitura tradicional no âmbito dos clubes, no senso comum (e às vezes até em alguns estudos acadêmicos), geralmente abordam a identidade como um fenômeno unívoco, que expressa sensibilidades de um grupo coeso, e estático. Assim se diz, por exemplo: Glasgow Rangers se opõe ao Celtic Football Club, como o protestantismo versus o catolicismo. Pela mesma leitura, o Boca Juniors tem uma identidade de “clube do povo”, enquanto o River Plate seria o “clube da elite”. E nessa mesma lógica, o FC Barcelona seria a Catalunha, o St.Pauli um clube progressista, o Santos o “futebol arte”, o Grêmio um clube “aguerrido e imortal” (embora os colorados vão fazer outra leitura de “quem são” os gremistas, e isso é um elemento que não deve ser desconsiderado quando falamos de identidade).

Obviamente que essas simbologias existem, e refletem percepções, sentimentos, condições, incrustados em núcleos sociais associados historicamente, e de forma concreta, com esses clubes. Mas o que eu gostaria de sublinhar é que, na minha percepção de identidade de um clube de futebol, esses símbolos representam mais a consagração de um “acordo” ou de um “arranjo simbólico”, do que uma expressão que totaliza aquela comunidade em termos de sensibilidades e de forma atemporal: ou seja, identidade é um fenômeno com uma história, e um fenômeno que não expressa uma hegemonia de pensamento em uma comunidade futebolística. Um clube de futebol é uma comunidade heterogênea, ainda que ofereça hegemonia em certos traços identitários: a “grande identidade” da comunidade se consagra em meio a subgrupos e expressões menores do que “é o clube” ou o que “deve ser”, por vezes conflitantes. Por exemplo, a identidade tática de uma equipe (que se afirma como técnica), pode conflitar com a identidade do que a torcida quer para o clube, a saber: de ser um time aguerrido, que distribua carrinhos desnecessários ao longo de uma contenda. E ainda outro exemplo: uma facção organizada que reflete valores (de catarse física, visual e de cultura popular) que uma determinada diretoria não quer exibir para sua agremiação e, portanto, os afasta do clube. Entre tantos outros exemplos que seriam possíveis, cumpre pontuar que é exatamente esse o gancho que me sirvo para abordar a questão da identidade corporativa.

Identidade corporativa é uma ideia que ascende juntamente com a globalização e o paradigma do “clube empresa”, a partir das décadas 1980 e 1990 (ainda que no Brasil, o paradigma ainda esteja engatinhando). A partir desse momento a identidade do clube, um fenômeno complexo que se apresentou historicamente como sendo de uma consagração social identitária, uma expressão social, de uma comunidade heterogênea, se torna tema de preocupação dos círculos diretivos de um clube, cada vez mais apartados da sua comunidade de origem. A identidade corporativa, ou a marca (também se usa o conceito de experiência) de um clube, passa a ser planejada e pensada dentro dos departamentos técnicos e de frias estratégias de marketing da instituição, e deve ser explorada em todos os pontos de contato com o público, reativando uma mesma ideia matriz ou uma mesma história inspiradora identitária (veja o vídeo abaixo)

https://www.youtube.com/watch?v=STm6zMCk6rM

Isso não significa a constituição de um monopólio da identidade do clube pelas diretivas, ou que elas reformulem a identidade corporativa sem levar em consideração os simbologias identitárias tradicionais do clube. Mas certamente as diretivas passam a dispor de um papel de destaque na narrativa identitária, já que possuem os meios materiais e legais mais efetivos para promovê-la em relação a outros grupos que conformam o clube, como os torcedores, por exemplo.  Isso pode significar embates, em muito casos, entre núcleos torcedores do clube e a diretiva “profissional” sobre o que “é” ou “deve ser” o clube.

O objetivo central da construção da identidade corporativa é diferenciar-se dos concorrentes (afirmar a si e negar os outros) e posicionar-se bem no mercado, para envolver mais o torcedor tradicional (aquele que ainda se considera membro do clube) e despertar a simpatia dos torcedores mais alheios, aqueles que se tornarão fans do clube: que vão consumir seus produtos numa ligação mais efêmera e fria. Entretanto, mais do que isso, a identidade do clube deve ser positiva não apenas entre seus torcedores, mas símbolizar ds valores da empresa (deve inspirar os funcionários internamente) e também ser atrativa em termos de imagem (para repercutir em receitas) para os novos grupos de interesse que passam a orbitar no entorno do clube, os chamados stakeholders: TVs, telespectadores, patrocinadores, atletas (com qual imagem eles querem ser associados), outros clubes de quem a agremiação queira comprar atletas (clubes menores) ou para quem queira vendê-los (por exemplo, grandes clubes europeus).

Para exemplificar essa questão, pode-se citar na Espanha o Real Madrid, o qual passou a investir (a partir da gestão de Florentino Perez, em 2000) na imagem corporativa, pensada já num impacto mundial, de um “clube galáctico”, ou clube de estrelas. Isto de certa forma fazia uma ponte com o seu passado ligado a ideia de clube “real” e “nobre” representante do Estado espanhol. É nesse contexto que pode ser entendido a prioridade do clube na contratação de jogadores celebridades como David Beckham ou Cristiano Ronaldo, por exemplo. É importante dizer que a autoafirmação do Real Madrid como um clube “dos sonhos” (pra torcer ou jogar), não impede que o clube fomente elementos tradicionais da cultura futebolística como também parte do universo de pertencimento madridista: a luta, a busca de glórias, a entrega, a dor da derrota, a lealdade incondicional. Acompanhe o seguinte spot, apresentado no museu do clube:

https://www.youtube.com/watch?v=1KpQzk3WHyE

Por outro lado, o rival FC Barcelona passou a investir na imagem corporativa de “Més que um Club”, a partir da gestão de Joan Laporta (2003), que lhe permitia abrir-se ao mundo ainda associado a causas sociais e a identidade catalã: se no passado o “Més que um Club” significava a luta pela democracia, o anti-franquismo e a liberdade catalã, no mundo global passou a significar a luta por um mundo melhor, a vitória (não só pela vitória) com valores nobres, como o jogo bonito e democrático (desenvolvido em La Masia). Outros elementos foram incorporados como a poli esportividade, a manutenção do preço de sócios a um valor baixo (para os padrões europeus), a propriedade do clube nas mãos dos sócios (e não de acionistas), o cosmopolitismo e a associação com a Unicef. Confira o seguinte spot de propaganda do clube:

nosotros nos creíamos que Barça es más que un club. Esto no es un slogan. Esto es una declaración de principios. Y la manera de demonstrar; [Jo] quería encontrar la solución, para mi casi perfecta ¿entiendes? Y porque la perfección no existe: tú tiendes a la perfección, igual tiendes la felicidad… pero buscábamos la excelencia en esto. Y era un tema que ya no era institucional, era un tema de sentimiento, era un tema de como transmitíamos el sentimiento del Barça al mundo ¿no?  Y me ocurrió Unicef…Barça tiene futuro…Barça tiene futuro si vincula a los niños…. Nuestra decisión fue un poco la reflexión…[esta fue la ] secuencia lógica de nuestra decisión.

Joan Laporta, ex presidente do FC Barcelona (2003-2010) – entrevista concedida ao autor em julho de 2017, sobre a reformulação da identidade corporativa do clube.

Vale a pena trazer, ainda, a imagem corporativa construída pelo Espanyol, o rival do FC Barcelona na Catalunha. A diretivas mais recentes do clube, passaram a adotar com frequência os motes “La força d’un sentiment” e “Meravellosa minoria”. Em síntese, o primeiro mote queria dizer (também numa alusão dissimulada ao clube blaugrana) que aficionar pelo Espanyol implicava ter um sentimento de paixão maior que a dimensão industrial do rival. O segundo mote, busca promover a identidade espanyolista como um atitude “rock and roll” de rebeldia, peculiaridade, riqueza subjetiva, pegando carona (de certa forma) ao fenômeno progressista que se verifica na sociedade ocidental desde maio de 1968. Os seguintes spot promovido pelo clube, pode ilustrar melhor uma dessas ideias:

No Brasil, alguns clubes vem trabalhando há algum tempo já com a estratégia da marca e identidade corporativa. Além dos referidos casos do Santos FC  e sua busca de associação com o “futebol arte” , o Grêmio e sua associação com a imagem de luta e “imortalidade”, o Corinthians vem trabalhando com a ideia de “clube do povo”, e o Atlético Paranaense com a imagem de vanguarda em inovação e modernidade no futebol, cujo estádio se tornou um ícone nessa narrativa (neste caso, essa imagem tende a se reduzir a Curitiba, porque após a construção das novas Arenas para a realização da Copa do Mundo em várias parte do Brasil, o estádio do clube como emblema da modernidade já não configura mais como um diferencial).

Fica assim destacado, portanto, uma temática que deve cada vez mais aparecer nos estudos sobre identidade no futebol, e representar mais um desafio de análise por aqueles que se debruçam em problematizar o desporto.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Daniel Vinicius Ferreira

Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná e Universitat Autònoma de Barcelona (doutorado sanduíche). Estuda a questão das identidades, pertencimentos e a globalização do futebol.

Como citar

FERREIRA, Daniel Vinicius. Identidade corporativa: uma nova preocupação para estudiosos do esporte. Ludopédio, São Paulo, v. 103, n. 24, 2018.
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