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Jogos Bolivarianos: uma breve análise de seus primórdios na Colômbia (1938)

Eduardo de Souza Gomes 18 de novembro de 2017

Neste breve texto, pretendemos abordar alguns fatores relativos ao surgimento de um evento esportivo pouco conhecido pelo público mais amplo no Brasil. Trata-se dos Jogos Bolivarianos, que ocorrem a cada quatro anos entre países da região da América Latina e do Caribe que possuem, em comum, o fato de terem tido Simón Bolívar como líder de suas respectivas independências.

Desde a realização dos primeiros Jogos Olímpicos de verão da Era Moderna, ocorridos em 1896 na cidade grega de Atenas, várias novas experiências similares foram idealizadas e concretizadas, sejam essas de caráter global, continental, nacional ou regional. Tratando-se da realização de um megaevento de uma única modalidade, podemos destacar também a Copa do Mundo de futebol, iniciada em 1930, sendo esse o evento esportivo de maior alcance global até os dias atuais.

No cenário americano, o principal evento esportivo continental são os Jogos Pan-Americanos, organizados pela Organização Desportiva Pan-Americana (ODEPA). O evento conta com a participação de nações de todo o continente americano e, desde 1951, é realizado de quatro em quatro anos, sempre tendo como sede algum país dessa região.

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Medalhas dos Jogos Pan-Americanos de 2015 em Toronto, Canadá. Foto: Reprodução.

Apesar do início oficial dos Jogos Pan-Americanos ter se dado somente em 1951, a tentativa de idealizar um evento poliesportivo que pudesse abarcar diferentes nações do continente americano remete a décadas anteriores. Como exemplo, podemos citar os pioneiros Jogos Olímpicos Latino-Americanos de 1922, ocorridos no Rio de Janeiro como parte dos festejos do centenário da independência do Brasil. Nesse evento, que contou com a participação de países das partes Sul e Norte da América, se faz possível identificarmos algumas características similares aos Pan-Americanos que, a partir da década de 1950, se consolidariam como os maiores jogos do continente.

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Vencedores dos 5.000 metros nos Jogos Olímpicos Latino-Americanos de 1922. Fonte: O Malho, 23 de setembro de 1922.

Além dos “Jogos do Centenário de 1922” no Brasil, antes e depois da criação dos Jogos Pan-Americanos, diversos outros eventos esportivos foram criados no âmbito do continente americano, em sua maioria com conotações e especificidades mais regionais. Citando apenas alguns, podemos por exemplo destacar: Jogos Centro-Americanos e do Caribe, com início em 1926 no México; Jogos Bolivarianos, iniciados em 1938 na Colômbia; Jogos Desportivos Centro-Americanos, tendo como pontapé inicial o ano de 1973, na Guatemala; Jogos Sul-Americanos, com início em 1978 na Bolívia; entre outros.

Entre esses, abordaremos a seguir algumas peculiaridades acerca dos Jogos Bolivarianos. Nesta oportunidade, sem adentrar com profundidade em outras particularidades do evento e que merecem um olhar mais aguçado em futuras análises, buscaremos levantar algumas questões e hipóteses que levaram a idealização desse evento, tendo como espaço de problematização o cenário social e político do primeiro país sede da história da competição, a Colômbia.

Os primeiros Jogos Bolivarianos ocorreram na cidade de Bogotá, capital colombiana, no ano de 1938. Participaram dessa primeira edição os seguintes países, além do país sede: Bolívia, Equador, Panamá, Peru e Venezuela. A escolha dos países se deu pelo fato de que essas são as nações que, em suas lutas pela independência, tiveram a liderança de Simón Bolívar, sendo esse o referencial para a criação dos jogos em questão.

Nessa primeira edição, o Peru foi o país que ficou no topo do quadro de medalhas[1]. Até 1970, foram realizadas seis edições dos jogos, sem uma sequência exata de intervalo de um evento para o outro. Desde então, os Jogos Bolivarianos passaram a ocorrer de quatro em quatro anos, sempre tendo como sede um dos seis países citados.

Desde 1938 até o presente momento, foram realizadas dezessete edições dos jogos, tendo sido mantidos os seis países participantes desde seus primórdios. Essas nações, inclusive, fazem parte da Organização Desportiva Bolivariana (ODEBO), que é filiada à ODEPA e que foi criada na cidade de Bogotá em 16 de agosto de 1938, ou seja, no âmbito dos primeiros Jogos Bolivarianos da história. Como fica explicito em texto sobre esse fato exposto no próprio site da instituição,

El 16 de agosto de 1938, en un acto celebrado en el Palacio de Gobierno de Cundinamarca, Bogotá, se fundó oficialmente la Organización Deportiva Bolivariana, cuya sigla es ODEBO, el ente que une deportivamente a los países bolivarianos.

El documento fue rubricado por los dirigentes Jorge Rodríguez, de Bolivia; Alberto Nariño, de Colombia; Galo Plaza, de Ecuador; Luis Saavedra, de Panamá; Alfredo Hohagen, de Perú; y Julio Bustamante, de Venezuela.

Desde su creación ODEBO fue constituida por los Comités Olímpicos Nacionales de los países bolivarianos, con sede oficial en Caracas, pero tras cambios en sus estatutos se estableció que la sede y domicilio permanente de la ODEBO será la ciudad donde resida el Presidente. Además, en mayo del 2010, la Asamblea de la Organización aprobó la inclusión de Chile como su miembro[2].

Outros países, em diferentes edições, participaram dos Jogos Bolivarianos como convidados. A décima oitava edição ocorrerá em novembro desse ano (11 a 25 de novembro), na cidade de Santa Marta, na Colômbia, e contará com a participação de doze nações. Além dos seis membros originais da ODEBO, e do Chile (incorporado à ODEBO em 2010, como descrito na citação anterior), também estarão presentes com suas respectivas delegações: El Salvador, Guatemala, Paraguai, Porto Rico e República Dominicana.

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Logo dos Jogos Bolivarianos 2017, que ocorrerão em Santa Marta, Colômbia.

O interesse em realizar os primeiros Jogos Bolivarianos em 1938, na cidade de Bogotá, se deu como parte dos preparativos para os festejos do aniversário de 400 anos da capital colombiana. Dentro de um contexto em que o esporte se inseria entre as possibilidades reais de comemorações e de exaltação da nação, pensar a formação de um evento com os países da região “bolivariana” se transformou em um caminho fértil para reforçar ou construir identidades.

Essa idealização em realizar os Jogos Bolivarianos se deu início em 1936, ano em que ocorreram os Jogos Olímpicos de verão em Berlim, na então Alemanha nazista. A exaltação de símbolos nacionais a partir de eventos esportivos, tendo o caso alemão como exemplo, passou a ser entendido como algo positivo pelo então governo colombiano.

Nesse mesmo ano, Alberto Nariño Chayne, dirigente esportivo colombiano e então Diretor Nacional de Educação Física do país, conseguiu junto ao Comitê Olímpico Internacional (COI) a aprovação para realizar no país os primeiros Jogos Bolivarianos (ACOSTA, 2013). O exemplo dos Jogos Centro-Americanos e do Caribe, que já ocorriam desde 1926, se tornou um fator positivo para efetivar essa aprovação. Para colocar a ideia em prática, foram realizadas várias obras públicas na capital colombiana, além de terem sido construídos os estádios Nemesio Camacho (El Campín) e Alfonso López Pumarejo (Estádio Olímpico da Universidad Nacional de Colombia) (ACOSTA, 2013, p. 44), sendo o primeiro o principal estádio de futebol da Colômbia até os dias atuais. A exaltação dos Jogos Bolivarianos pôde ser percebida na época pelas palavras de um de seus idealizadores, o próprio Alberto Nariño Chayne:

De los juegos regionales del mundo, los Bolivarianos son los únicos creados bajo una idea profundamente filosófica e histórica y forman el grupo más equilibrado deportivamente de todos los que integran las demás organizaciones similares.[3]

Em 1938, a Colômbia passava por um momento importante no que diz respeito ao fortalecimento da ideia de nação, assim como na construção de símbolos identitários. Historicamente marcada pelas disputas entre liberais e conservadores, desde 1930 o país possuía presidentes liberais, depois de ter passado por um longo período de aproximadamente quarenta e cinco anos de hegemonia conservadora (BUSHNELL, 2012).

Com a chegada do liberal Alfonso López Pumarejo ao executivo nacional em 1934, foram consolidadas diferentes formas de se idealizar símbolos nacionais no país, sendo os primeiros Jogos Bolivarianos uma dessas iniciativas. Apesar do evento em si ter ocorrido em grande parte nos primórdios do mandato de seu sucessor na presidência, o também liberal Eduardo Santos (Pumarejo deixou a presidência em 07 de agosto de 1938, enquanto os Jogos ocorreram entre 6 e 22 de agosto desse mesmo ano), esse e outros feitos de Pumarejo, que ainda voltaria a ser presidente entre 1942-1945, ficaram conhecidos no país como la Revolución en Marcha. Como o Partido Conservador havia governado a Colômbia durante muitos anos, existiu por parte dos governos liberais nos anos 1930 uma necessidade de construção uma “nova nação colombiana”, sendo o esporte e as atividades físicas partes dessa nova idealização.

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Abertura dos Jogos Bolivarianos de 1938, no Estádio El Campín em Bogotá. Fonte: Universidad EAFIT.

O campo esportivo colombiano já se desenvolvia desde a transição do século XIX para o XX. Em 1925, foi decretada a “Lei 80”, a primeira a ser implantada no país que abordasse o assunto, tratando explicitamente da Educação Física e dos esportes. Como sugere Patiño (2011), essa iniciativa indica um projeto político nacional em torno da cultura física. Com isso, a população se inseria nas propostas nacionalistas que entendiam as noções de higiene e eugenia como importantes, sendo as práticas de atividades físicas vistas como fundamentais nos discursos de formação da “nação” colombiana.

Nos anos 1930, as mudanças iniciadas pelo primeiro governo de López Pumarejo, entre 1934 e 1938, foram importantes para que fossem realizadas políticas sociais diretas na república colombiana, ligadas a um intenso processo de modernização (BUSHNELL, 2012, p. 267-269). Entre outras ações, em seu governo ocorreu a separação entre Estado e religião, onde sem negar o catolicismo, fez questão de definir a soberania do Estado e de explicitar os rumos desejados para a “nação colombiana” (BUSHNEL, 2012, p. 269).

Nesse cenário, investir em novas práticas culturais como forma de idealizar a identidade nacional colombiana, foi um dos caminhos seguidos pelo governo Pumarejo. No aniversário de 400 anos de Bogotá, o esporte surgiu como uma alternativa para se pensar o nacionalismo. Para isso, ocorreu a recuperação de símbolos da libertação do país, tendo sido Simón Bolívar eleito para dar nome aos jogos com os outros países da região que possuíam essa identidade em comum.

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Logo dos Jogos Bolivarianos de 1938.

Assim, podemos inferir que o evento pôde representar uma forma de difusão do nacionalismo colombiano no contexto latino-americano e no Caribe, tal como um fortalecimento do sentimento de identidade pelo qual possuíam os países da região. Marcados pela liderança histórica da imagem de Simón Bolívar, levantamos a hipótese, que ainda carece de maiores investigações, de que os Jogos Bolivarianos teriam sido não só um evento pensado para a construção de um sentimento nacionalista colombiano, como também um marco na construção identitária dos países que habitam essa região da América Latina e do Caribe e que possuem esse laço em comum. Por fim, sendo essa identidade um fato que permanece até os dias atuais, destacamos ser esse objeto um fértil caminho para realizarmos diálogos e comparações, partindo do campo da História Nacional/Regional para a História Global.

[1] De acordo com o site oficial da ODEBO, os peruanos alcançaram o total de 65 medalhas nessa primeira edição dos jogos. Maiores informações, ver www.odebolivariana.org. Acesso em 17 de julho de 2017.

[2] www.odebolivariana.org. Acesso em 17 de julho de 2017.

[3] www.odebolivariana.org. Acesso em 17 de julho de 2017.

Referências Bibliográficas

ACOSTA, Andrés. Elementos sociohistóricos intervinientes en la construcción de los estadios Alfonso López e El Campín para los primeros Juegos Bolivarianos: Bogotá, 1938. Revista Colombiana de Sociologia, Bogotá, v. 36, n. 01, p. 43-62, jan-jun 2013.

BUSHNELL, David. Colombia: una nación a pesar de si misma – nuestra historia desde los tempos pré-colombianos hasta hoy. Bogotá: Planeta, 2012.

PATIÑO, Jorge. La política del sport: elites y deporte en la construcción de la nación colombiana, 1903-1925. 2009. 139 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Políticos) – Pontificia Universidad Javeriana, Bogotá, 2009.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Edu Gomes

Historiador, professor e pesquisador do esporte. Doutor e mestre em História Comparada, com ênfase em História do Esporte, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com período sanduíche na Universidad de Antioquia (UdeA), Colômbia. Graduando em Educação Física (Claretiano). Atua como pesquisador do Sport: Laboratório de História do Esporte e do Lazer (UFRJ). Professor na Educação Superior e Básica. Editor e colunista de esportes do Jornal Toda Palavra (Niterói/RJ), além de atuar como repórter e comentarista da Rádio Esporte Metropolitano. Autor dos livros intitulados "A invenção do profissionalismo no futebol: tensões e efeitos no Rio de Janeiro (1933-1941) e na Colômbia (1948-1954)" (Ed. Appris, 2019) e "El Dorado: os efeitos do profissionalismo no futebol colombiano (1948-1951)" (Ed. Multifoco, 2014). Organizador da obra "Olhares para a profissionalização do futebol: análises plurais" (Ed. Multifoco, 2015), além de outros trabalhos relacionados à História do Esporte na América Latina.

Como citar

GOMES, Eduardo de Souza. Jogos Bolivarianos: uma breve análise de seus primórdios na Colômbia (1938). Ludopédio, São Paulo, v. 101, n. 18, 2017.
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