104.18

Dos Jogos de Inverno e outras invisibilidades

Wagner Xavier de Camargo 18 de fevereiro de 2018

Sexta-feira, dia 09 de fevereiro de 2018, andava eu por uma das estações do metrô de São Paulo quando vejo uma circulação massiva de pessoas, algumas alegres e fantasiadas, andando e cantando em bando. Por mais que a cidade não seja reconhecida como uma das capitais nacionais do carnaval, há muita gente lá e esse povo todo coloca o agito em circulação. A alegria se explicava, pois, afinal, era oficialmente carnaval!

Nesse mesmo dia havia a cerimônia de abertura dos XXIII Jogos Olímpicos de Inverno, em Pyeongchang, Coreia do Sul, nos quais participariam cerca de três mil atletas, de 92 nações, competindo em aproximadamente cem eventos esportivos. Aficionado por esportes, passei o dia ansioso por assistir tal cerimônia, contar os países, ver o possível desfile unificado das duas Coreias e notar algumas outras curiosidades olímpicas, que somente aparecem de tempos em tempos. No entanto, fora de casa e sem acesso à TV a cabo, não preciso dizer que me frustrei em conseguir assistir o que se passava do outro lado do mundo.

O fato é que, para nós, brazucas, os carinhosamente chamados “Jogos de Inverno” são invisíveis. Em português bem claro, não importam em nível algum! Temos uma delegação com 10 atletas em Pyeongchang e, praticamente, nenhuma chance de medalhas. Até os próprios programas esportivos brasileiros que fazem “especiais” sobre os esportes de inverno adotam o tom caricatural e cômico acerca das modalidades, de seus nomes e mesmo de atletas que nelas competem. A culpa é do futebol e da cultura esportiva do país? Da pouca tradição de esportes sobre o gelo e a neve em solo nacional? Da mídia televisiva e a insuficiente cobertura? Ou de nosso clima tropical e da falta de condições? Difícil responder a essas questões – mesmo porque a invisibilidade desse tipo de atividade esportiva não tem a ver com somente um deles, mas talvez com todos ao mesmo tempo.

2018 PyeongChang Cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno   9 de fevereiro de 2018 PyeongChang Olympic Plaza, Pyeongchang-gun, Gangwon-do Hyoja-dong Studio
Cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno. Foto: Hyoja-dong Studio.

Enquanto fazia inúmeras conexões em estações de metrô para chegar ao meu destino naquele dia, pensava nos Jogos de Inverno. Lembrei-me de que eles têm história mais recente do que os de Verão. Datam de 1924, Chamonix, França. Começaram a ter apelo público e midiático quando também passam a ser plataforma ideológica das duas superpotências (Estados Unidos e União Soviética) no período da Guerra Fria (de 1948 a 1991), as quais usavam o esporte para demonstração de superioridade de seus regimes político-econômicos.

Os Jogos de Inverno, por sua vez, sempre aconteciam no mesmo país e ano que os de Verão, e permaneceram assim até a edição ocorrida em Garmisch-Partenkirchen, na Alemanha, em 1936. Depois do cancelamento de duas competições seguintes (1940 e 1944) devido à II Guerra Mundial, passaram a ser realizados em distintos países, porém ainda no mesmo ano. Em 1986, a partir de uma decisão do Comitê Olímpico Internacional (COI), as duas edições Olímpicas seriam intercaladas sempre em anos pares a contar da edição a ser realizada em Albertville, França, em 1992. Portanto, os Jogos de Lillihammer de 1994, na Noruega, deram sequência e foram os primeiros a serem dessincronizados.

Os desfiles da equipe olímpica dos Estados Unidos durante as cerimônias de abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2018 no Estádio Olímpico de Pyeongchang, sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018, em Pyeongchang, Coréia do Sul. (Casa oficial da Casa Branca de D. Myles Cullen)
Os desfiles da equipe olímpica dos Estados Unidos durante as cerimônias de abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2018 no Estádio Olímpico de Pyeongchang. Foto: Casa oficial da Casa Branca de D. Myles Cullen.

Ao sair de uma das estações, vejo ao lado esquerdo da porta de entrada, uma garota numa cadeira de rodas. Suja, maltrapilha, aparentando vinte e poucos anos, estava sentada com uma placa de pedido de ajuda escrito a mão. O olhar indiferente e estático não prestava atenção ao movimento de foliões passantes, muito menos do tráfego intenso da rua a sua frente. Chamava-se Luíza, possuía uma doença degenerativa da coluna e adorou o saquinho de pequenos pães de queijo que lhe ofereci.

Não precisaram mais de uma dúzia de palavras com Luíza e sua condição de pessoa com deficiência para ativar em mim outra invisibilidade, também relacionada aos Jogos de Inverno: há exatamente quatro anos, a então ginasta Laís Souza sofria grave acidente enquanto treinava esqui em Salt Lake City, nos EUA, como treinamento prévio para os Jogos Olímpicos de Inverno de Sochi-2014, na Rússia. A intenção era dar uma guinada na carreira, agora não mais na ginástica artística, mas sim no esqui aéreo e na Olimpíada russa. A pancada numa árvore e a queda resultaram na lesão da terceira vértebra da coluna cervical (a C3), o que acabou afetando os movimentos e sensibilidades de órgãos e partes do corpo abaixo do pescoço. Luíza e Laís são, guardadas as distintas posições de classe social e segundo uma expressão de Eliane Brum, “vidas que ninguém vê”.

Sigo alguns quarteirões calado e cabisbaixo. No caminho, procuro televisores dos bares, os quais me fornecem apenas noticiário ou novelas. Já na casa de um amigo paulista, procuro nos canais abertos uma cobertura digna. Sem sucesso. A internet me deu apenas flashes, cenas de curta duração de trechos da abertura e alguns destaques. Enquanto isso, ao fundo, ouvia tambores, marchinhas e gritarias nas ruas e cercanias. O povo, alegre, pulava carnaval.

2018 PyeongChang Cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno   9 de fevereiro de 2018 PyeongChang Olympic Plaza, Pyeongchang-gun, Gangwon-do Hyoja-dong Studio
Cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno 2018 em PyeongChang. Foto: Hyoja-dong Studio.

Começo a questionar minha irritação em não conseguir saber mais sobre a abertura e os detalhes dos Jogos de Inverno de Pyeongchang, até que, minutos depois, desisto. O cansaço do deslocamento tumultuado durante o dia por uma cidade em polvorosa pela folia foi demasiado. Mais do que os Jogos, a invisibilidade de Luíza na terra do carnaval e do futebol era irreversível. E isso me abalou mais do que tudo. Como um alienígena em terra estrangeira, que não entendia (ou não queria entender) o que se passava em seu entorno, fui dormir. Afinal, quem se importa? Viva o Carnaval no Brasil!!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Dos Jogos de Inverno e outras invisibilidades. Ludopédio, São Paulo, v. 104, n. 18, 2018.
Leia também:
  • 162.18

    Para além da Copa: Mbappé e seu modelo alternativo de masculinidade

    Wagner Xavier de Camargo
  • 162.3

    Deserotizando o futebol, aniquilando desejos: o Catar em tempos de Copa

    Wagner Xavier de Camargo
  • 161.20

    Flávio de Carvalho: de entusiasta modernista a estilista futebolístico

    Wagner Xavier de Camargo