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Temporada 2021-22: invasões de estádios e novas tragédias anunciadas

Fabio Perina 28 de abril de 2022

Esse texto surge como uma certa continuidade simbólica ao texto anterior em que busquei uma retrospectiva dos incidentes mais recordados envolvendo conflitos com policiais, superlotação e mortes de torcedores. Sendo que em vários desses casos “clássicos” de décadas atrás esteve presente o elemento das invasões de campo por torcedores como abrigo a riscos maiores. Foi para a suposta prevenção desses casos que se legitimou a adaptação dos estádios ao modelo de arenas, com o seu predomínio na atual situação. Para esse novo texto de agora buscarei uma retrospectiva bem mais recente dos últimos meses (entre 2021 e 2022), vindos logo após cerca de um ano (entre 2020 e 2021), quando as partidas de futebol eram em estádios vazios sem torcedores por conta da pandemia. Uma situação curiosa pois não somente os protestos de torcedores seguiram ocorrendo fora dos estádios. O que sugere ser improvável ou até impossível de serem controlados ou prevenidos. (Obs: nessa breve lista será dado preferência a notas jornalísticas da imprensa brasileira sobre diversos casos transnacionais, mas como exemplo desse caráter incontrolável cabe uma menção a uma certa “onda” de menor repercussão em plena pandemia entre barras peruanas com seguidas agressões simbólicas de vandalismo e pichações a murais e até estátuas de clubes rivais!) E sobretudo a alta visibilidade midiática chamou a atenção ao acentuar outras formas de violências, de discriminações a agressões, envolvendo outros sujeitos como jogadores, treinadores e até dirigentes que antes em um estádio cheio poderiam passar despercebidas. Ou seja, não funciona ser reducionista e atribuir aos torcedores a “culpa” por algum suposto “pecado original”.

Novos incidentes que chamam a atenção não apenas pela frequência e quantidade como pela “qualidade” no sentido que parecem mudar um perfil. Ou seja, pelos últimos anos nos principais países houve o predomínio de casos de violência em um cenário razoavelmente “estável” diante do predomínio de conflitos cada vez mais distantes dos estádios entre grupos de torcedores cada vez mais fanáticos. Embora agora, evidente que esses conflitos não diminuíram, mas parece um novo predomínio e uma nova visibilidade a um novo perfil de casos com diversas invasões de campo por torcedores. Ou seja, um cenário tão paradoxal que convivem casos extremos: ou pelos protestos a dimensão fora de campo assume uma autonomia própria em relação ao dentro de campo ou pelas invasões elas se fundem!

Ora, para entrar nesse mosaico complexo é preciso antes esboçar algumas ressalvas. Antes de enumerar alguns casos mais destacados, cabe uma ressalva que uma abordagem crítica deve evitar a tentação simplista do senso comum de rotular tudo em “ondas”. Um recurso no máximo descritivo porém pouco analítico por remeter a um fenômeno da natureza que supostamente emerge de repente e logo se submerge mais de repente ainda. É em parte verdade que vários casos encontram poucas resistências entre as fronteiras dos países para eclodirem, porém é um termo que nada explica as condições drásticas (sobretudo políticas) que permitiram tal eclosão. Além da insuficiência de tratar o futebol como um mundo isolado sem conexões com problemas sociais bem mais amplos. Nesse novo texto, assim como no anterior mencionado, busco mostrar algumas conexões entre manifestações torcedoras e manifestações políticas. E novamente a ressalva que não tem mais lugar para aquele discurso midiático eurocêntrico do tipo “isso não acontece na Europa…”, pois os casos lá ocorreram antes do que aqui em nosso continente e com significativa gravidade, conforme veremos. Não tratarei dos tantos casos recentes do tão complexo cenário brasileiro, repleto de invasões e outros tipos de ocorrências que eram pouco “convencionais”, para não tornar o texto mais extenso. Como última ressalva, embora na maioria dos meus textos busco comparações de medidas punitivas, dessa vez dispensarei essa análise para simplificar o texto ao privilegia a abrangência de vários casos ao invés da profundidade de cada um deles. Embora seja sugestiva a hipótese inicial que as punições aos casos europeus foram mais pontualmente punidos, enquanto nos casos latino-americanos foram mais amplamente punidos em diversos critérios contra os grupos de torcedores (e também generalizados à massa torcedora em geral) para além daqueles fatores determinantes para a eclosão dos incidentes em questão.

Hillsborough
Banner de torcedores do Liverpool com o nome dos mortos, pelos vinte anos da tragédia, em 2009. Em 2021 morreria a 97.ª vítima. Fonte: Wikipédia

Inglaterra

Ora, para tratar de casos “clássicos” de invasões de campo é impossível não lembrar do caso Hillsborough de 1989. Irônica e coincidentemente, um certo “estopim” aos demais casos atuais ocorreu no histórico e remodelado Wembley, em 11/07/2021, diante de toda uma série de ocorrências. Sendo justamente irônico que na final da Eurocopa, a primeira competição marcando o retorno total de torcedores após a pandemia a partir da ampla vacinação. Mais irônico ainda, para além do futebol, que a UEFA buscou nessa edição do torneio de seleções um novo formato com sedes rotativas, embora a sede da final seja no país que há poucos anos se desligou da União Europeia. Vide quem pôde acompanhar na época o noticiário diante das preocupações de dirigentes e até autoridades com as manifestações explícitas de extrema direita nos estádios durante a competição aproveitando de sua visibilidade. Vide também que o futebol inglês como um todo esteve agitado apenas semanas antes dessa final de Wembley com a ampla negação de grupos de torcedores à proposta de Super Liga Europeia de clubes. O que já vem de um acúmulo de mobilização de vários anos para tentar recuperar a função social dos clubes que passaram a ser de magnatas e bilionários.

França

No país do vencedor atual da Copa do Mundo e da liga dos “novos ricos”, há simultaneamente todo um histórico recente e remoto de conflitos e discriminações por parte de torcedores. A chave de leitura da visibilidade midiática coloca um tempero a mais nessa ebulição. E em alguns casos chegando a conflitos contra jogadores e comissão técnica, como em um Nice x Marselha, em 22/08/2021. Justamente em um início de temporada bem conturbado fora de campo que coincidiu com a chegada de Messi ao PSG, porém com seu desempenho dentro de campo bastante frustrante, inclusive com vaias hostis da própria torcida a ele e a outros “medalhões”.

Nice Marselha
Nice x Marselha, em 22/08/2021. Foto: reprodução Fox Sports

Colômbia

Invasão de campo generalizada em um Independiente Santa Fé x Atlético Nacional no El Campín de Bogotá, em 03/08/2021.  Sendo que é preciso lembrar também de um antecedente imediato (com bem mais visibilidade do que gravidade) em maio, em dois dias seguidos no modesto estádio Romelio Martinez, em Barranquilla, nas partidas Junior x River Plate e América x Atlético-MG pela Libertadores. Partidas com portões fechados temporariamente interrompidas pela entrada de gás lacrimogêneo dentro de campo resultado de conflitos entre policiais e manifestantes no seu entorno, diante de um contexto mais amplo de intensos protestos sociais (“estallidos”) naquele país durante meses. O que aliás obrigou a Conmebol a desistir do país como sede da Copa América. Vide quem pôde acompanhar na época o noticiário que os protestos estavam tão intensos em Cali que foi preciso mudança de sede da partida do Galo citada. Assim depois como houve nova invasão em um América x Atlético Nacional no Pascual Guerrero, em 24/10/2021. Por fim, nos últimos dias houve também invasão seguida de morte no clássico “costeño” U. Magdalena x Junior, em 23/04/2022

Colômbia torcidas
Confusão entre torcedores no campeonato colombiano. Fonte: reprodução

Chile

Não parece ser mera coincidência que Chile e Colômbia apareçam agora nessa lista e tenham tido os mais recentes e intensos “estallidos sociais” do continente, e com o nada surpreendente protagonismo de barristas. Conforme tratei em texto anterior, no cenário do país andino é praticamente impossível de distinguir uma “essência” moral entre “bom”/”mal” torcedor ou “bom”/”mal” protesto. Pois o país emergiu nos últimos anos como o mais intenso “laboratório” entre futebol e política na América Latina. Nesse acúmulo de forças, houve novamente intensa politização das arquibancadas com manifestações contra a extrema-direita do candidato Juan Antonio Kast, quem perdeu o segundo turno presidencial em 19/12/2021. Os recentes incidentes não tiveram destaque na mídia brasileira, mas envolveram as três principais barras como protagonistas em distintas cidades: invasão da “Los de Abajo” em Rancagua em 31/10/2021; invasão da “Garra Blanca” em Antofagasta em 04/12/2021; e suspensão temporária por pirotecnia e conflitos entre “Garra Blanca” e “Los Cruzados” por ausência de separações contundentes em Concepción, em 22/01/2022.

Uruguai e Argentina

Até mesmo um país que não costuma estar entre os mais “tradicionais” nesse quesito com confusões dentro e fora de campo entrou para a lista com um caso em um Wanderers x Nacional no acanhado Parque Viera, em 20/03/2022. Mesmo sem muito destaque na mídia brasileira, também vale uma menção ao caso grave de um projétil pirotécnico, ou “bengala”, disparado atravessando o campo de um setor a outro da arquibancada no Monumental em pleno River x Boca, exatamente no mesmo dia. Dessa vez sem feridos nem interrupção da partida, por um capricho do destino não se repetiu um caso de morte em um Boca x Racing, em 1983, sob condições semelhantes. Como breve menção a um país em constante ebulição para o tema com incidentes de todos os tipos e em todos os patamares de clubes, em um cenário atual de crise de vários clubes grandes dentro de campo os protestos são praticamente semanais.

México Violência
Torcedores invadiram o gramado no México
Fonte: Reprodução

México

Invasão de campo além de uma ofensiva de hinchas do Querétaro contra hinchas do Atlas levando a dezenas de feridos, em 06/03/2022. A primeira ressalva aqui, recordando uma do início do texto, é contra o lugar comum pseudocrítico de “o futebol é um reflexo da sociedade”; afinal as estatísticas de violência geral e no futebol são muito discrepantes nesse país. Já uma segunda ressalva remete à plena colaboração da segurança privada para gerar uma ‘zona liberada’ e com isso reafirmar a investigação de um olhar crítico pela chave de leitura que por traz de uma violência direta certamente também há uma violência estrutural que a tornou possível. Um caso de imensa repercussão na mídia nacional e mundial, porém que irei dar destaque a um texto profundo (desse mesmo veículo que aqui escrevo) por ter dado destaque à rivalidade de cerca de 15 anos entre os dois clubes e as medidas punitivas imediatas. E sobretudo as críticas ao caráter inócuo das ‘notas de repúdio’ das federações e ao modelo de organização do futebol mexicano de plenas possibilidades de lucros, porém de negligência com direitos básicos de segurança

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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Temporada 2021-22: invasões de estádios e novas tragédias anunciadas. Ludopédio, São Paulo, v. 154, n. 37, 2022.
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