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Jornalismo, Telê, Roberto DaMatta … E por que o Brasil não precisa imitar o Barcelona

Luciano Victor Barros Maluly 6 de maio de 2016

A paixão do brasileiro pelo futebol é decorrente das características figurativas que unem a filosofia do esporte à cultura popular do país. Durante a partida, o objetivo do jogador é driblar os obstáculos (regras, adversários…) para conquistar o seu o objetivo, no caso o gol. Com sua habilidade, destrói táticas opostas sem se preocupar como o estereótipo de gênio ou louco. Foi assim como Leônidas, Zizinho, Ademir Menezes, Pelé, Garrincha, Zico e Romário, entre outros tantos craques.

O mesmo se pode dizer do povo brasileiro. Mesmo na pobreza, ele usa a sua criatividade para vencer as dificuldades, ou seja, “(…) o futebol institui abertamente a malandragem como arte de sobrevivência e o jogo de cintura como estilo nacional.”, relembrando Roberto DaMatta (1994, p.17).

A espontaneidade o convence a ser um misto dos maridos de Dona Flor, sendo, de um lado, meio inconsequente, alegre e sexualmente perfeito e, de outro, certinho, com poucos vícios, cheio de moral e socialmente exemplar.

O ritual do futebol é assim, como uma união entre os protagonistas do espetáculo. Como no carnaval, a função de ambos é apenas transmitir a fantasia – apesar das normas e estratégias. Dentre as personagens, surge a figura do treinador como o Pai que transmite ordens e ensino o filho as manhas da vida: “Faça assim, mas do seu jeito”.

Deste modo, revela-se a natureza do futebol-arte brasileiro, que é mágica e deslumbrante; espontânea e individualmente coletiva; admirada mundialmente desde 1958. Quando esse estilo sobre interferências que o descaracterizam, os jornalistas do país, na maioria das vezes, se rebelam, fervorosamente, contra os invasores. Está em pauta a defesa do jogo ofensivo, que significa a própria sobrevivência da modalidade e, principalmente, a manutenção da arte local de se jogar futebol (o privilégio do ataque, dinâmico, cheio de dribles e gols, com o jogador olhando para frente, com a tática servindo apenas como um referencial ao jogador).

Uma dessas lutas dos jornalistas aconteceu em 1990, quando o treinador Sebastião Lazaroni implantou na seleção brasileira um esquema tático semelhante ao estilo de jogo europeu, que é popularmente conhecido como futebol-força (retrancado, baseado na tática que coloca os jogadores em posições fixas sem poder, em parte, exaltar a sua criatividade, com o esquema a privilegiar os atletas de maior força física e velocidade em detrimento dos mais habilidosos). Na época, os comunicadores locais se uniram contra a tentativa de descaracterização do futebol-arte brasileiro, que observavam na forma implantada por Lazaroni um estilo contrário às próprias tradições do país.

Sebastião Lazarani. Foto: Vinod Divakaran.
Sebastião Lazarani. Foto: Vinod Divakaran.

Outro fator preponderante para os jornalistas serem contrários à implantação do futebol-força era de que a prática interna (dos clubes) estava se curvando ao novo modelo, ou seja, os treinadores brasileiros começavam a aderir ao estilo europeu devido às derrotas da seleção nacional nas últimas Copas do Mundo.

Contudo, a chamada Imprensa Esportiva não possuía argumentos necessários para defender a manutenção do futebol-arte no Brasil, porque a tendência – na época – era por aderir ao modelo europeu. O auge seria a Copa de 1990, na Itália, quando 23 das 24 seleções (exceto a equipe de Camarões), praticavam o futebol-força. Além disso, a eterna sensação de inferioridade em relação à Europa fez com que os jornalistas nacionais, muitas vezes, conduzissem o assunto como uma nova forma de aculturação.

O ponto crítico do embate jornalístico foi logo após a Copa de 1990, quando o técnico Carlos Alberto Parreira – um adepto do futebol-força – reassume o comando da seleção brasileira, no mesmo momento em que ressurge a figura de Telê Santana, um defensor do futebol-arte e ex-treinador da escrete nacional em 1982 e 1986.

Com sua praticidade e reconhecimento (tinha formado uma das melhores seleções brasileiras de todos os tempos em 1982), Telê havia resgatado com a equipe do São Paulo Futebol Clube (Bicampeão Mundial Interclubes e da Copa Libertadores da América) a magia do futebol “bem jogado”, ofensivo, com jogadores habilidosos e atuantes, ligado à escola brasileira. Além disso, o treinador defendia, publicamente, as suas ideias, com a tentativa clara de moralizar o futebol – dentro e fora de campo – com o objetivo de resgatar a tradição da modalidade no Brasil.

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Telê Santana. Caricatura: Baptistão Caricaturas.

Foi assim que os jornalistas esportivos começaram a utilizar a figura de Telê Santana como símbolo da luta em defesa da manutenção do futebol-arte na seleção e nas equipes brasileiras.

Cronistas dos principais meios de comunicação do Brasil mostravam o futebol defendido por Telê como o ideal para ser jogado no Brasil e no resto do mundo. Treinadores começaram a aderir ao propósito do colega tricolor, impondo aos seus times o estilo de jogo à brasileira. Desse modo, o futebol nacional volta a ser reconhecido pelos demais países como alegre e espetacular.

Mesmo com a retomada do futebol-arte, o selecionado treinado por Parreira aderiu ao estilo europeu, sem empolgar os torcedores e a imprensa. Durante a disputa das eliminatórias para a Copa do Mundo de 1994 e mesmo com a conquista do tetracampeonato mundial nos Estados Unidos, ocorreram duras críticas à “falsidade ideológica” do jogo apresentado pela equipe nacional.

A vitória em terras norte-americanas fortaleceu o futebol-força, que ganharia também muitos admiradores, entre eles os futuros treinadores da seleção brasileira. Por isso, diante da atual fase de descrédito do nosso futebol, torna-se obrigatório alertar os jornalistas esportivos sobre a necessidade de produções de relatos que defendam futebol-arte. Com isso, renascerão novos heróis como Telê Santana e Pelé, porque está em jogo não somente a preservação do esporte, mas também a própria manutenção e a sobrevivência da Cultura Popular Brasileira. Como referência, deixo um depoimento de Armando Nogueira (1997) sobre o significado do futebol-arte:

“O Futebol-arte é intuição. O Futebol-arte é invenção. O Futebol-arte é delicadeza no trato com a bola. O Futebol-arte é um drible, é um passe de calcanhar, é um drible inesperado, é uma finta, é um gol de voleio. Este é o Futebol-arte, é o requinte, é o refinamento do esporte. O esporte elevado à culminância da arte”.

 

 Referências

 

(1) DAMATTA, R. Antropologia do óbvio: notas em torno do significado do social do futebol brasileiro. IN REVISTA USP 22- DOSSIÊ FUTEBOL. São Paulo: CCS/USP, 1994. pp. 30-37. 

(2) BARRETO, Fábio. Dona Flor e seus dois maridos. Produção: Luiz Carlos Barreto, Newton Rique e Sr. Distribuição: Embrafilme e New Yorquer Filmes. Brasil, 1976, 120 minutos, colorido.

(3) NOGUEIRA, Armando. Depoimento gravado pela empresa Xapuri Serviços de Comunicações Ltda em junho/ 1997, exclusiva para a dissertação O Futebol-Arte de Telê Santana no Jornalismo Esportivo de Armando Nogueira. MALULY, Luciano Victor Barros. São Bernardo do Campo: UMESP, 1998.

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Luciano Victor Barros Maluly

Graduado em Comunicaçao social - Habilitação em Jornalismo pela Universidade Estadual de Londrina (1995), Mestrado em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (1998), Doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (2002), Pós-doutorado na Universidade do Minho em Portugal (2011) e Livre Docente pela ECA-USP (2016). Atua como professor e pesquisador na Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em radiojornalismo e jornalismo esportivo. È autor do livro JORNALISMO ESPORTIVO - PRINCÍPIOS E TÉCNICAS (Editora do Autor, 2017)

Como citar

MALULY, Luciano Victor Barros. Jornalismo, Telê, Roberto DaMatta … E por que o Brasil não precisa imitar o Barcelona. Ludopédio, São Paulo, v. 83, n. 3, 2016.
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