Já não é de hoje que a credibilidade e a imagem da Confederação Brasileira de Futebol, entidade que comanda o esporte que é paixão nacional, estão para lá de abaladas, arrastando para o lamaçal e jogando no volume morto as relações que os torcedores estabelecem com seus clubes de coração e, principalmente, com a Seleção Brasileira. A irresponsabilidade fiscal dos dirigentes, a dívida dos clubes, as estranhas transações e vendas de jogadores para o exterior (como se viu no caso Neymar, investigado tanto pelas autoridades judiciais brasileiras quanto na Espanha), o alto valor dos ingressos, a violência das torcidas organizadas, o monopólio da transmissão dos jogos, o descaso com os garotos da base, a falta de planejamento na Copa do Mundo (estouro no orçamento, arenas que são elefantes brancos, ausência de um legado verdadeiro ao esporte), o escrete nacional que só atua no exterior para atender interesses de empresários e de patrocinadores são apenas alguns dos descalabros que chegam ao público pelos noticiários e pelas mesas-redondas especializadas, despertando profundo desânimo até mesmo nos mais fanáticos e aficionados torcedores.

A virada de mesa que rebaixou a Portuguesa de Desportos e manteve o Fluminense na Série A do Brasileirão, ocorrida no final de 2013, é um dos tantos exemplos concretos e recentes a sugerir que, lamentavelmente, não são poucos os momentos em que nossos campeonatos são decididos nos bastidores de tribunais, e não nas pelejas que acontecem nos estádios. Quando a Lusa foi condenada pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva, nem o mais pessimista dos brasileiros poderia imaginar que o fundo do poço (será?) ainda não tinha sido alcançado e que se concretizaria de forma tão patética e humilhante, numa tarde tristíssima de 8 de julho de 2014, num Mineirão lotado e abestalhado, semifinal de Copa do Mundo. Por conta de tantas aberrações e bolas fora, um de nossos digníssimos dirigentes está preso na Suíça, investigado pelo FBI dos Estados Unidos e suspeito de participação no escândalo de corrupção  que envolve diversos dirigentes da FIFA. O atual manda-chuva da CBF não se arrisca a sair do país, com medo de também ser preso.

Como reação a esse cenário desolador e fio de esperança para os teimosos sonhadores que insistem em resgatar a força e a arte do futebol brasileiro, o Bom Senso Futebol Clube, surgido em 2013 e organizado e liderado por jogadores profissionais, tenta apresentar alternativas capazes de representar saídas para essa crise, chamando a sociedade a debater uma agenda que, se está longe de significar a salvação da lavoura boleira, oferece democraticamente um conjunto urgente e fundamental de reformas modernizadoras (racionalização do calendário nacional, fair play financeiro e punições para clubes devedores, segurança e comodidade para os torcedores).

A tarefa é nada simples: no Congresso Nacional, o Bom Senso enfrenta a resistência organizada e muito bem sustentada da chamada bancada da bola, muito mais preocupada em manter privilégios ancestrais e em abafar e sabotar investigações e mudanças. Se não houver organização e pressão da sociedade, dos torcedores e da imprensa especializada, o Bom Senso corre risco de ficar falando sozinho. Vale reforçar que a tal desejada transformação do nosso futebol não acontecerá da noite para o dia, num passe de mágica, salvadores da pátria. É um processo lento, desafiador, constante, construído coletivamente, marcado por idas e vindas, avanços e recuos, conflitos e enfrentamentos. E a injustificável recondução de Dunga como comandante da nossa Seleção, tendo Gilmar Rinaldi como fiel escudeiro, é mais uma ação oficial, de cima para baixo, que tenta detonar e enterrar quaisquer pretensões transformadoras.

O técnico Dunga chega para o anúncio do jogadores que participarão dos amistosos da seleção brasileira nos Estados Unidos, em Setembro, na sede da CBF, na Barra, Rio de Janeiro, Brasil, Agosto 13, 2015. Foto Leo Correa/Mowa Press
O técnico Dunga chega para o anúncio do jogadores que participarão dos amistosos da seleção brasileira nos Estados Unidos, a acontecer em setembro de 2015, na sede da CBF, na Barra, Rio de Janeiro. Foto Leo Correa – Mowa Press.

Chegou o momento de colocar ponto final na mediocridade. Os torcedores exigem transparência e diálogo. A regularidade e a série histórica de desempenho em campeonatos nacionais e regionais deveriam ser critérios para a escolha do treinador e do coordenador técnico da Seleção, sendo essencial que ambos tenham realizado trabalhos – técnicos, táticos, treinamentos, esquema de jogo, sintonia com o que acontece em outras escolas futebolísticas – reconhecidos nas equipes por onde  passaram. Também não se pode simplesmente abandonar, a priori, por conta de nacionalismos bestas e sem sentido, a perspectiva de contratação de treinadores estrangeiros, que tanto sucesso têm alcançado em outras modalidades esportivas nacionais (basquete, handebol e ginástica, apenas para citar algumas). Em recente entrevista veiculada pela ESPN Brasil, o lateral Daniel Alves revelou que o espanhol Pep Guardiola tinha um projeto para o futebol brasileiro e o desejo de treinar a Seleção na Copa de 2014. A CBF sequer quis ouvir o que o espanhol tinha a dizer. Mesmo reconhecendo o peso e como é difícil a convivência com cartolas e empresários, outro fator que precisa ser levado em conta é a isenção, sem abusos, privilégios ou interesses particulares na convocação e na escalação do time. Ou seja,  quanto menor o envolvimento em transações,  menos pressão e mais autonomia. Vamos abrir espaço para alguém que consiga pensar e efetivar filosofia de integração entre as categorias de base e o time principal. Por fim, é preciso cobrar que os novos comandantes sejam adeptos de um futebol competitivo, capaz de alcançar vitórias e títulos, mas sem deixar de lado os dribles e belos gols, razões de ser e diferenciais, desde sempre, do futebol brasileiro.

Sim, há que se reconhecer que a safra de boleiros não é espetacular, mas está longe de ser horrível. É boa, bem boa, aliás. Jogadores como Danilo, Thiago Silva, Marcelo, Luiz Gustavo, William, Oscar, Philippe Coutinho são destaques em clubes de ponta da Europa. E há o craque Neymar. Acrescentemos a essa lista atletas que atuam em times brasileiros e que têm feito por merecer chances na Seleção, entre eles alguns veteranos, como o centroavante Ricardo Oliveira, que foi eleito o craque do ultimo Paulistão e é um dos artilheiros do Brasileirão 2015, os meias Renato Cajá,  da Ponte Preta de Campinas,  que logo despertou interesse e foi negociado com o Sharjah FC, dos Emirados Árabes. Somam-se ainda algumas revelações e destaques, como o meia Lucas Lima (Santos), o volante Rafael Carioca (Atlético Mineiro), além de outros que já têm passagem recente pelo escrete canarinho, como os corintianos Gil e Elias. Alguns mereciam ao menos testados, de verdade. A capacidade técnica desses atletas contesta a teoria da escassez de bons boleiros e da Neymardependência.

O técnico Dunga anuncia os jogadores que participarão dos amistosos da seleção brasileira nos Estados Unidos, em Setembro, ao lado do telão com a imagem do jogador Neymar, na sede da CBF, na Barra, Rio de Janeiro, Brasil, Agosto 13, 2015. Foto Leo Correa/Mowa Press
O técnico Dunga anuncia os jogadores que participarão dos amistosos da seleção brasileira nos Estados Unidos, em Setembro, ao lado do telão com a imagem do jogador Neymar, na sede da CBF, na Barra. Foto Leo Correa – Mowa Press.

Alguns justificam a ausência de veteranos alegando exatamente a idade avançada, mas então o que dizer de Miroslav Klose,  Nilton Santos e  Dino Zoff, entre outros que exibiram seus talentos em Copas do Mundo, sendo vitoriosos com mais de 30 anos? Por fim, não menos importante, é fundamental abrir espaço e valorizar as categorias de base. Assim,  a mescla daria oportunidade a todos, independentemente da idade e do clube onde atua o atleta. Afinal, se o conceito de seleção é a escolha dos melhores atletas da modalidade, em cada posição, torna-se necessário talvez fazer o mesmo que fez o jornalista e ex-técnico da seleção João Saldanha, quando convocou  somente craques, que chamava de feras, para as eliminatórias da Copa do Mundo de 1970, iniciando assim a caminhada para o tricampeonato.

Claro, o cenário é diferente. Mas somente com uma revolução de mentalidades e o retorno da tradição do futebol-arte à seleção brasileira será possível retomar os dias de glória e o respeito dos adversários. Caso contrário, ficaremos acuados e continuaremos a conhecer derrotas humilhantes, como no Mundial do ano passado e na última Copa América. Que os sete a um e os pênaltis paraguaios sejam, de fato, um divisor de águas para o futebol brasileiro.

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Francisco Bicudo

Paulistano, 43 anos, sou formado em Jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e mestre em Ciências da Comunicação pela mesma universidade. Minha paixão por futebol surgiu antes de nascer. Sou torcedor do Santos Futebol Clube e acompanho todos os torneios, partidas e mesas-redondas que possam caber nas 24 horas de um dia. Segundo colocado no Prêmio de Reportagem sobre a Mata Atlântica, edição 2014, categoria revista, fiz a especialização em Política Internacional na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Sou autor de três livros: 'Caros Amigos e o resgate da imprensa alternativa no Brasil', editora Annablume, 2004; 'Saúde - Exercício da vida', editora Salesiana, 2009; e 'Memórias de uma Copa no Brasil' (crônicas), Chiado Editora, 2014. Fui coordenador do curso de Jornalismo da Universidade Anhembi Morumbi e sou professor da instituição desde 2001. Sou repórter colaborador da revista 'Pesquisa Fapesp' e escrevo para a internet em meu blog pessoal: www.oblogdochico.blogspot.com

Luciano Victor Barros Maluly

Graduado em Comunicaçao social - Habilitação em Jornalismo pela Universidade Estadual de Londrina (1995), Mestrado em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (1998), Doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (2002), Pós-doutorado na Universidade do Minho em Portugal (2011) e Livre Docente pela ECA-USP (2016). Atua como professor e pesquisador na Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em radiojornalismo e jornalismo esportivo. È autor do livro JORNALISMO ESPORTIVO - PRINCÍPIOS E TÉCNICAS (Editora do Autor, 2017)

Como citar

BICUDO, Francisco; MALULY, Luciano Victor Barros. Já Era Dunga. Ludopédio, São Paulo, v. 74, n. 10, 2015.
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