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Idrissa Gana Gueye: Do gol negado ao meme ao pé da trave

Fernando Cesarotti 30 de janeiro de 2021

Série do Puntero Izquierdo conta a história de personagens que um dia serão lembrados pelo que fizeram na Copa do Mundo de 2018; aqui, o volante senegalês que foi um dos destaques de sua seleção, abriu caminho para a vitória na estreia, mas ganhou fama na internet como espectador de luxo no lance que selou a eliminação.

ilustração: gustavo berocan

Idrissa Gana Gueye correu mais de 30 km durante os três jogos de Senegal na Copa do Mundo. Ficou em campo durante os 288 minutos e 45 segundos que sua seleção jogou na Rússia, incluídos os acréscimos. Deu dois chutes a gol, um para fora e outro interceptado pela defesa adversária. Fez sete faltas e sofreu duas. Levou um cartão amarelo. Deu quatro carrinhos, dois deles certeiros, fez 25 desarmes e perdeu 12 bolas. Mandou a bola para longe em cinco chutões. Deu 126 passes, 114 deles corretos, um aproveitamento de 90% digno de seleção espanhola.

Mas sua trajetória na Copa da Rússia está totalmente restrita a um lance que não entra nas estatísticas. Apagão mental? Distração? Erro de estratégia? Até agora não se sabe o que levou Idrissa Gana Gueye, 29 anos incompletos, 1,74 metro, a encostar no pé da trave naquele escanteio aos 28 minutos do segundo tempo do jogo contra a Colômbia, decisivo para a definição do Grupo H.

A verdade é que a seleção senegalesa não estava muito a fim de jogo naquele dia em Samara. Depois de estrear com vitória por 2 a 1 sobre a Polônia e do desgastante empate por 2 a 2 com o Japão, os Leões da Teranga pareciam bem satisfeitos com o empate diante dos sul-americanos, que começavam a última rodada em desvantagem, precisando da vitória. A lesão de James Rodríguez, substituído ainda no primeiro tempo, só aumentara o drama colombiano, e o time seguia atacando sem muita criatividade.

Então, quando eram 14 minutos do segundo tempo, Jan Bednarek abriu o placar para a eliminada Polônia contra o Japão, em Volgogrado. O resultado era suficiente para que senegaleses e colombianos armassem a tradicional marmelada e se classificassem juntos. O jogo seguiu seu curso — fraco tecnicamente, entediante, nada vistoso. Aos 18 minutos, Sadio Mané escorrega ao cobrar uma falta. Aos 20, escanteio para a Colômbia: Quintero cobra e Falcao Garcia manda por cima. Aos 27, a Colômbia tem nova chance: Cuadrado tenta pela direita e Keita corta antes do cruzamento. Novo escanteio. Como no lance anterior, Idrissa Gana Gueye posta-se no primeiro pau, ao pé da trave. Como já havia feito em outros escanteios contra sua equipe.

Europa

Nove dos 23 jogadores do Senegal inscritos na Copa do Mundo são nascidos na Europa e escolheram jogar pelo país de seus ancestrais. Não é o caso de Gueye: nascido na capital Dacar em 26 de setembro de 1989, ele iniciou-se no futebol nas categorias de base do Diambars FC, um dos celeiros de talentos que reúne futebol e projeto social nas metrópoles africanas. O bom desempenho o levou ao futebol europeu aos 19 anos, para defender o Lille.

No clube francês, atuou duas temporadas pela equipe B e em 2011 foi pinçado pelo técnico Rudi Garcia para o time principal. Participou de 11 partidas na histórica campanha do título francês, quando o clube encerrou um jejum de mais de meio século sem conquistas. Ganhou fama por seu jogo combativo incansável, marcado por carrinhos certeiros e muita marcação.

Sua fama o levou à Premier League: em julho de 2015, o Aston Villa pagou 9 milhões de libras ao Lille para Gueye cruzar o Canal da Mancha. Rebaixado, o time de Birmingham teve de negociar o jogador com prejuízo: por 7 milhões de libras, ele foi jogar no Everton. Destacou-se pelo poder de marcação: na temporada 2016/2017, foi o primeiro jogador a completar 100 desarmes entre as cinco principais ligas europeias (Inglaterra, Espanha, França, Itália e Alemanha). Seu bom desempenho garantiu, no começo deste ano, uma renovação com o Everton até 2022.

“Ele é um jogador que trabalha duro e dá tudo pelo time. Em forma é um personagem vital para o meio-campo do Everton”, diz o jornalista Phil Kirkbride, repórter do jornal Liverpool Echo.

Na seleção, Gueye teve sua primeira chance em 2011, e tornou-se nome corrente. Disputou a Olimpíada de Londres, avançando com os Leões até as quartas de final, quando o time caiu diante do futuro campeão México. Foi também titular nas duas últimas edições da Copa Africana de Nações, em que o Senegal fez campanhas discretas: caiu na fase de grupos em 2015, em Guiné Equatorial, e nas quartas de final em 2017, no Gabão, derrotado nos pênaltis por Camarões. Nas Eliminatórias, foi nome constante nas convocações de Aliou Cissé durante a classificação num grupo relativamente fácil, contra África do Sul, Cabo Verde e Burkina Fasso. Sua presença na Copa era óbvia, assim como a escalação como titular.

Na estreia, Senegal truncava o jogo contra a Polônia, fechando-se bem na defesa e mostrando muita disciplina tática, fugindo do clichê reservado às seleções da África negra. Aos 36 minutos, Niang puxa contra-ataque e toca para Mané, que, marcado por dois, enxerga ao lado o avanço de Gueye. O camisa 5 domina e chuta mal, sem muita força, rumo ao canto direito baixo do goleiro Szczesny. A bola provavelmente iria para fora, mas desvia na canela direita de Thiago Cionek e mata o camisa 1, morrendo no canto esquerdo. A Fifa credita o lance como gol contra do curitibano naturalizado polonês e nega a Gueye o que seria seu segundo gol por Senegal. Coisas da vida.

Samara

São 28 minutos e 33 segundos do segundo tempo em Samara quando a bola sai do pé de Quintero. Há cinco jogadores colombianos na área e seis do Senegal, além do goleiro N’Diaye, praticamente em cima da risca, e de Gueye, ao pé da trave, mãos para trás. A bola vai no primeiro pau, pouco além da linha da pequena área, e encontra Yerri Mina, que salta mais alto que Salif Sane, o xerife da zaga de Senegal, e encaminha a bola ao canto esquerdo, fora do alcance do goleiro. Mina já está quase na linha lateral, comemorando, quando Gueye finalmente sai do lugar, quatro ou cinco segundos depois, andando calmamente em direção à bola.

A combinação dos placares deixava Senegal eliminado, atrás do Japão no discutível critério do fair play. Para seguir na Copa, os Leões precisavam de um gol, ou pelo menos de um gol da Polônia, ou da expulsão de um japonês, ao menos. Nada disso aconteceu: a Colômbia avançou em primeiro no Grupo H, com o Japão em segundo, e a queda de Senegal selou o mau desempenho do futebol africano, que morreu na fase inicial pela primeira vez desde 1982 — nos oito Mundiais entre 1986 e 2014, sempre houve pelo menos uma seleção do continente nas oitavas de final.

Mas o jogo nem tinha acabado quando Gueye ganhou fama na internet. Milhares de tuítes com o lance foram escritos. Vídeos se espalharam no whatsapp. “Escolheu o melhor lugar para ver o jogo”, brincou o ex-atacante Grafite, comentarista do Sportv. O lance até hoje divide o posto de cena mais divertida da Copa com o chute do belga Batshuayi contra a trave, e a própria cabeça, para comemorar o gol do colega Januzaj contra a Inglaterra. Bem-humorado, o atacante belga brincou com a situação e admitiu: “merda acontece”.

O bom volante, brigador, conhecido por seu incansável folego na marcação, virou sinônimo de jogador preguiçoso, acomodado, tudo por um lance ao pé da trave. Discreto, Idrissa usa pouco as redes sociais. No único tuíte que publicou após o fim de sua participação na Copa, apenas agradeceu aos torcedores: “Foi uma honra e um privilégio para mim poder representar o meu país durante a Copa do Mundo. Quero agradecer-lhe por seu apoio, por suas mensagens e suas orações”, escreveu. Não respondeu a nenhuma das milhares de mensagens que o citavam. A jornalista Cynthia Nzetia, setorista de Senegal no site da Fifa, registrou em sua conta no Twitter uma frase do volante após a partida: “O que faz a diferença no futebol é a eficiência, e eles estiveram lá na hora certa”, disse.

Na África, sites especializados ignoraram o lance que, pelo visto, virou meme apenas no Ocidente. Gueye foi apontado como um dos jogadores mais regulares de Senegal na Copa e nome fundamental para a sequência do trabalho — o próximo compromisso da seleção será a Copa das Nações, em junho do ano que vem, em Camarões. As eliminatórias já tiveram uma rodada, e Idrissa marcou seu único gol pela seleção justamente nesse jogo, vitória por 3 a 0 sobre Guiné Equatorial. O grupo tem ainda Sudão e Madagascar, próximo rival, no dia 7 de setembro. A seletiva vai até março do ano que vem.

O Everton já está à espera dele. “A torcida o vê como um jogador chave para liderar o time depois de uma temporada ruim. Ele só precisa se manter em forma e jogando com consistência”, explica Phil Kirkbride. Em pré-temporada, o clube azul da terra dos Beatles pode inclusive contar com os serviços de Mina, segundo a central de boatos do mercado de transferências. Daquelas coincidências que a vida e o futebol proporcionam — e talvez então Idrissa possa explicar o que diabos estava fazendo ao pé da trave naquele fim de tarde em Samara.


Puntero menorPublicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2018. O Puntero em parceria com o Ludopédio publica nesse espaço os textos originalmente divulgados em sua página do Medium.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fernando Cesarotti

Pai do Davi, socialista, palmeirense. Jornalista formado pela Unesp, com pós em Jornalismo Literário. Professor no Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio (CEUNSP). Criador do OlimpCast.

Como citar

CESAROTTI, Fernando. Idrissa Gana Gueye: Do gol negado ao meme ao pé da trave. Ludopédio, São Paulo, v. 139, n. 57, 2021.
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