156.10

Intolerância selvagem

José Paulo Florenzano 9 de junho de 2022

As recentes manifestações de racismo na Libertadores da América chamaram a atenção dos meios de comunicação, não tanto pela novidade, uma vez que elas são recorrentes na história da competição, mas pela sequência dos atos em um curto lapso de tempo. Com efeito, na terceira rodada da fase de grupos, em abril, as partidas entre Corinthians x Boca Junior, River Plate x Fortaleza, Emelec x Palmeiras e Universidade Católica x Flamengo, ficaram marcadas pelas performances simiescas de torcedores das equipes argentinas, chilena e equatoriana.[1] Podemos analisá-las sob um duplo ponto de vista, interno e externo ao universo esportivo, e a partir de uma premissa inequívoca: elas emanam do imaginário racista presente no conjunto das sociedades latino-americanas.   

Vistas da perspectiva interna ao campo esportivo, as aludidas imitações se inserem em uma longa história de rivalidade esportiva. A série atual, no entanto, parece refletir uma reação racista de inconformismo esportivo face à hegemonia instaurada pelas equipes brasileiras nas competições organizadas pela Confederação Sul-Americana de Futebol. Recordemos. Elas conquistaram as três últimas edições (Flamengo em 2019 e Palmeiras em 2020 e 2021). A rigor, nas duas últimas edições, elas realizaram entre si as finais (Palmeiras x Santos e Palmeiras x Flamengo). E como se não bastasse, na última edição, as equipes brasileiras marcaram presença de forma exclusiva nas decisões, tanto da Libertadores da América (Palmeiras x Flamengo) quanto da Sul-Americana (Atlético-PR X RB Bragantino).  

As performances do macaco dirigidas contra as equipes do Flamengo, Corinthians, Palmeiras e Fortaleza adquirem sentido, em parte, à luz da inédita hegemonia esportiva construída com base na força do dinheiro. Vista por esse prisma, mais do que expressar a inferioridade dos “brasileiros”, a teatralização do ódio denota o complexo de inferioridade econômico-esportivo vivido no contexto atual por determinados segmentos das torcidas rivais. Nesse sentido, podemos afirmar que nas referidas performances encontram-se entrelaçadas manifestação racista, rivalidade esportiva e desigualdade econômica, constituindo-se um imenso desafio analisá-las separadamente. De qualquer forma, no plano das representações socioculturais, parece-nos lícito afirmar que o macaco opera como um princípio de divisão nacional entre “nós” e “eles”.

 

Vistas, porém, sob um prisma mais amplo, as recentes manifestações permitem divisar um princípio diverso de demarcação da alteridade, colocando em primeiro plano a figura do Outro Interno. De fato, as práticas racistas, consubstanciadas nos atos de xingar o jogador negro de macaco, de jogar a banana no gramado ou de emitir urros simiescos na arquibancada, encontram-se de igual modo inscritos na vida cotidiana do nosso futebol, atingindo atletas, treinadores e jornalistas afrodescendentes. Os setores racistas da sociedade brasileira se reconhecem na perfomance simiesca encenada pelos congêneres latino-americanos. Compartilham com eles a mesma visão de mundo e defendem de igual modo a mesma hierarquia racial. Aliás, foi justamente por medo de vê-la subvertida que decidiram apoiar a ascensão da extrema direita ao poder central.         

O macaco, desse modo, constitui tanto um fator de divisão quanto um princípio de unidade. Do ponto de vista interno ao campo esportivo, ele situa em lados opostos os rivais históricos que disputam entre si a hegemonia no futebol. Mas, da perspectiva mais ampla das relações raciais, ele se oferece como um elo de identidade transnacional, irmanando racistas brancos dos dois lados da fronteira contra os povos da diáspora africana. Citemos um exemplo. Na final da Copa do Brasil, em dezembro, torcedores brancos do Atlético Paranaense insultaram torcedores negros do Atlético Mineiro, realizando na Arena da Baixada gestos e xingamentos simiescos.[2]  Ou seja: enquanto os torcedores racistas da América do Sul reúnem e designam os “brasileiros” de um modo geral como macacos; os brancos racistas, no Brasil, insultam os negros de macacos, excluindo-os simbolicamente da identidade nacional.

O jogo classificatório acionado pelo futebol, com efeito, não permite uma leitura linear das manifestações de intolerância, válida para todo e qualquer contexto social. Isto decerto não significa relativizar o racismo, minimizar a ofensa, ignorar a gravidade do que se passa dentro e fora das quatro linhas. A esse respeito, convém termos em mente as palavras do goleiro Aranha, alvo dos setores mais extremistas da torcida do Grêmio, em 2014, pela Copa do Brasil: “Nenhum branco faz ideia do que os negros sentem quando são desumanizados”.[3]

Trata-se, portanto, de compreender e elucidar de forma mais nítida quem está sendo racista, contra quem, em qual circunstância, e, sobretudo, de que forma a lógica racial da discriminação se entrelaça com a lógica antagônica do esporte, ensejando, no contexto ritualístico do jogo, as manifestações de intolerância selvagem.[4] 


[1] Citamos apenas os casos mais noticiados pela imprensa. Mas não foram os únicos. Cf. “Futebol sul-americano tem recorde de casos de racismo em 2022, aponta Observatório”. Observatório da Discriminação Racial no Futebol, 20 de maio de 2022.

[2] Cf. “Polícia abre investigação de racismo de athleticanos na final da Copa do Brasil”, Folha de S. Paulo, 17 de dezembro de 2021.

[3] “Macaco, não!” Mário Aranha, Revista Piauí, nº 189, junho de 2022.

[4] Tomamos de empréstimo a expressão cunhada por Umberto Eco. “Migração e intolerância”. Rio de Janeiro, Record, 2020.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. Intolerância selvagem. Ludopédio, São Paulo, v. 156, n. 10, 2022.
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