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Idolatria em torno de Juninho Pernambucano e de Loco Abreu

Fui convidado pelo jornal Lance! a escrever um texto sobre as diferenças e as razões da idolatria em torno de Juninho Pernambucano e de Loco Abreu. Reproduzo aqui parte do que foi publicado no referido diário no domingo, dia 13 de novembro, na página 7 (confira aqui na íntegra).

Primeiro cabe ressaltar que eventos de massa não sobrevivem sem a presença de ídolos. Eles são fundamentais para seu êxito. No universo dos esportes, mais precisamente no do futebol, estes ídolos tendem a possuir características heróicas, no sentido de que suas conquistas são sempre e inevitavelmente compartilhadas com a equipe que representam. Heróis precisam de conquistas. Ídolos não necessariamente. Estes podem viver somente para si, sendo alvo de celebrações e reverências, como os astros da música e da dramaturgia. Ídolos futebolísticos quase que inexoravelmente se transformam em heróis com suas conquistas.

Neste sentido, trava-se uma relação dialética, de troca, entre a mídia e os atletas em foco. A “construção” midiática só é possível devido aos feitos dos jogadores. Tem sempre algo na história do jogador – seu talento, suas jogadas, gols e conquistas – que o aproxima do torcedor e que é capaz de render boas histórias e gerar fascínio.

Apresentação de Juninho Pernambucano para a torcida do Vasco. Foto: Divulgação/FOTOCOM.NET

Juninho Pernambucano tem uma longa relação de amor e conquistas no Vasco da Gama. Atualmente esta relação de amor está baseada fundamentalmente na crença mitológica de que se jogava por amor à camisa no passado e que hoje só se joga por dinheiro. Desde os relatos de Mário Filho no primeiro capítulo do seu O Negro no Futebol Brasileiro, primeira edição de 1947, que observamos esta sensação saudosista de que o tempo anterior era melhor e mais puro que o tempo presente. Juninho retorna para o Vasco, após um longo período fora do país, aceitando contrato de risco, para ganhar salário mínimo. Isso o elevou ainda mais a categoria de ídolo-herói do Vasco. É como se ele estivesse completando o ciclo de idolatria originado no começo de sua carreira e demonstrando ao torcedor de que sua relação com o clube é fruto do mesmo amor que o torcedor tem pelo Vasco. E isto em uma época de transações milionárias, em que o que vem à tona é, quase sempre, as bases salariais do contrato entre atleta e clube.

No caso de Loco Abreu, o Botafogo vinha de uma série de decepções, com três vice-campeonatos estaduais consecutivos, e ele, em seu primeiro ano na equipe, leva o time à conquista do Estadual de 2010. A percepção de que veio do exterior, de fora, de ser um estrangeiro, para ser o salvador do Botafogo, cria um componente ainda mais mítico em sua relação com o torcedor. O que vem de fora geralmente é cercado de uma aura de mistério. Faz parte de outra cultura, outra nação, e escolheu vir para a comunidade alvi-negra trazendo consigo a alcunha de origem, “Loco”, para se doar de corpo e alma na “missão” de conquistar títulos por seu atual time. Observemos que temos no Brasil uma galeria de jogadores de futebol vindos de fora, principalmente da Argentina, que se tornaram ídolos de clubes brasileiros. Tevez, Conca, Montillho e Pet (este da Servia) seriam os casos mais recentes. A idolatria em relação ao Loco Abreu é o resultado de suas atuações, gols, declarações e, principalmente, vitórias. O fato de ser “de fora” mitifica ainda mais a relação com o fã. Vimos durante a Copa de 2010, muitos torcedores do Botafogo torcendo para o Uruguai por causa do Loco Abreu. É uma forma de retribuir ao ídolo o empenho dele pelo clube de coração do torcedor. Cena esta que poderá se repetir em 2014, mesmo com a Copa no Brasil.

A idolatria ao Loco Abreu, ainda que mais recente, se comparada com a de Juninho com o Vasco, não é um sentimento menor do que tem a torcida do Vasco com este. É tão forte quanto, só que foi formado e é exercido de maneira diferente. O fato é que em meio a tantas mudanças no futebol, a paixão do torcedor e o surgimento espontâneo dos ídolos, ainda que precisem da mídia para legitimá-los, continuam firmes, o que demonstra que em meio a todo o processo de secularização* (“profanação”) do esporte, existe uma força que supera aquela, que resiste a ela, e que fala, em última instância de paixão. Talvez aí resida, então, a “essência” do sucesso do esporte.

*Sobre esta questão (secularização e racionalização do esporte), uma dica de leitura é o livro “O que é Sociologia do Esporte“.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Ronaldo Helal

Possui graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1980), graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1979), mestrado em Sociologia - New York University (1986) e doutorado em Sociologia - New York University (1994). É pesquisador 1-C do CNPq, Pós-Doutor em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires (2006). Em 2017, realizou estágio sênior na França no Institut National du Sport, de L'Expertise et de la Performance. É professor associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foi vice-diretor da Faculdade de Comunicação Social da Uerj (2000-2004) e coordenador do projeto de implantação do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Uerj (PPGCom/Uerj), tendo sido seu primeiro coordenador (2002-2004).Foi chefe do Departamento de Teoria da Comunicação da FCS/Uerj diversas vezes e membro eleito do Consultivo da Sub-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Uerj por duas vezes. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Teoria da Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: futebol, mídia, identidades nacionais, idolatria e cultura brasileira. É coordenador do grupo de pesquisa Esporte e Cultura (www.comunicacaoeesporte.com) e do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte - LEME. Publicou oito livros e mais de 120 artigos em capítulos de livros e em revistas acadêmicas da área, no Brasil e no exterior.

Como citar

HELAL, Ronaldo. Idolatria em torno de Juninho Pernambucano e de Loco Abreu. Ludopédio, São Paulo, v. 30, n. 1, 2011.
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