Reza a lenda (mais a de Luciano que a de Heródoto ou Plutarco) que em 490 a.C, depois de uma vitória sobre os invasores persas, um homem chamado Filípides correu os 42km que separam a cidade de Maratona da capital Atenas para anunciar o triunfo bélico grego. Em seguida, caiu morto por exaustão. Uma história bela e trágica, como costumam ser os mitos. E como, mais de dois mil e quinhentos anos depois, me parecem os Jogos Olímpicos.
A ‘maior ginasta de todos os tempos’ tem apenas 23 anos, está com a saúde emocional em frangalhos e questionam nas redes por que, afinal, ela foi competir se não era capaz. Ora, Simone Biles foi a Tóquio porque é um produto. A pergunta deveria ser: “Que competições são essas que custam o corpo e a mente nesse nível?”. Alçamos essas pessoas à condição de deuses olímpicos e, dessa forma, acabamos por desunamizá-los. Hoje, nada menos que a perfeição interessa. O que supostamente deveria servir como exemplo de saúde e bem estar é uma máquina de moer gente. Vale tudo, tudo mesmo pelo espetáculo, inclusive sacrificar nossos jovens. É esse o espírito olímpico?
Assista ao documentário Atleta A, sobre os abusos – psicológicos e sexuais – sofridos por milhares de ginastas americanas ao longo de anos. Toda a merda encoberta pela Federação e, inclusive, pelo FBI. Isso não é exclusividade dos EUA; está em todos os lados. Na idílica Austrália, houve um escândalo parecido.
O ambiente do esporte profissional, ao contrário da imagem que se vende, é tóxico na maior parte do tempo. Para meninas novas, nem se fala. Reformulando: o mundo hiper competitivo e focado no indivíduo é extremamente tóxico. Ponto. Sobretudo para mulheres jovens. E muitas modalidades elevam isso à enésima potência.
A boa e velha meritocracia
Você pode achar que ninguém obriga essas pessoas ao alto rendimento, mas isso é uma verdade meio fajuta, principalmente falando de Brasil. Duras realidades (e famílias esperançosas, clubes e comissões técnicas vorazes) empurram naturalmente cabeças em formação a um sonho dourado. Longe de mim deslegitimar sonhos de terceiros, mas é fundamental compreender e questionar o contexto em que brotam e por quais discursos são alimentados.
Em uma camada ainda mais inerente ao capitalismo, prega-se que através do esforço – puro e simples – é possível chegar a qualquer lugar e, veja!, no fim da linha todas as dores valem a pena (“Trabalhe enquanto eles dormem”, não é isso?).
Três cirurgias no joelho e infinitas horas de treino e de viagem talvez agora pareçam pouco para Rebeca Andrade, 22 anos, diante de sua medalha de ouro (e de prata). Mas o que o nosso país teria para essa menina preta periférica se ela tivesse inclinado a perna cinco centímetros mais numa classificatória? Na melhor das hipóteses, dedos apontados; na pior, armas.
Essa ‘meritocracia olímpica’, blindada por transmissões exageradamente ufanistas e despidas de senso crítico, é uma velha conhecida da nossa sociedade. Todo mundo adora uma história dramática, desde que ela termine em pódio. Um clássico: “Filha de empregada doméstica passa em 1o no vestibular” e as pessoas (geralmente fãs de bilionários, pela mesma lógica perversa) apressadas em destacar o exemplo de que, com dedicação e vontade, tudo é possível. E os outros milhões que não chegaram nem perto porque, bem, as regras do jogo eram basicamente impossíveis?
Fico com a sinceridade de Altobeli Silva, dos 3.000m com obstáculos. Eliminado precocemente de sua bateria, desabafou: “Quando você abre mão de tudo isso, se isola, espera um ótimo resultado e acontece o que aconteceu, eu sinceramente fico sem entender. Minha vontade é de chorar. Será que isso vale a pena? Se dedicar, se dedicar…”.
Foco, força e fé.