146.53

Jogos Paralímpicos: história e memória

Wagner Xavier de Camargo 29 de agosto de 2021

Os Jogos Paralímpicos de Verão começaram nesta semana em Tóquio e sua existência já celebra mais de 60 anos. No mesmo dilema pandêmico que atingiu os Jogos Olímpicos recém-realizados, tal competição traz muitos riscos a atletas com deficiência e sua ocorrência deveria ter sido pensada com mais cautela. Infelizmente, questões contratuais prevaleceram mais uma vez, apesar do contexto pandêmico.

O Brasil chega representado pelo Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), que recentemente completou 25 anos e leva ao Japão uma das maiores delegações de sua história, com 435 integrantes (cerca de 250 atletas, em 20 modalidades, mais acompanhantes, como guias, goleiros, timoneiros, massagistas, fisioterapeutas, etc.). Com políticas sólidas de fomento e um trabalho bem estruturado há anos, possivelmente o CPB consiga colocar o Brasil entre os cinco países mais bem ranqueados no quadro de medalhas.

A história de esportivizar a vida de pessoas com deficiência (ou com sérias lesões) começou muito antes desse movimento esportivo organizado. Datam dos anos 1940 as primeiras tentativas de tornar meros exercícios fisioterápicos e reabilitatórios em práticas de esporte. O idealizador disso foi o médico Ludwig Guttmann, um alemão radicalizado na Inglaterra e que criou os Jogos de Stoke Mandeville, uma espécie de embrião do que mais tarde se tornariam os Jogos Paralímpicos. Depois de Roma (em 1960) e Tóquio (em 1964) terem sediado tal competição na mesma cidade em que aconteceram os Jogos Olímpicos, as edições entre 1968 e 1988 ocorreram em outras cidades-sede. Neste ano, a capital do Japão se torna, portanto, a única cidade a sediar duas vezes o evento em toda sua história.

Apesar de no Brasil já haver torneios locais de futebol de quadra (antigo futebol de salão e hoje futsal) e de xadrez para cegos, em internatos e escolas especiais, desde as primeiras décadas do século XX, ou mesmo de basquete sobre rodas desde os anos 1950, a primeira participação brasileira em Jogos Paralímpicos foi em Heidelberg, na Alemanha, em 1972. Depois disso, as conquistas seguirão contínuas, porém lentas, até os anos 1990.

Tive o privilégio de acompanhar a estruturação do CPB nessa década em questão e as primeiras participações internacionais depois disso. Era um momento ainda bastante peculiar, de formação de um alicerce nacional, inclusive para dar conta das necessidades de investimento em estruturas competitivas e em práticas esportivas, que no país ainda não eram desenvolvidas. Muito do trabalho feito era baseado no voluntariado.

Pequim 2008
Equipe de Goalball – Jogos Paralímpicos de Pequim, 2008. Foto: Arquivo pessoal.

Se o Brasil terminou sua participação nos Jogos Paralímpicos de Sydney-2000 em 24º no ranking (22 medalhas no total), a campanha de Atenas-2004 foi um estouro: foram 33 medalhas (14 de ouro, 12 de prata e 7 de bronze), que colocaram o país na honrosa posição de 14º no quadro geral. Por trás desse resultado há muitos fatores envolvidos: o sancionamento da Lei Agnelo/Piva em 2001, que direcionou 2% da arrecadação das loterias para os Comitês Olímpico/Paralímpico, o planejamento de investimento nos esporte por parte do governo petista, muitas participações em circuitos internacionais de competição e a própria troca de comando do CPB. Vital Severino Neto, segundo presidente da entidade e com quem trabalhei diretamente, foi o responsável pela reestruturação do trabalho, que propôs uma divisão por esportes e não mais por deficiências.

Estive em Sydney, Atenas e Pequim, três ciclos paralímpicos em que pude acompanhar de dentro e de perto as transformações, tanto na estrutura internacional dos Jogos, como no trabalho interno do CPB. Conforme avançava a profissionalização do esporte de pessoas com deficiência, mais profissionais eram capacitados. Paradoxalmente, se tudo isso aumenta a prática esportiva de pessoas com deficiência, o esporte paraolímpico acaba se tornando uma realidade apenas para poucas delas. E, assim, segue-se o modelo olímpico velho conhecido.

Vi o surgimento de heróis e heroínas paralímpicos/as e uma exploração de suas imagens como estrelas esportivas. Se nisso há um lado positivo, e quero acreditar que haja, de outra parte tais heróis/heroínas são cada vez mais “normalizados” a ponto de haver uma minimização ou invisibilização de suas deficiências. Isso pode frustrar crianças e adolescentes com comprometimentos severos, que talvez nunca consigam se encaixar, então, nesse ideal heroico vendido.

Os Jogos Paralímpicos de Pequim-2008 deixaram um legado importante e uma marca impressionante de pódios alcançados, a qual só seria superada no Rio, em 2016. Na China, o Brasil ficou em 9º lugar no ranking, com 47 medalhas no total (16 ouros, 14 pratas e 17 bronzes). A modalidade que coordenava, o goalball (um esporte coletivo de quadra, praticado por cegos), teve representação, pela primeira vez, de duas seleções nas categorias masculina/feminina, e seguia conforme o planejado. Deixei-a em boas mãos e segui outro caminho.

Que os Jogos Paralímpicos continuem existindo enquanto forem necessários. E que muitas pessoas se inspirem neles e nessa perspectiva possam trabalhar. Mas que não nos esqueçamos de que há muitos outros milhões de pessoas com deficiência no país, para além dos poucos em Tóquio, que necessitam de algum estímulo esportivo, para, inclusive, viverem melhor.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Jogos Paralímpicos: história e memória. Ludopédio, São Paulo, v. 146, n. 53, 2021.
Leia também:
  • 162.18

    Para além da Copa: Mbappé e seu modelo alternativo de masculinidade

    Wagner Xavier de Camargo
  • 162.3

    Deserotizando o futebol, aniquilando desejos: o Catar em tempos de Copa

    Wagner Xavier de Camargo
  • 161.20

    Flávio de Carvalho: de entusiasta modernista a estilista futebolístico

    Wagner Xavier de Camargo