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Jacobo Urso, a alma de Almagro

O jogador permaneceu em campo mesmo com duas costelas quebradas e um rim perfurado para não deixar seu clube do coração com um a menos em campo

No dia 13 março de 2013, um evento distante, a mais de 11 mil quilômetros de Buenos Aires, levou o San Lorenzo de volta aos holofotes da imprensa esportiva mundial. Era a primeira vez na história que um clube teria um torcedor papa ou um papa torcedor.

O início do pontificado de Francisco coincidiu com a boa fase do clube de Boedo e culminou no improvável troféu da Copa Libertadores de América, em 2014. Há quem diga que tenha sido um milagre do santo papa, Jorge Bergollio – nome de nascimento do papa – o mais humano dos pontífices e o fato de não esconder sua paixão pelo San Lorenzo é uma prova disso.

No entanto, bem menos conhecida e bem mais “milagrosa” é a história de vida e morte de Jacobo Urso, o mártir do San Lorenzo.

Foto: Museu Jacobo Urso / Reprodução

Nascido em 17 de abril de 1899, na província de Dolores, Jacobo Urso entrou para as categorias juvenis do San Lorenzo no início de 1915, aos 16 anos, junto ao seu irmão Antonio. Começou ali uma trajetória de devoção ao clube azulgrana e uma carreira que se misturaria aos principais acontecimentos da história do San Lorenzo no início do século passado.

No ano em que o jovem Jacobo iniciou no clube, El Ciclón estreou na primeira divisão do Campeonato Argentino. A vitória por 2 a 1 sobre o Estudiantes, em 7 maio de 1916, marcou a primeira partida de Urso no time adulto. Com apenas 17 anos, Jacobo uniu sua estreia a mais um feito histórico no clube: jogou na partida de inauguração do primeiro estádio construído pelo San Lorenzo, El Gasómetro.

As boas atuações como lateral-esquerdo e como zagueiro renderam uma convocação para a Seleção Argentina. Mais um feito de Jacobo Urso, o primeiro jogador do San Lorenzo a integrar a Albiceleste.

O jogador nunca foi reconhecido como craque, mas sim pela garra que entregava em campo e pelo amor que demonstrava pela camisa do San Lorenzo. A cada temporada, a identificação de Urso com o Ciclón crescia e, em pouco tempo, ele se transformou numa das referências da equipe azulgrana.

No início dos anos 1920, Jacobo Urso era o que poderia se chamar de jovem veterano, tamanha sua identificação com o San Lorenzo, com apenas 23 anos. Respeitado como jogador símbolo do clube, Urso seria um dos primeiros ídolos de Boedo.

Naquele domingo, dia 30 de julho de 1922, o jogo contra o Estudiantes era válido pela 13ª rodada do Campeonato Argentino. Urso não estaria em campo, mas a lesão de um companheiro o levou à partida.

Aguerrido como de costume, Urso não via bola perdida ou dividida em que não entrasse para ganhar. Aos 10 minutos da etapa final, uma dura disputa na linha central do gramado contra dois rivais e o placar empatado sem gols. A maioria dos jogadores tiraria o pé numa situação dessas. Relatos da época contam que Jacobo não evitou o choque e foi atingido fortemente por Comolli e Van Kammenade.

Depois da forte dividida, Jacobo passou a respirar com dificuldade e foi à beira do campo pedir água. Quando se aproximou do banco de seu time, o treinador viu que Urso sangrava pela boca e nariz. O comandante pediu para que o jogador deixasse o gramado, mas Urso não admitiu deixar o San Lorenzo com um homem a menos, já que não existiam substituições.

Assim que a partida terminou, Jacobo foi levado às pressas ao Hospital Ramos Mejía, onde foi diagnosticado com fraturas em duas costelas, uma delas lhe perfurou o rim e, ainda assim, Urso permaneceu em campo até o apito final.

A versão extra-oficial dá conta de que Jacobo ainda teria ido tomar umas cervejas após o término do jogo e que passara mal no bar, mas isso parece ser lenda urbana, serve como folclore para aumentar o mito do jogador que deu a vida pelo time de Almagro.

Fato é que uma semana depois, no dia 6 de agosto de 1922, às 18h05min, após passar por duas cirurgias, Jacobo Urso morreu após complicações da lesão.

O cortejo fúnebre foi acompanhado por mais 7 mil pessoas que carregaram o caixão de Jacobo pelo bairro de Almagro, hoje Boedo, até o estádio Gasómetro, numa espécie de velório no campo em que tantas vezes Urso defendeu o San Lorenzo com todas as suas forças e na última delas — como quis o destino — contra o mesmo Estudiantes de sua estreia, Jacobo Urso deu a vida.

Apenas no ano seguinte, em 1923, o San Lorenzo conquistou o inédito título da primeira divisão. Os mais supersticiosos azulgranas dirão que com a ajuda sobrenatural de Urso. O jogador foi homenageado pelo clube ao batizar o museu do San Lorenzo, onde suas cinzas repousam num busto em sua homenagem.

No Código de Direito Canônico, o martírio consta como um dos critérios para analisar um processo de beatificação. Não há dúvidas de que Jacobo Urso foi o mártir de Almagro e deu a vida pelo San Lorenzo. O clube azulgrana, que já tem um papa, poderia ter também, pelas mãos dele, um verdadeiro santo, São Jacobo Urso de Boedo, o mártir do San Lorenzo.

Foto: Museu Jacobo Urso / Reprodução

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Pedro Henrique Brandão

Comentarista e repórter do Universidade do Esporte. Desde sempre apaixonado por esportes. Gosto da forma como o futebol se conecta com a sociedade de diversas maneiras e como ele é uma expressão popular, uma metáfora da vida. Não sou especialista em nada, mas escrevo daquilo que é especial pra mim.

Como citar

BRANDãO, Pedro Henrique. Jacobo Urso, a alma de Almagro. Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 18, 2020.
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