Ideologia e trabalho relacionados ao jogador de futebol no Brasil
Quando pensamos em futebol, pensamos em jogadores ricos, salários astronômicos, condições de superestrelas, mimos e reconhecimento social. O jogador parece gozar de uma aceitação social e especial dos demais, afinal, este se encontra nos holofotes de forma constantes por meio das inúmeras mídias que nos permeiam e, evidente, da memória afetiva de quem acompanha o esporte. Contudo, segundo dados recentes, “Baseado em vencimentos com carteira de trabalho assinada, o levantamento indica que 55% dos boleiros recebem a remuneração de R$ 1.100, não considerando, por exemplo, os direitos de imagem. Entre os jogadores que faturam até R$ 5.000 o porcentual cai para 33%. Somente 12% têm remuneração superior a R$ 5.001.”1. Isso se soma a um outro fator preocupante e até mais sério, grande parte destes salários são em times pequenos que se reúnem somente para as disputas dos estaduais e, quiçá, uma Copa do Brasil. A sazonalidade do calendário de futebol no Brasil oculta e cria, no imaginário do torcedor, uma falsa sistematização de uma realidade que existe somente para os grandes clubes, a de que ser jogador de futebol é viver em glórias, dinheiro, prazeres, em suma, uma vida fácil que é valorizada e recebe-se bem. Logo, o intuito deste texto é apresentar essa contradição e o reconhecimento do trabalho no futebol brasileiro, a ideologia por de trás deste e por fim, uma proposta reflexiva acerca do trabalho no futebol brasileiro.
Quando pensamos em trabalho no Brasil seria importante ressaltar como este se instituiu por aqui. Para iniciar a discussão, o livro A Construção da Sociedade do Trabalho (2009) de Adalberto Cardoso é importante. O autor defende que a constituição do trabalho no Brasil se deu pela inserção da ação estatal frente ao processo capitalista no país sendo assim, o Estado passou a regularizar as relações como se davam esse trabalho, sua forma e os direitos a serem assegurados. O autor desloca isso como um processo de cidadania por meio do trabalho e pode ser apresentado pela incursão em nossa realidade quando, em mídias ou abordagens sociais, vemos pessoas se dizendo trabalhadores e mostrando sua carteira de trabalho, pois isso garantia a condição de ser cidadão em nossa sociedade. Não ao acaso, na época das relações marcadas por Vargas, o futebol se tornou,
“Em um país com baixa mobilidade social e recém-saída de uma política escravista, é natural que uma atividade desportiva profissional seja atrativa às camadas sociais menos favorecidas, que veem no futebol uma alternativa para sair das condições de extrema pobreza. E são delas as origens de inúmeros ídolos do Brasil. A atividade remunerada do desporto-rei faz aumentar o preço dos bilhetes e a sua popularização. Surgem novos clubes também. Começava, com isso, uma nova fase, simultaneamente à política do Brasil, com Getúlio Vargas na presidência e com o chamado Estado-Novo, anos mais tarde, em 1937.”2.
As condições para a profissionalização dos jogadores de futebol que junto do apoio e pressão dos jogadores e as intenções estatais, levaram a tal conquista e reconhecimento. Com passos graduais, a inserção do jogador de futebol passou de um estranho no ninho para uma espécie de bajulação e adoração para a constituição patriótica como na Copa de 50 e, em seu ápice com a conquista da Copa de 1958. Entretanto, nem todos os jogadores conseguiram atingir esse processo e nem a inserção por meio do esporte bretão. Uma pequena parcela de jogadores conseguiu dinheiro em sua carreira para não necessitar de outros empregos, outros fizeram até outras faculdades e umas tiveram a sorte de serem inseridos em empregos na esfera estatal ou federal e novamente entrando no conceito de Cardoso (2009) sobre a inserção das pessoas por meio de um trabalho regulado, algo bem desejado e que promovia ganhos e tranquilidade para o resto da vida daquela pessoa.
Contudo, as modificações são sentidas ao fim da década de 90 e início dos anos 2000 e isso se deve muito a alguns fatores que serão listados. Um ponto é o projeto neoliberal que passa a ser dominante e bem sucedido ao introduzir uma nova mentalidade dentro da sociedade e de como consumimos desde de mercadorias até o nosso lazer e assim, promovendo ganhos maiores às grandes estrelas. Outro ponto é a intensidade da globalização que permite o acesso de eventos esportivos de outras partes do mundo por meio da televisão, este que passa a ser uma mercadoria bem massiva, assim nos apresentando nomes e novas narrativas por meio do esporte. O último ponto seria o fortalecimento de certas figuras como porta-vozes do esporte e a introdução deste por várias partes do mundo gerando uma personificação que chega a ser sinônimo do esporte. Michael Jordan no basquete, André Agassi no tênis, Maradona e Ronaldo no futebol, para ficar em alguns nomes, passam a ultrapassar até o próprio esporte que estão inseridos. Um fator é o uso destes esportistas em propagandas na televisão e idas em programas diversos, outro fator foram o relacionamento com celebridades em sua época e aparições em outras artes como desenhos, filmes, espetáculos e etc. O jogador de futebol que antes passava por uma cidadania regulada pelo Estado passou a gozar de salários altos, status de celebridade, fama e consumo, mas era essa a realidade de todos os jogadores?
Em 1998, a Lei Pelé3 modificou as relações entre clubes e jogadores, junto a essa lei com a Lei Bosman4 que modificou o futebol europeu e as suas relações de trabalho e assim, promovendo uma internacionalização das equipes do futebol europeu e o enfraquecimento das equipes no futebol brasileiro que encontraram dificuldades para se reinventar em virtude da qualidade de vida na Europa e o poderio econômico que fora intensificado com o fortalecimento do euro. Essa nova realidade criou tanto na mídia como para o torcedor, um processo de salários astronômicos no meio do futebol e de ganho excessivo dos jogadores e que, o futebol, é o caminho para o sucesso e o enriquecimento. Aí se encontra a questão da ideologia.
Marx (2012), coloca a ideologia como uma falsa sistematização da realidade, portanto, uma realidade que se encontra invertida, não compreendida ou não correspondente ao real. A esta adicionamos o conceito desenvolvido por Viana (2012) de representações cotidianas que são as maneiras pelas quais as pessoas buscam explicar o processo recorrente dentro da realidade que vivem. Logo, as pessoas buscam utilizar no cotidiano explicações que justifiquem o incentivo a uma criança ou jovem para a prática de futebol. Apresentam os altos salários, a mobilidade social que pode vir a ser promovida com o sucesso do jovem, os exemplos de sucesso e a cercar o caminho do jovem de um excessivo cuidado para a realização deste por meio de exemplos de atletas que atingiram o seu ápice no esporte. A ideologia atua neste ponto em ocultar e falsear a realidade em não serem apresentados os inúmeros casos de pessoas que falharam ao galgar na profissionalização pelo futebol e o número de pouquíssimas pessoas que conseguem furar a bolha de salários maiores que 4 a 5 mil reais para ficarmos num exemplo. A realidade, portanto, não promove um discurso mais coerente e concreto por meio do futebol e a realização do trabalho do jogador. A convivência com a incerteza dos salários, a sazonalidade do trabalho que, em alguns casos, precisa procurar outro emprego enquanto não há times para se jogar após o fim do estadual. Logo, a existência de um jogador do calibre de Neymar promove a esperança de inúmeros jovens e oculta a narrativa de inúmeros anônimos que nunca chegarão ao sucesso ou a mínima realização pelo trabalho que este teve. A isto, a narrativa existente é a de talento natural, dedicação e a benção de ser tão feliz por meio do esporte.
Ao fim, um calendário mais recheado aos clubes menores e garantia de um emprego estável ao jogador é o mínimo para a prática deste por meio do trabalho. Um pagamento digno que oferte condições de profissionalização contínua e sobrevivência sem as incertezas promovidas pelos atrasos e a baixa remuneração da maioria que ganham um salário mínimo. Novas narrativas que tragam, sem folclore, as condições e as situações vividas pelos jogadores e times de séries inferiores que se encontram sem atividades ao fim do campeonato estadual. Contudo, o ensaio entende que somente isso não resolverá o gargalo que é o futebol brasileiro e este em que o jogador brasileiro se encontra inserido. A promoção da discussão aqui realizada é um chamado para que novos debates e novas perguntas sejam feitas em relação à condição do jogador no futebol brasileiro e que as suas ações não sejam somente pontuais como as ocorrentes como no caso do Bom Senso. A este, Bom Senso, valerá um ensaio futuro que pretende tratar as questões específicas à politização do jogador de futebol e seus movimentos e que trataremos em um outro momento.
Notas
1https://www.mg.superesportes.com.br/app/noticias/futebol/futebol-nacional/2021/07/01/noticia_futebol_nacional,3923199/brasil-paga-salario-minimo-para-mais-da-metade-dos-jogadores-de-futebol.shtml
4https://www.goal.com/br/not%C3%ADcias/lei-bosman-o-que-foi-a-decisao-que-mudou-para-sempre-o/67tgkzyyp63z107uamhmyp3ed
Referências
CARDOSO, Adalberto. A construção da sociedade do trabalho no Brasil: Uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades. Rio de Janeiro: FGV, 2010.
MARX, Karl. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2012.
VIANA, Nildo. Senso Comum, Representações Sociais e Representações Cotidianas. Bauru: Edusc, 2008.
WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.