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Jogos Mundiais Indígenas e as políticas de representatividade

Wagner Xavier de Camargo 29 de outubro de 2017
Entrada complexo esportivo dos I Jogos Mundiais Indígenas, Palmas-2015. Acervo Wagner Xavier
Entrada complexo esportivo dos I Jogos Mundiais Indígenas, Palmas-2015. Foto: Wagner Xavier.

Era 31 de outubro de 2015 e, ao cair da noite, assistíamos felizes as apresentações da cerimônia de encerramento dos I Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, ocorridos em Palmas, Tocantins. Éramos pesquisadoras e pesquisadores, reunidos pelo Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (Deutscher Akademischer Austauchdienst – DAAD) e sob liderança de sua diretora Martina Schulze, com a missão científica de acompanhar/registrar o campeonato. Chegávamos ao fim de uma semana cheia de eventos culturais e esportivos interessantíssimos, aos quais assistimos atentamente. Nossa satisfação naquele momento era a possibilidade de manter a missão ativa para a segunda edição, a se realizar em alguma cidade do Canadá, no ano de 2017. Em que pese uma turbulência se anunciasse em relação à atmosfera política brasileira, ainda vivíamos os anos de conquistas e garantias de direitos de minorias, estabelecidas por Lula e (bem ou mal) encampadas por Dilma.

Em Palmas tivemos contato com várias etnias (nacionais e internacionais), e, sobretudo, com o que caracterizava suas culturas e tradições. Surpreendemo-nos com as aguerridas jogadoras Cree (do Canadá), com os alegres Mapuche (do Chile), os entusiasmados arremessadores Kumbaata (da Etiópia), as destemidas atletas Sami (da Finlândia), os carrancudos guerreiros Maori (da Nova Zelândia), os precisos e introspectivos arqueiros mongóis, dentre outros grupos. Vimos “jogos de integração” (como a corrida de tora e o cabo de força), “jogos de demonstração” (como o futebol de cabeça e a zarabatana) e também alguns “jogos convencionais” (ou também chamados de “ocidentais”, como as contendas do futebol conhecido por nós).

Foto: Tiro com arco (atletas indígenas da Mongólia). Acervo: Grupo de pesquisa DAAD
Tiro com arco (atletas indígenas da Mongólia). Foto: Grupo de pesquisa DAAD.
Palmas (TO) - Etnia Mamaindê apresenta o seu futebol de cabeça durante o sexto dia de competições nos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Etnia Mamaindê apresenta o seu futebol de cabeça durante o sexto dia de competições nos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.

As etnias indígenas do território brasileiro se faziam numerosas e presentes: os Assurini (Pará), Bororo Boe, Rikbaktsa, Kayapó-Mebêngôkre, Kamayurá, Karajá, Kuikuro, Kura-Bakairi e Xavante (Mato Grosso), Mamaindê/Nambikwara e Paresí (Rondônia/Mato Grosso), Kanela (Maranhão), Kyikatejê/Parakatejê (Pará), Karajá (Goiás, Mato Grosso, Pará e Tocantins), Tairapé (Mato Grosso/Tocantins), Guarani Kaiowá e Terena (Mato Grosso do Sul), Javaé Itya Mahãdu (Tocantins/Goiás), Kaingang (SP e sul do Brasil), Matis (Amazonas), Pataxó (Bahia/Minas Gerais), Waiwai (Amazonas, Pará e Roraima), Xerente (Tocantins). Cada grupo com suas vestimentas e ornamentos, seus gravuras representativas, suas tradições.

Tais Jogos sintetizavam a idealização do Comitê Intertribal (ITC), associação indígena brasileira, que obteve apoio de mais de 16 países para organizar o evento no Brasil. Era o primeiro de caráter internacional e o know how organizativo foi sendo adquirido em edições periódicas entre etnias indígenas brasileiras desde os anos 1996. Se o ITC enquanto instituição colocava-se como idealizador e organizador do evento (obviamente com apoio da ONU e de setores públicos e privados, do Brasil e do exterior), os irmãos Terena (Marcos e Carlos) eram os líderes do processo, não apenas encabeçando a representação do conjunto de etnias do território brasileiro, mas articulando, igualmente, o contato com os grupos estrangeiros. No histórico de suas campanhas, eles sempre frisavam lutar pela “valorização da cultura indígena por meio da divulgação dos jogos tradicionais”.

Nós, como pesquisadores/as, notávamos que assim como em outros eventos esportivos de grande porte, nos quais um líder nunca consegue alinhavar planejamento e realidade de modo totalmente eficaz, isso também acontecia em Palmas. Consta que a competição reuniu “mais de 2 mil atletas, representantes de 30 nacionalidades e 24 etnias” (dados oficiais), mas não faltaram polêmicas: houve variados protestos políticos, muitas reclamações de atletas quanto ao alojamento e ao transporte às arenas de competição, demandas políticas grupais e mesmo reivindicações por representatividade junto à organização.

PALMAS (TO)- Grupo de índios faz protesto durante o segundo dia dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas(Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Grupo de índios faz protesto durante o segundo dia dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.

Como antropólogos/as percebemos que a primeira edição dos Jogos caracterizou-se pelo esforço de resgatar e valorizar tradições culturais de grupos autóctones (particularmente via esportes e suas expressões, como as danças) de forma a salvaguardar seu patrimônio cultural imaterial. Dessa forma, perambulando pelas instalações do complexo esportivo (onde se localizava a arena, as grandes ocas de eventos culturais, os estantes das feiras de agricultura e artesanato indígenas), notávamos que havia instaurada uma dinâmica de forma a colocar em contato diferentes povos/etnias entre si e o público em geral. Além disso, não apenas nós como expectadores/as externos/as, mas a população de Palmas pode, primeiro, se sensibilizar acerca da diversidade existente entre grupos indígenas de um mesmo país ou de uma mesma região e, segundo, observar que a existência daquelas culturas era importante para a própria formação dos Estados nacionais como os conhecemos (e que o Brasil, por exemplo, deveria se reconhecer nelas).

Entretanto, nosso entusiasmo no encerramento dos I Jogos Mundiais Indígenas em 2015 não perdurou muito nos meses/anos subsequentes. A então presidenta Dilma foi afastada por um golpe anti-democrático, os direitos humanos de grupos minoritários têm sido sistematicamente revogados (inclusive os dos indígenas), o Ministério dos Esportes tem passado por cortes sistemáticos de verba (particularmente depois do fim dos Jogos Olímpicos do Rio-2016) e a segunda edição no Canadá desapareceria do horizonte das etnias indígenas nacionais – ou, pelo menos, da maioria delas. Os Jogos ocorreram em terras canadenses de 30 de junho a 09 de julho desse ano em Maskwascis (cidade ao Sul de Edmonton, província de Alberta), mas com baixa representatividade de grupos brasileiros.

Se, por um lado, a realização dos II Jogos Mundiais dos Povos Indígenas é um mérito das lideranças historicamente envolvidas (e, no limite, dos povos indígenas do planeta), por outro, e observando o cenário político e a realidade brasileira, é um retrocesso tal evento não ter sido acessível a maior parte dos grupos indígenas locais como ocorreu em 2015, pois situações como essas não apenas viabilizam práticas esportivas de corpos, mas se colocam, justamente, como pontes construtoras de políticas de representatividade, de respeito à alteridade e de garantia de direitos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Jogos Mundiais Indígenas e as políticas de representatividade. Ludopédio, São Paulo, v. 100, n. 29, 2017.
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