Quando Vampeta chegou ao Corinthians vindo do PSV Eindhoven, em 1998, Vanderlei Luxemburgo sugeriu que ele ocupasse a lateral-direita, posição em que já atuara e na qual teria chances, dizia o treinador, de integrar a seleção brasileira que foi à Copa do Mundo daquele ano, na França. Ele preferia, no entanto, o meio de campo. O jogador dizia – meio a sério, meio de brincadeira – que era péssimo jogar no Pacaembu próximo ao alambrado, escutando torcedores gritando de tudo um pouco. Além do mais, as broncas do treinador, em pelo menos um dos dois tempos de jogo, eram todas diretamente nos ouvidos de quem estivesse por ali. Naquele tempo os laterais jogavam muito próximos da linha que delimita o campo, mesmo que já não se restringissem a ser marcadores de punta, como eram chamados na Argentina.

De fato, para a reserva de Cafu deveria viajar o volante Flávio Conceição, do La Coruña, que sabia fazer a função, mas ele acabou de fora em razão de uma lesão, ou de um mal-entendido sobre ela, e quem integrou o grupo foi Zé Carlos, do São Paulo. O suplente teve que entrar na semifinal do Mundial, contra a seleção holandesa, e até que não se saiu mal, embora a experiência e o potencial ofensivo do titular tenham feito falta.

Naquele ano de Copa, a lateral-direita corintiana era ocupada por Rodrigo, jogador que, como Vampeta, se formara no Vitória Esporte Clube, de Salvador, e igualmente viera do exterior para o Timão, mas do Bayer Leverkusen. No mesmo time jogara Jorginho, titular brasileiro da mesma posição nos Mundiais de 1990 e 1994, e que depois seguiria para onde quase todos os melhores jogadores do Campeonato Alemão acabam chegando: o poderoso Bayern de Munique. Na Bundesliga também atuou outro brasileiro naquela faixa do campo, Evanílson, formado no Cruzeiro, com boa passagem pelo Borussia Dortmund, onde jogou com o atacante Amoroso e Dedê, também lateral, mas do outro lado do campo.

Leandro, lateral-direito do Flamengo e da seleção brasileira. Arte: Francisco Carlos S. da Silva.

Assisti a vários laterais-direitos ao longo de décadas acompanhando futebol, alguns muito bons, mas apenas um deles foi craque. Era Leandro, do Flamengo, titular do time de sonhos do começo dos anos 1980 e também da seleção brasileira em 1982. Saída de bola da melhor qualidade, apoio ao ataque, passe, cruzamento, profundidade na linha de fundo, colocação, visão de jogo, virada de jogo, ele fazia tudo muito bem, e isso durou até que seu joelho permitiu. Quando não deu mais, foi atuar como zagueiro, mostrando que era bom também na marcação.

O percurso da lateral para o miolo da defesa já fora feito por outro craque, Carlos Alberto Torres. Não cheguei a vê-lo na posição original, aquela que o consagrou como capitão do selecionado tricampeão no México. Na metade dos anos 1970, no Fluminense, ele atuava como zagueiro, desfilando a mesma categoria dos tempos em que habitava a margem do campo.

Da Máquina Tricolor bicampeã carioca (1975-1976) ele foi compor a defesa do Flamengo e da seleção brasileira, por poucas partidas em 1977. A convite de Pelé, rumou para o New York Cosmos, onde foi jogar de líbero, destacando-se ainda no shootout, jogada de desempate que substituía a disputa de pênaltis, primordial em um país que suporta pouco as indefinições. É preciso, afinal, saber quem ganhou. O jogador partia do meio do campo e tinha cinco segundos para concluir a gol, tendo apenas o goleiro adversário entre ele e a meta. A chegada do craque a Nova York não poderia ter sido em momento mais complexo: vivia-se o famoso blackout de 1977, situação que levou a um quebra-quebra generalizado na cidade sem luz. Nada que atrapalhasse o ânimo de Carlos Alberto, cujas lembranças dos tempos nova-iorquinos eram as melhores. A noite escura foi imortalizado no filme O verão de Sam, de Spike Lee.

Carlos Alberto, embora, tenha sido um lateral clássico, que sabia marcar e apoiar o ataque, ainda corria muito pela beira do campo. Mas, nos dias de hoje poderia atuar de outra forma, tinha habilidade e técnica para jogar por dentro, armando o jogo como um meia nas situações ofensivas, assim como Javier Zanetti atuava na Internazionale Milano e Philipp Lahm no Bayer München.

Carlos Alberto Torres. Foto: Rafael Ribeiro/CBF.

Antes de Leandro, o grande destaque da lateral-direita do Rubro-negro foi Toninho, baiano que viera do adversário Fluminense, considerado por Cláudio Coutinho o exemplo de jogador moderno. Era ele que atacava como ponta fazendo a passagem (o overlapping) para a linha de fundo, alcançando o ponto futuro. A chegada do jogador ao Fla levou Junior a trocar de lado, ele que foi um dos melhores jogadores que vi na lateral-esquerda, mesmo sendo destro. Toninho foi ao Mundial de 1978, chegando até a ser improvisado como ponta ao deixar a posição original para Nelinho. O cruzeirense fora convocado no lugar de Zé Maria, do Corinthians, que se lesionara. O Super Zé, um dos meus ídolos na infância, fora titular em 1974, na Alemanha, e reserva de Carlos Alberto na campanha do Tri, em 1970.

Junior não foi à Copa de 1978, Coutinho preferiu improvisar o zagueiro Edinho como lateral-esquerdo, somando ao elenco o botafoguense Rodrigues Neto. Quatro anos depois era titular absoluto, fazendo com Leandro a dupla de alas da seleção. Ela deveria se repetir no Mundial seguinte, mas o lateral-direito não se apresentou no Galeão para a viagem. Lembro-me das imagens de Junior e Zico chegando de táxi ao aeroporto, rostos crispados, vindos da casa de Leandro, onde haviam tentado convencê-lo a embarcar. O joelho machucado o impediria de atuar na lateral, ele que já jogava de beque no Flamengo.

Depois todos souberam que Leandro desistira da seleção em solidariedade a Renato Gaúcho, cortado do elenco porque chegara atrasado à concentração após uma folga. Ele fizera companhia ao lateral-direito, que não se encontrava em boa situação, e diz jamais ter se arrependido de ter arriscado sua convocação em nome da amizade que nutriam. Renato foi um grande atacante pela direita, fez falta no México. O hoje técnico do Grêmio faz um trabalho admirável no clube de cuja história é o maior ídolo. Continua trafegando pela direita, como em seus bons tempos de jogador, mas agora na política, esbanjando autoritarismo e misoginia. Suas posições são detestáveis, mas admiro sua lealdade, coisa de poucos neste mundo.

Ilha de Santa Catarina, janeiro de 2021.


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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Jogando pela direita. Ludopédio, São Paulo, v. 139, n. 42, 2021.
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