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(Im)pressões sobre o futebol: reprodução estrutural como tática e o racismo como técnica

Fidel Machado 8 de setembro de 2020

Farei uso dos elementos presentes no campo esportivo, mais precisamente, do campo futebolístico para ilustrar e ensaiar algumas linhas argumentativas. Intento problematizar os possíveis (des)usos e desdobramentos dessa seara como ferramenta para reproduzir a “velada” estrutura operacionalizada, de forma bastante técnica, pelo racismo.

Escravatura, estupros, descaso, despejo, indiferença, marginalização, domesticação, criminalização, silenciamento, violência, prisão, racismo e genocídio autorizado e legitimado pelo Estado. Certamente as palavras não serão suficientes para sintetizar e apresentar um contexto de dor, sofrimento, suor e sangue que está incrustado nas engrenagens que articulam as nossas relações sociais.

Todavia, certamente, as palavras precisam ser cada vez mais presentes para suspeitar e questionar o alicerce das instituições para que não incorramos em uma nova credibilização do mito da democracia racial que visa abrandar a crua realidade. É necessário enfrentarmos os porões de um país estruturado na tendência alvejante e lubrificado no sangue de povos alvejados. Um mundo de povos alvos para a manutenção da identidade e do privilégio de um povo alvo. A permanência desse sistema mantém o consumo excessivo de carne preta. Um desequilíbrio produtivo, um acúmulo rentável em presídios, hospitais psiquiátricos e, sobretudo, um empilhamento debaixo dos plásticos.

A discussão sobre o racismo, por mais emergencial que seja, ainda gera uma série de animosidades, pois, se levada a cabo, balança toda a pirâmide social. Progressivamente, à medida que se realizava o processo de diferenciação e organização dos mais variados campos e de suas lógicas próprias a racialização, implicitamente, ditava a ocupação dos cargos de chefia. (BOURDIEU, 2016). Não por acaso, diante de vários planos de governo, vidas são hierarquizadas e, assumidamente, não são dignas de serem vividas. Passaram a ser, inclusive, privadas do seu direito de respirar.

O contexto é delicado e demanda ações extremamente cirúrgicas. O tempo e o placar, definitivamente, não estão ao nosso favor. Parece-me que vidas negras, para as camadas do topo da pirâmide, só importam quando convém, quando são subservientes, quando se enquadram em entretenimento ou prestação de serviços.

O futebol, portanto, no interior desse contexto pode servir como uma ferramenta para uma manutenção, extremamente, rentável e atraente de um status quo, pois, por ser um campo relativamente autônomo, as lógicas e as engrenagens sociais e institucionais do racismo podem e, em grande parte, são mantidas.

Percebemos nessa instituição uma manutenção, estrategicamente, tácita na ausência de pessoas pretas em postos de destaque nas diretorias, no excesso de pessoas pretas em serviços precarizados nos clubes brasileiros e, sobretudo, na correlação direta e insistentemente recorrente dos gritos racistas e nas demais expressões veladas, como a naturalização de uma condição animalizada, irracional, restrita à musculatura e destinada aos trabalhos braçais.

A repetição sistemática dessas falácias culminam em verdades danosas não só para os protagonistas desse triste cenário, mas para todo o estádio, para toda a população. É lamentável que ainda haja torcida para o racismo.

Aparentemente inofensiva, essas associações podem justificar e legitimar o teor desumanizado ao desconsiderar o humano e, pelos atributos supracitados, objetificam o corpo negro, ou mais especificamente, o homem negro. O futebol, infelizmente, é um terreno fértil para essa temática. Muitos atletas, como fruto dessa herança, não se autodeclaram negros, negam a existência do racismo ainda que sofram discriminação.

Temos casos emblemáticos, como o do jogador Benzema e do atacante Lukaku que afirmaram que a sua nacionalidade era balizada pelo rendimento em campo. Caso atuassem bem, eram reconhecidos como semelhantes, caso contrário eram, automaticamente, vítimas de ofensas. A sensação diante desse contexto é que esses atletas não são aceitos ou incluídos. Eles são utilitariamente usados e tolerados pelo seu rendimento, pela sua produção. Uma sofisticação do sistema escravocrata, um refinamento das amarras da dominação.

Lukaku pela Bélgica em 2018, durante a Copa do Mundo. Foto: Дмитрий Садовников/Wikipédia.

Talvez as piadas e os gritos sejam a manifestação de uma frustração e incapacidade de ver um negro ascender e ocupar um papel de destaque. Dentro de toda essa estrutura que nos constitui enquanto sujeitos, o protagonismo e o privilégio parecem ser direitos da branquitude.

É importante ressaltar que alguns clubes já realizaram ações para homenagear e escurecer a sua história, contudo, como afirmou o professor doutor Sílvio de Almeida, as ações contra o racismo não podem se esgotar e restringir apenas como eventos, mas precisam passar a ser movimentos sistematizados, organizados e permanentes nas agendas do futebol brasileiro e mundial.

Ademais, diante de uma estrutura imponente e muito bem articulada, as exceções não podem ser vistas como regras. Esse mecanismo é mais uma das artimanhas do complexo racismo brasileiro para tentar camuflar as opressões. Representatividade sem alteração da estrutura soa como uma solução cosmética. No mundo do futebol é muito comum o discurso ilusório da meritocracia. As conquistas desses escassos atletas são amplamente divulgadas e publicizadas, todavia, as derrotas são particularizas. É preciso uma atenção constante.

Finalizo com Bayer (1994) que faz a distinção entre tática e técnica no campo dos jogos esportivos e coletivos. Para Bayer, a tática pode ser considerada como as razões pelo fazer e a técnica como o fazer. A reprodução estrutural racista, para o fim aqui pretendido, se enquadra exatamente na tática, nas razões que articulam o fazer, em uma racionalidade que balizam as condutas e mantém a estrutura hegemônica. Já a técnica é o como fazer e aqui temos o racismo à brasileira: publicamente velado, mas privadamente excessivo. Se assim permanecermos, ao final dessa partida, não haverá empate nem tampouco vencedores. Estamos fadados à derrota. Enquanto a regra for clara, haverá tentativas de escurecê-la. Afinal, já passou da hora do racismo pendurar as chuteiras.

Joguemos… 


Conversas com

BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Best Bolso, 2016

BAYER, ClaudeO ensino dos desportos colectivos. Lisboa: Dinalivro, 1994


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fidel Machado

Bacharel em Educação Física pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Estética do Movimento (GPFEM - Unicamp).

Como citar

MACHADO, Fidel. (Im)pressões sobre o futebol: reprodução estrutural como tática e o racismo como técnica. Ludopédio, São Paulo, v. 135, n. 19, 2020.
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