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Jaime de Almeida e Barbosinha: suas trajetórias futebolísticas e contribuições para a intelectualidade negra brasileira

Maurício Rodrigues Pinto 20 de janeiro de 2021

“Somente a reflexão crítica sobre a sociedade e sobre a própria condição pode fazer um indivíduo, mesmo sendo negro, enxergar a si próprio e ao mundo que o circunda para além do imaginário racista.” (ALMEIDA, 2018, p. 53).

A inspiração para esse texto vem do meu maior contato nos últimos tempos com leituras e reflexões sobre a questão racial no país e da consciência da importância de me apropriar e aprender com epistemologias negras, que por tanto tempo foram relegadas ao segundo plano e possibilitam chaves interpretativas mais complexas acerca da história sociocultural do país e das dinâmicas de raça, classe e gênero. Foi dessa forma que me aproximei das ideias e das obras de importantes intelectuais negras e negros brasileirxs de diferentes momentos históricos, como Lélia Gonzalez1 e Silvio Almeida2.

Em comum, ambxs carregam consigo uma herança cultural e intelectual que são profundamente marcadas pelos laços com a cultura popular brasileira e, mais especificamente, com o universo do futebol espetacularizado. Jaime de Almeida3 (irmão de Lélia Gonzalez e meio campista que fez história no Clube de Regatas do Flamengo na década de 1940) e Barbosinha4 (pai de Silvio Almeida e goleiro com passagem pelo Sport Club Corinthians na segunda metade da década de 1960), além dos laços consanguíneos com esses intelectuais, fizeram carreira em dois dos principais clubes de futebol do país. A inserção no futebol espetacularizado fez com que ambos rompessem com algumas das barreiras que eram (e ainda são) impostas à população negra brasileira, inclusive a futebolistas negros. São as trajetórias desses futebolistas e alguns dos seus laços com estes importantes nomes da intelectualidade negra brasileira que buscarei desenvolver ao longo deste ensaio.

Lélia Gonzales. Foto: Wikipédia

É possível dizer que a trajetória de Lélia Gonzalez, nascida em 1935 na cidade de Belo Horizonte, foi influenciada pela atuação do irmão Jaime de Almeida, futebolista renomado na década de 1940 e que viria também a ser técnico do próprio Flamengo e no Peru, onde faleceu no ano de 1973. Ao se transferir do Clube Atlético Mineiro para o rubro-negro carioca, em 1942, Jaime foi o responsável por levar Lélia e toda a família de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro, onde Lélia passou a maior parte da vida, estudou e, posteriormente, veio a fazer carreira como professora, tradutora, pesquisadora e também como importante ativista política dos movimentos negro e feminista.

A excelente biografia Lélia Gonzalez, fruto da pesquisa realizada por Alex Ratts e Flávia Rios (2010), mostra que Jaime constituiu-se em uma referência importante para a trajetória construída por Lélia. Não apenas sendo o principal responsável pelo sustento da família após a mudança para o Rio de Janeiro – fato recorrente na trajetória de muitos atletas profissionais no Brasil que conseguem a ascensão socioeconômica por meio do futebol –, mas também tendo assumido um lugar de pai simbólico para Lélia (RATTS; RIOS, posição 218), de acordo com a própria. Mais do que isso, Jaime, na condição de atleta de futebol de um grande clube brasileiro, conseguiu também “ultrapassar a barreira de cor” imposta para a população negra, convertendo-se em um modelo para Lélia.

Meio campista elegante e famoso pelo jogo limpo, Jaime de Almeida foi um dos principais destaques do Flamengo na década de 1940, conquistando o tricampeonato carioca em 1942, 1943 e 1944. Atuou também pela Seleção Brasileira, tendo participado da conquista da Copa Roca, em 1945. O destaque no rubro negro carioca fez com que Jaime, ao final da carreira de jogador, se tornasse auxiliar técnico, supervisor de futebol e chegasse a assumir o posto de técnico do clube em diferentes períodos da década de 1950, trajetória que guarda semelhanças com a feita por seu filho Jayme de Almeida Filho, que anos depois também viria a se tornar jogador, integrante da comissão técnica e treinador do próprio Flamengo5.

Jaime de Almeida e Jayme de Almeida Filho. Fotos: Reprodução Facebook

Tamanha grandeza alcançada em um dos principais clubes do Rio de Janeiro e do Brasil fez com que Jaime de Almeida ganhasse destaque no clássico livro O negro no futebol brasileiro, do cronista esportivo Mario Rodrigues Filho (2003). Importante destacar que a profissionalização do futebol carioca, oficialmente implementada em 1933 (MALAIA, 2008), ainda era um processo recente, o que regulamentou a contratação de jogadores que poderiam se dedicar exclusivamente à prática do futebol – em sua maioria negros, provenientes de setores pobres e mais subalternizados da sociedade brasileira.6

Ainda que o seu grande talento, dedicação e esportividade sejam reverenciados por Mario Filho, é evidente também nas referências feitas a Jaime a influência de concepções estigmatizantes que recaíam sobre a população negra na sociedade brasileira. Ratts e Rios (2010, posição 190) ressaltam que, assim como ocorreu com Lélia – e com muitas pessoas negras que excedem as expectativas impostas pelas normas de uma sociedade orientada pelo racismo, como a brasileira – “Jaime também teve de se conformar com determinados padrões de comportamento que apareciam na maneira como sua corporeidade era vista e interpretada”.

Isso fica muito evidente na passagem em que Mario Filho, ao elogiar a boa aparência, a saúde, a imponência, assim como a “limpeza, bondade e lealdade” de Jaime de Almeida, destaca o que, ao seu ver, seriam qualidades excepcionais para a grande maioria dos homens negros ao mesmo tempo que seriam valores entendidos como mais ordinários para a branquitude:

“Era um preto bonito, de cara redonda, cheio de saúde, alto, com aquela dignidade boa, de alma, que a gente via no cinema, em certos pretos imponentes, escolhidos a dedo, para representar o mordomo do velho Sul dos Estados Unidos. Bastava, com a fantasia solta, fechando os olhos, vestir Jaime de Almeida de mordomo de My old Kentucky home. Falava manso, a voz um pouco arrastada de mineiro. Tudo nele recendia limpeza, bondade, lealdade.” (FILHO, 2003, p. 266 – grifos meus)

Jaime de Almeida. Foto: Reprodução

Ainda que o futebol representasse um meio de ascensão e de reconhecimento social para homens negros e pobres, tal reconhecimento era marcado também pela reafirmação do lugar de subalternidade do negro em relação ao branco na sociedade brasileira, como faz Mario Filho ao associar as “virtudes” vistas em Jaime de Almeida com um mordomo de filme estadunidense. É importante lembrar que nesse momento histórico, em que o futebol no Brasil passa a ser elevado ao status de um dos principais símbolos da identidade nacional, os discursos autorizados acerca do futebol no Brasil eram feitos quase que estritamente a partir de uma perspectiva branca (masculina, cisgênera e heteronormativa).

Em seu exercício de análise e descrição da inserção do negro no futebol brasileiro, Mario Filho não nega a sua afinidade com uma linha de pensamento que, ao mesmo tempo em que elogia a miscigenação, recorre à essencialização e à exotização de atributos de mulheres e homens negros. Assim, consolidou-se o mito da democracia racial no Brasil e de uma relação harmônica entre as raças, forjada por intelectuais brasileiros, como o sociólogo Gilberto Freyre, que não por acaso redige o prefácio da primeira edição do livro de Mario Filho.

Lélia Gonzalez, com a ironia e a perspicácia que caracterizam alguns de seus textos, expõe o que há por trás dessa corrente que, por meio do mito da democracia racial e da tentativa de afirmação de um processo de miscigenação homogeneizante orientada para o branqueamento (MUNANGA, 2019), minimizou os impactos do racismo no Brasil, sobretudo para a população negra, relegando o negro e as suas expressões culturais em um lugar de subalternidade. Além disso, creio não haver melhor argumentação para responder à altura a descrição feita por Mario Filho:

“Racismo? No Brasil? Quem foi que disse? Isso é coisa de americano. Aqui não tem diferença porque todo mundo é brasileiro acima de tudo, graças a Deus. Preto aqui é bem tratado, tem o mesmo direito que a gente tem. Tanto é que, quando se esforça, ele sobe na vida como qualquer um. Conheço um que é médico; educadíssimo, culto, elegante e com umas feições tão finas… Nem parece preto.” (GONZALEZ, 1984, p. 226 – grifos meus)

A posição de goleiro de futebol é um desses lugares sociais em que ainda persiste um certo estigma em relação à presença e ao destaque alcançado por homens negros. Diversos goleiros negros tiveram as suas trajetórias marcadas por críticas e acusações de conotação racista, que extrapolavam as eventuais falhas técnicas, enquanto outros tiveram enorme dificuldade em conseguir espaços em grandes clubes em função do olhar de que negros não teriam aptidão para jogar no gol. Barbosa, goleiro titular da Seleção Brasileira na Copa de 1950 (e um dos grandes ídolos do Clube de Regatas Vasco da Gama), talvez seja o maior exemplo do preconceito em relação ao goleiro negro. O Maracanazo, que por muito tempo foi considerada a maior derrota sofrida pelo futebol brasileiro, ficou muito associado à figura de Barbosa, que carregou o peso dessa derrota por toda a carreira e por quase toda sua vida.

Não à toa, o racismo que marcou a carreira e a vida de Barbosa alcançou outros atletas negros que se aventuraram no gol, em especial nas décadas de 1950 e 1960. Talvez tenha sido exatamente por esse estigma em torno de Barbosa e do goleiro negro que Lourival de Almeida Filho, goleiro do Corinthians entre 1967 e 1968, tenha se notabilizado pelo apelido de Barbosinha, em alusão ao histórico goleiro vascaíno. Barbosinha é pai de Silvio Almeida, atualmente um dos intelectuais mais reconhecidos do país, e que em muitas entrevistas e falas públicas menciona com orgulho o fato do pai ter sido goleiro do Corinthians:

“Eu sou filho de jogador de futebol, meu pai foi goleiro do Corinthians na década de 60 e, além disso, eu sou também neto, no caso o pai do meu pai, de um dos fundadores do Vai-Vai, ou seja eu também sou forjado no samba. […] A cultura pra nós, o que se chama de cultura de maneira geral, de arte, de entretenimento, é forma de resistência, é forma da gente se educar…” (ENTRELINHAS, 2020 – transcrição e edição minhas)

Silvio de Almeida. Foto: Wikipédia

Em uma pesquisa superficial por buscadores de internet, usando como palavras-chaves “goleiro Barbosinha” e “Barbosinha Corinthians”, é possível encontrar notícias que fazem referência à morte do ex-jogador corinthiano, em 2015, destacando o fato de ele ter sido goleiro do Corinthians na década de 60. Todas as matérias feitas na ocasião7 trazem informações similares sobre o jogador, baseadas na minibiografia de Barbosinha presente no Almanaque do Timão:

“Era considerado uma grande revelação, principalmente depois de defender alguns pênaltis em amistosos. Mas depois de sofrer dois gols de falta do palmeirense Tupãzinho no clássico que tirou o Corinthians da disputa do título paulista de 1967 (0 x 2, 19/11), Lourival de Almeida Filho, o Barbosinha, se tornou um homem marcado. Acusado de frangueiro por alguns, de vendido por outros (em um dos lances ficou a impressão de que ele realmente tirou o corpo da bola), passou a ser marginalizado no Parque São Jorge.” (UNZELTE, 2000, p. 464)

Foi preciso fazer uma pesquisa por alguns periódicos da época para conseguir levantar mais detalhes da carreira de Barbosinha. Em 1967, quando estreou pelo Corinthians, o clube já vivia um jejum de 13 anos sem títulos, que seria encerrado apenas em 1977. Nesta temporada, Barbosinha revezou-se na titularidade da meta corinthiana com Marciel – goleiro que já estava há mais tempo no clube –, e foi um dos destaques da boa campanha realizada pelo alvinegro paulista na Taça Roberto Gomes Pedrosa, campeonato nacional em que o time chegou a disputar o quadrangular final, mas que acabaria seria vencido pelo seu maior rival, o Palmeiras.

Reproduzo aqui trecho de uma reportagem do Jornal dos Sports, de abril de 1967, cobrindo a vitória corinthiana sobre a Portuguesa de Desportos, em partida válida pela Taça Roberto Gomes Pedrosa, que teve Barbosinha como principal figura:

“Com o goleiro Barbosinha garantindo o resultado, ao defender tudo no final do jogo, o Corinthians derrotou a Portuguesa de Desportos por 2 a 1 – placar do primeiro tempo – ontem à noite, no Estádio do Pacaembu, passando à liderança isolada do grupo “A” no Campeonato Roberto Gomes Pedrosa […]. Na etapa complementar, a equipe da Portuguesa de Desportos voltou mais desinibida, procurando insistentemente o empate, com incursões perigosas de Ratinho, Leivinha e Ivair, que, no entanto, encontraram uma barreira intransponível no goleiro Barbosinha, que garantiu a vitória do Corintians.” (CORINTIANS, 1967, p. 5).

Barbosinha. Foto: Reprodução
É interessante perceber e questionar como as tentativas recentes de recuperação da trajetória futebolística de Barbosinha acabaram sendo apreendidas por visões simplistas e influenciadas pelo racismo, de forma que acabaram resumindo a carreira de um atleta a uma derrota ou insucesso e retomando o estigma da incompetência e/ou despreparo do goleiro negro. Este é mais um exemplo que evidencia que ainda há muito a se fazer no que diz respeito à desconstrução do racismo enquanto estrutura e mesmo como ideologia, que contribui para naturalização de imaginários estigmatizantes sobre as pessoas negras (ALMEIDA, 2018).

O próprio Silvio Almeida reflete sobre o preconceito que recai sobre futebolistas negros, sobretudo quando buscam se consolidar em algumas posições do jogo que requerem liderança ou confiança plena, caso do goleiro:

“Eu costumo dizer que tem três posições, três papéis dentro do futebol que são muito evidentes quando se pensa a questão racial e a naturalização do lugar do branco e o do negro na posição subalterna, que são os lugares de elaboração, de racionalização, de pensamento. [Um deles] é o treinador, depois o goleiro e o terceiro é o capitão de time. Porque o goleiro precisa ter uma coisa que, em geral, a nós negros é negada, que é a confiança. Geralmente não se confia em negro e você precisa confiar no goleiro. O goleiro é aquele que vai ter aquela visão, que tem o papel de organizar… É claro, existem goleiros negros, existem treinadores negros, mas vejam que isso não é algo que é natural, que é construído a partir de algo que é normal, porque vira notícia. O treinador negro vai virar notícia. Então, o fato do espanto das pessoas em relação a isso, já é um índice importante pra pensar essa questão.” (ENTRELINHAS, 2020 – transcrição e edição minhas)

Silvio menciona também a função de técnico e é importante ressaltar que ainda que os negros numericamente representem a maioria entre jogadores e jogadoras de campo – além do fato de que a maior parte dxs principais atletas da história do futebol brasileiro sejam de ascendência negra, tais como Friedenreich, Leônidas, Pelé, Garrincha, Didi, Romário, Formiga, Marta e Cristiane –, a mesma representatividade negra não é vista ocupando esta posição de comando, sendo os técnicos negros, muitas vezes, submetidos a um escrutínio diferenciado, tendo que se deparar com maiores dificuldades e resistências quando buscam a sua inserção ou consolidar espaço neste mercado.8

Jaime de Almeida e posteriormente seu filho, Jayme, são exemplos dessa dificuldade, por parte de dirigentes, torcidas e da mídia esportiva, do reconhecimento de técnicos negros como plenamente capazes para assumir tal posição de comando e de elaboração de estratégias. Ambos eram funcionários do clube e ocuparam a posição de técnico principal do Flamengo em situações excepcionais ou na condição de “permanente interinidade”, tendo encontrado dificuldades para construir carreira em outros clubes brasileiros. Isso mostra que nem a reputação construída como atletas, tampouco a conquista de títulos de expressão no exercício da função de técnico, foram considerados atributos suficientes para que conquistassem a credibilidade para ascenderem dentro da hierarquia futebolística e consolidassem suas carreiras como técnicos. No caso de Jaime de Almeida, foi preciso migrar para o Peru para desfrutar do respeito e do reconhecimento como treinador, construindo uma carreira vitoriosa, tendo sido considerado um dos responsáveis pela promoção ao profissional daquele que é tido como o maior futebolista peruano, Teófilo Cubillas (SIMPLICIO, 2019).

Lélia faleceu em julho de 1994, às vésperas da conquista do tetracampeonato mundial pela seleção brasileira de futebol masculino. Pouco se sabe da sua ligação com o futebol, mas dado o seu enorme interesse e reflexões sobre variados temas e questões ligadas à cultura popular, é quase certo que de alguma forma ela guardasse algum interesse pelo jogo e mais ainda pelo Flamengo, clube mais popular do país e que marcou a história da sua família por gerações. O clube, aliás, é mencionado em um dos seus textos mais conhecidos, “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, no qual a intelectual questiona a resistência da epistemologia branca em reconhecer e compreender traços culturais de origem negra/africana que constituem a cultura brasileira. Ao fazer isso, ela reafirma a importância da interpretação da sociedade e da cultura brasileira pela perspectiva de intelectuais negrxs:

“É engraçado como eles gozam a gente quando a gente diz que é Framengo. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram que a presença desse “r” no lugar do “l”, nada mais é que a marca linguística de um idioma africano, no qual o “l” inexiste. Afinal, quem que é o ignorante? Ao mesmo tempo, acham o maior barato a fala dita brasileira, que corta os erres dos infinitivos verbais, que condensa você em cê, o está em tá e por aí afora. Não sacam que tão falando pretuguês.” (GONZALEZ, 1984, p. 238) 9

Já Silvio Almeida, como mencionado anteriormente, sempre faz questão de mencionar a importância que o futebol teve e ainda tem para a sua formação intelectual e política. Concluo este texto trazendo a sua visão sobre como o futebol é uma expressão cultural fundamental da sociedade brasileira, constituindo-se, assim, em um significativo campo de resistência política e de “disputa de sentidos pelo mundo”. Se Silvio Almeida está pensando no potencial emancipatório da apropriação do futebol pela população negra do país (principalmente por homens negros), permito-me aqui a acreditar que este potencial pode vir a ser ainda maior, à medida que os futebóis venham a ser apropriados e ressignificados por outros grupos sociais historicamente subalternizados (processo esse que já vem acontecendo), contribuindo para a maior afirmação política desses atores e atrizes sociais:

“Acho que o futebol é um síntoma e um dos elementos fundamentais da nossa brasilidade, é um lugar de resistência, um espaço de luta. E como espaço de luta, espaço de resistência, o futebol é um espaço político também. Aqueles que querem negar o caráter político do futebol, o fazem também politicamente, em nome de uma disputa. O que a gente faz de fato é lutar pelos sentidos do mundo e o futebol, pra nós, tem tanta importância que também nós lutamos pelo sentido do futebol na composição daquilo que é a identidade nacional, aquilo que é o Brasil e aquilo que o Brasil pode ser. Eu tenho essa relação com o futebol e nesse sentido o futebol se apresenta na vida de muitos de nós, na minha vida, não apenas como uma análise daquilo que o Brasil é, ou daquilo que o Brasil foi, mas daquilo que o Brasil pode ser. O que eu sou hoje, o que muitos de nós negros brasileiros somos é resultado dessa disputa de sentidos que fizemos. O futebol expressa toda nossa luta. Tudo aquilo que somos é resultado de uma luta por um sentido do futebol, mas o sentido que não é só do futebol, mas um sentido do futebol dentro de um país de inúmeras possibilidades que são negadas historicamente ao povo trabalhador, ao povo negro do Brasil.” (ENTRELINHAS, 2020 – transcrição e edição minhas)

 

Notas

1 Lélia Gonzalez (registrada no nascimento como Lélia de Almeida) nasceu em 01 de fevereiro de 1935, em Belo Horizonte (MG). Mudou-se com a família para o Rio de Janeiro aos 7 anos, onde estudou e construiu a sua carreira como tradutora, professora, antropóloga, feminista e militante antirracista. É considerada uma das maiores intelectuais brasileiras do século XX, tendo participado da fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978, e do Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras. Lélia faleceu em 10 de julho de 1994, aos 59 anos de idade (RATZ; RIOS, 2010; GONZALEZ, 2020).

2 Silvio Luiz de Almeida nasceu em 17 de agosto de 1976, na cidade de São Paulo. É advogado, filósofo e professor universitário em universidades brasileiras e estrangeiras. É considerado um dos mais importantes intelectuais brasileiros da atualidade. É presidente do Instituto Luiz Gama e autor do livro “O que é racismo estrutural?”, que teve a sua primeira edição publicada em 2018.

3 Jaime de Almeida nasceu em São Fidélis, no dia 28 de agosto de 1920. Revelado pelo Sete de Setembro-MG, passou ao Atlético Mineiro, vindo para o Flamengo no início de 1941, ficando até 1950. No início da carreira, atuava como centromédio. Pouco depois de chegar ao Flamengo foi deslocado para a função de médio-esquerdo, na qual se consagraria. Foi também treinador do clube por várias passagens durante as décadas de 40 e 50, às vezes acumulando a função com a de jogador. Em 1961 foi trabalhar no futebol peruano, dirigindo o Alianza Lima, um dos clubes mais populares do país. Foi campeão peruano em 1962, 1963 e 1965 comandando a equipe. Faleceu na capital peruana em 17 de maio de 1973, aos 52 anos.

4 Lourival de Almeida Filho, o Barbosinha, foi goleiro do Corinthians entre 1967 e 1968, tendo vestido a camisa do clube por 34 jogos. Teve passagens por Atlético-PR e Tiradentes (PI). Após o fim da carreira como goleiro, tornou-se funcionário público, trabalhando como fiscal para a Prefeitura de São Paulo. Faleceu em 15/10/2015, aos 74 anos.

5 Jayme de Almeida Filho nasceu em 17 de março de 1953, no Rio de Janeiro. Filho de Jaime de Almeida e sobrinho de Lélia Gonzalez iniciou a sua carreira de jogador de futebol no Flamengo, em 1973. Considerado um zagueiro técnico, Jayme disputou 193 partidas pelo Flamengo e teve passagens por outros grandes clubes brasileiros, como São Paulo, Sport (PE) e Guarani (SP), antes de encerrar a carreira de atleta. Fez parte da comissão técnica do Flamengo durante a década de 2010 e assumiu a posição de técnico do clube por algumas vezes, oscilando entre a condição de técnico interino e efetivado. Como técnico do Flamengo, sagrou-se campeão da Copa do Brasil em 2013. Desde o fim da sua última passagem pelo Flamengo, em 2018, Jayme não conseguiu voltar a trabalhar como técnico por outro clube.

6 Malaia (2008) ao analisar o processo de popularização e profissionalização do futebol carioca nas primeiras décadas do século XX, comenta: “A profissionalização do futebol brasileiro se deu num momento de expansão industrial das grandes capitais que atraíam mais pessoas para as cidades e criava condições para que pudesse haver mais público nos estádios. Ressalta-se que é uma profissionalização do futebol brasileiro, e não simplesmente a profissionalização oficial do jogador de futebol brasileiro, que só acontece em 1933” (p.8). “O futebol já era profissional e só os ‘artistas’ é que estavam impedidos de ganhar dinheiro. Uma barreira criada pela elite para impedir que os jogadores dedicados exclusivamente ao futebol, geralmente negros e mulatos ou brancos pobres que atuavam nas ligas suburbanas, invadissem o futebol da elite do Rio de Janeiro.” (MALAIA, 2008, p. 7-8)

7 Uma dessas reportagens sobre a morte de Barbosinha foi feita pelo portal Gazeta Esportiva, com o título “Ex-goleiro do Corinthians, Barbosinha morre em São Paulo”, de 20 de outubro de 2015. Acesso em 07/01/2020.

8 Em conversa com Silvio Almeida, durante o programa Entrelinhas, o hoje treinador Roger Machado reflete sobre o reduzido número de técnicos negros ocupando cargos em grandes clubes brasileiros. Roger também falou sobre a leitura que faz do racismo no futebol a partir da sua atual posição de técnico: “Eu penso que o futebol imita, representa, repete o que é a nossa sociedade e algumas vezes eu penso que o futebol é como uma caricatura da nossa sociedade. A prova pra mim de que o racismo, assim como no futebol, é muito parecido com o que acontece na sociedade, porque como negros habilidosos com a bola nos pés, nós temos uma representatividade talvez proporcional a que nós temos na sociedade como maioria. Se a gente fizer uma contabilização, nós vamos ser 50% no campo. Porém dentro dessa estrutura hierárquica da sociedade, do alto dessa pirâmide, ou seja, daqueles que detêm o poder de decidir no futebol, quando eles olham lá pro campo, brancos e negros, invariavelmente todos somos pretos e senão pretos, viemos da mesma classe social. Porém quando acaba essa passagem pelo campo, quando brancos e negros, ex-jogadores de futebol, decidem ascender pra outro andar da hierarquia social começam-se os filtros.” (ENTRELINHAS, , 2020 – transcrição e edição minhas)

9 De acordo com Ratts e Rios (2010), Lélia Gonzalez passou a adotar o “pretuguês”, que segundo ela era uma categoria usada por africanos lusófonos e seria a verdadeira língua falada no Brasil. Dessa forma, Lélia também reafirmava a influência da cultura negra sobre a cultura brasileira: “A cultura brasileira é uma cultura brasileira por excelência” (in RATTS; RIOS, 2010, posição 635).

Referências

ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? ,Belo Horizonte (MG): Editora Livramento, 2018.

FILHO, Mario. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.

CORÍNTIANS ganha a ponta. In Jornal dos Sports. Rio de Janeiro, 13 de abril de 1967, p. 5. Acesso em 09/01/2021.

ENTRELINHAS. Silvio Almeida entrevista Roger Machado, em 12 de dezembro de 2020 (32 min). Acesso em 05/01/2021.

GONZALES, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira“. In Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.

GONZALES, Lélia;RIOS, Flavia; LIMA, Marcia (orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. , Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

MALAIA, João Manuel. “O processo de profissionalização do futebol no Rio de Janeiro: dos subúrbios à Zona Sul. A inserção de negros, mestiços e brancos pobres na economia da Capital Federal (1914-1923)“. In: Leituras de Economia Política, Campinas, (13): 125-155, jan./jul. 2008. Acesso em 11/01/2021.

MENEZES, Leilane. Descendentes escrevem cartas a Cartola, Carolina Maria de Jesus, Abdias Nascimento e Lélia Gonzalez. In: Metrópoles, 20 de novembro de 2020. Disponível em: . Acesso em 06/01/2020.

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: Identidade nacional versus identidade. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2019.

RATTS, Alex; RIOS, Flavia. Lélia Gonzalez (Retratos do Brasil Negro). São Paulo: Selo Negro Edições, 2010. Edição do Kindle.

SIMPLICIO, Raisa. Don Jayme de Almeida, o ídolo que liga o Flamengo e os peruanos. Portal Terra, 22 de novembro de 2019. Disponível em: . Acesso em 07/01/2021.

UNZELTE, Celso Dario. Almanaque do Timão. São Paulo: Editora Abril, 2000.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Maurício Rodrigues Pinto

Bacharel em História, pela Universidade de São Paulo (USP, com especialização em Sociopsicologia, na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e mestre pelo programa interdisciplinar Mudança Social e Participação Política, da USP. Corinthiano, no seu mestrado pesquisou masculinidades e a atuação de movimentos de torcedorxs contrários à homofobia e ao machismo no futebol brasileiro. Integrou o coletivo HLGBT (Histórias de Vida LGBT) e participou do projeto que resultou no livro “Histórias de Todas as Cores: Memórias Ilustradas LGBT”, projeto selecionado pelo Programa de Ação Cultural da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo (ProaC), no edital de Promoção das Manifestações Culturais com Temática LGBT.

Como citar

PINTO, Maurício Rodrigues. Jaime de Almeida e Barbosinha: suas trajetórias futebolísticas e contribuições para a intelectualidade negra brasileira. Ludopédio, São Paulo, v. 139, n. 33, 2021.
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