Quem já jogou uma pedra na água percebeu que esse contato produz ondas que se propagam em todas as direções. Nessa relação entre pedra e água o resultado da aproximação abrupta é movimento. Queremos comparar a água com o futebol de mulheres, um lago, que mesmo de maneira lenta, continua ganhando volume e inundando novos territórios.

O futebol de mulheres nos últimos anos tem conquistado espaço no Brasil, com maior reconhecimento e visibilidade da modalidade. Um comparativo com o futebol de homens ainda mostra um grande abismo a ser superado, principalmente, em relação aos melhores postos de trabalho em ambos mercados. As transformações envolvem equiparações no uso da estrutura de alguns clubes de futebol, nesse caso, podemos contar nos dedos os clubes da Série A do Campeonato Brasileiro de futebol de homens que disponibilizam de maneira semelhante um corpo técnico, equipamentos, materiais esportivos, alojamentos e espaço na mídia dos clubes para divulgar o futebol de mulheres.

Evitamos falar em salários, pois, a desigualdade como afirmado, é gritante. Para muitas mulheres jogar futebol, em clubes de menor expressão é um ato de amor, em seu sentido sacro, uma vocação. Infelizmente, a grande maioria viverá sem o bônus, as experiências se caracterizam mais com o ônus de uma ascese esportiva, cheia de privações, limitações, angústias e crença na mudança das condições.

Ita Maia
Foto: Reprodução ESPN / Youtube

Uma pós-atleta que viveu boa parte dessa experiência em décadas anteriores às mudanças que hoje podemos perceber, foi Ita Maia, como é conhecida. Nome que decorre de um apelido atribuído pelos irmãos dela. Atleta de grande destaque do futebol de várzea em São Paulo, atuando pelo clube Sociedade Esportiva Elite Itaquarense, Ita fez parte das primeiras equipes femininas do Sport Club Corinthians Paulista na década de 90. Professora de Educação Física, atualmente, continua orientando e formando meninas que amam jogar futebol.

O trabalho dedicado de Ita Maia ao futebol de mulheres rendeu reconhecimentos das colegas de profissão em uma época em que a modalidade sofria com muito preconceito, além de homenagens no Museu do Futebol em 2019 na exposição Contra-ataque! As mulheres no futebol. Ita provoca movimento na água, seja pelo seu passado ou pela dedicação de mais de 20 anos a formação de meninas para o futebol. Mesmo antes de os clubes de futebol profissional serem obrigados a manter categorias de base para mulheres, imposição do regulamento da CONMEBOL, a incansável Ita, já preparava e aprimorava os fundamentos técnicos de atletas que a procuravam na Associação Atlética Pró-Esporte (ASAPE) na cidade de São Paulo.

Asape Ita
Asape. Foto: Reprodução redes sociais

Natural de Irecê/BA, deu os primeiros passos na área rural com liberdade para as mais variadas brincadeiras e jogos de rua. Na escola Ita foi apresentada a várias modalidades esportivas, handebol, futebol, vôlei e atletismo. No primeiro momento se identificou com o handebol, e posteriormente, o futsal e futebol ganham espaço alternando competições em ambas as modalidades. Na cidade de Goiás/GO onde morou em um período e conheceu seu primeiro treinador, Lola, a relação de reciprocidade foi imediata e os papéis de pai e treinador se confundiam. Lola foi um grande incentivador para sua permanência na modalidade. Seu ídolo esportivo é Maradona, que adjetiva como “-o maior entre todos”.

Jogar futebol no período em que Ita desfilava talento em campo e quadra tinha caráter amador, as projeções para o futuro eram menos concretas do que o apresentado no cenário contemporâneo. Por essa razão, seguiu a orientação da mãe que incentivou sempre a contínua escolarização, dizendo que a única coisa que poderia dar um melhor futuro a ela e aos irmãos era o saber, algo que ninguém poderia tomar deles. Seu envolvimento com esporte apresenta como campo de possibilidade a formação na área de Educação Física.

Ita Silvana Goellner
Ita e Silvana Goellner. Foto: Reprodução redes sociais

A frustração que Ita dá destaque diz respeito ao Futebol Feminino não ter na sua época de atleta o reconhecimento de hoje.

“No meu caso a maior [frustração] foi ter talento e a modalidade só ter o seu reconhecimento muito tarde, com isso tirando oportunidade não só minha, mas de tantas outras meninas que gostariam de fazer parte de um grande time ou ter defendido a seleção do seu país”[1].

Um sentimento que vai e volta, mas que é esquecido sempre que uma menina recebe reconhecimento ou proposta de um futuro promissor no futebol. Segundo a própria Ita,

“Durante todo esse tempo que venho contribuindo com a formação de jovem talentos, que não são poucos. Penso, que ajudei a muitas meninas a realizar sonhos e torná-los realidade, sonhos esses que um dia também foram meus. Então, fico muito feliz vendo que meus sonhos estão hoje acontecendo com outras pessoas, o de jogar em uma equipe profissional e de chegar a uma seleção de futebol”[2].

Ita Juliana Cabral
Ita e Juliana Cabral. Foto: Reprodução redes sociais

Ita é um ícone do futebol de mulheres no Brasil, um futebol que lutou com a devoção de muitas mulheres que demonstraram força e que lutaram para continuar desbravando a modalidade. O significado do prefixo ita no troco linguístico Tupy-Guarani é pedra. Não temos ideia se os irmãos dela sabiam disso, mas no lago do futebol, Ita é a pedra que movimentou e movimenta as águas que parecem calmas. Seu trabalho dedicado à modalidade, especificamente, ao futebol de mulheres ganha proporções gigantescas ao ser projetado em cada menina que tem a oportunidade de viver a formação no futebol ao seu lado.

O choque dessa pedra na água propaga ondas que para alguns, quando olham de fora, parecem apenas marolas, agora, para quem vive os preconceitos e a desigualdades presentes no futebol de mulheres, representa uma verdadeira tsunami. Cada vez que damos mais visibilidade, que reconhecemos e lembramos os desafios das pioneiras no esporte, evitamos que a superfície do lago passe uma imagem de tranquilidade.

Ita Maia, é a pedra que não deixa esquecer que o futebol de mulheres continua expandindo seu espaço entre a população, a mídia, patrocinadores e mesmo institucionalmente nos órgãos que regulam a modalidade. Sua presença é um choque na realidade e enseja a esperança que nas suas ondas se propaguem o mais breve possível a igualdade e o reconhecimento do futebol de mulheres no Brasil.

Asape Ita
Foto: Reprodução redes sociais

 

Notas

[1] Trecho da entrevista concedida a Daniel Machado da Conceição e Alexandre Fernandez Vaz em janeiro de 2021. Agradecemos à Mariane Pisani pela gentileza do contato de Ita Maia.

[2] Trecho da entrevista (idem).

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Caroline de Almeida

Doutora e Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. Possui Graduação em História também pela Universidade Federal de Santa Catarina e Bacharelado em Educação Física pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Desde 2011, é pesquisadora do Núcleo de Antropologia Audiovisual e Estudos da Imagem (NAVI/UFSC), atuando, principalmente, nas áreas de esporte, globalização e gênero.

Daniel Machado da Conceição

Doutor em Educação, Mestre em Educação e Cientista Social pela UFSC. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (NEPESC/UFSC), Grupo Esporte & Sociedade.

Como citar

ALMEIDA, Caroline Soares de; CONCEIçãO, Daniel Machado da. Ita Maia, entre marolas e tsunamis. Ludopédio, São Paulo, v. 143, n. 62, 2021.
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