29.3

Lá onde ela dorme

Ivo Barreto 8 de novembro de 2011

Há coisas que só a vida na roça nos proporciona, é ou não é verdade?! Silêncio de noite (e por que não de dia), cheiro de chuva, fogueira no quintal, rolé de bike, cachaça sem rótulo e por aí vai. Chego a gostar até de rua com buraco, barro na sola do tênis (mas entendo que isto até possa ser algo extrapolado, vá lá). Enfim, coisas que só quem gosta mesmo de mato pra perceber. Certo dia um amigo sacana me perguntou se na selva tinha sinal digital, pode? Há quem se ofenda com isso, mas pra mim ta bão demais…

Bom, disso tudo, um dos predicados rurais que mais gosto é o sono que mora na tarde do sábado, a chamada lombeira da roça! Esta daí posso dizer, de cadeira, que não favorece só aquele sono depois do almoço, um cochilo na rede ou apenas algo assim. Não! É nessas horas que o matuto pára pra ficar matutando, e matutando muito! Acho que o olho do candidato da roça é mais atento e isso ajuda. Hoje mesmo, por exemplo, em minha corrida-nossa-de-cada-dia vi, em menos de meia hora, uma casa de joão-de-barro “nos começo” da construção (e agora sei que joão-de-barro constrói pela manhã), picapau-amarelo catando comida na grama, sabiá gordo, sabiá magro, garça dançando, pato selvagem… chego a pensar em nem correr mais e só andar, e bem devagar, pra ver mais coisa (mas nisso ainda estou pesando as conseqüências, já que a cachaça sem rótulo, essa sim não vai parar mesmo e tem que ser eliminada de alguma forma). Mas a verdade é que na roça o que bem se faz é pensar na vida.

Dia destes, numa pedalada por aí com os miúdos, passamos pelo campinho do bairro e… Sim, eles ainda existem: campinho de rua, com grama, buraco, trave de madeira, marca do pênalti e do meio campo – que, aliás, nunca fica exatamente no meio do campo. Pois bem, neste dia me deparei com uma cena futebolística lendária: uma coruja pousada na forquilha da trave. Ou seja, “lá onde a coruja dorme”! João, na sabedoria de seus 6 anos, achou aquilo legal (e ponto, sem mais delongas). Mas pra marmanjo que gosta de bola, meu camarada (e preferencialmente marmanjo com mais de 6 anos de idade), é sabido que trata-se de cena pra guardar na memória! Imagina, a coruja lá onde ela dorme ao vivo assim, num final de tarde qualquer! Mais que depressa saquei minha Canon velha de guerra e aproveitei o acaso pra uns cliques até que a dita cuja se mandou. Respira-se fundo numa hora destas, viu.

Lá onde a coruja dorme. Foto: Ivo Barreto.

De volta pra casa, já no meu computador, seco de vontade de ver o resultado das fotos, passei uma a uma. Lindo, rapaz… ela tava lá, onde deveriam estar todas as corujas do Brasil, segundo a tradição futebolística. Bom, como dizia, imagens da roça são de se fazer pensar. Imediatamente lembrei do tri-campeonato do Flamengo em 2001. Aliás, jogo que me lembro bem pois foi a primeira vez que levei meu irmão ao Maraca.

O Beiça estava recém chegado no Rio, cru de tudo, e eu mostrando pra ele o que era aquilo tudo. Cidade bacana e cruel, nego, era das minhas fases de irmão mais velho preferidas. Naquela época eu ia pro Maraca até de geral a 1 real (inclusive boicotei o provão numa ocasião destas) e no meu manual pra se integrar um irmão mais novo no Rio tinha, claro, um jogo do Fla e uma final era a ocasião perfeita pra enquadrar o moço.

No dia do jogo, Beiçoto, que com seu sono de pedra era quem nos atrasava nos jogos do lendário Oswaldão (meu time de infância mineira, formado pela galera da rua e do meu prédio), quase que resgatando uma tradição, nos colocou meio no atraso. Eu já tinha planejado todo um roteiro: camisa exclusiva de final (a umbro, número 5, do Júnior, Campeão Brasileiro de 92), viagem pela ponte Rio-Niterói, a descida antes de chegar no Maracanã pra sentir o clima de jogo andando à pé, a explicação que era pela entrada do Bellini que os flamenguistas subiam, o contorno já correndo pelo anel inferior da arquibancada escutando apenas o abafo do som do estádio e o grand finale (ou gran “iniciale”, sei lá): o fantástico “efeito maracanã”, existente apenas na subida pela rampa da entrada 56 da arquibancada verde, que te conduz de um sussurro de multidão angustiante até a luz no fim do túnel: as batidas frenéticas de quem entra no meio da bateria da Raça Rubro-negra, os gritos de guerra e a visão inesquecível do Macaca preto e vermelho inteiro, bandeiras, papel, fumaça e lá embaixo, o campo imenso e verde. A dimensão exata de por que o Maraca é nosso.

Enfim, isso era o plano, mas já na viagem desde Niterói já se mostrava furado. Chegamos no estádio já encima da hora, felizmente ingresso na mão, mas uma batalha pra conseguir entrar. Faltando uns 15 minutos pra começar o primeiro tempo, nós ainda estávamos lá, no pé do Bellini sem saber o que fazer e vendo um empurra-empurra desgraçado entre um mar de gente e a cavalaria da polícia montada. Encaramos o furdúncio e conseguimos passar vivos, mas o jogo já tinha começado. Rodamos o anel inferior, como eu fazia de costume, mas cadê que dava pra entrar! Metade da cidade se espremia em todas as rampas do lado da Raça e era inimaginável conseguir entrar. Até aí já tinham ido uns 10 minutos de partida…. penso rápido e decido: vamos assistir esta merda de amarela mesmo! E corre pra lá.

As cadeiras amarelas do Maracanã são (ou eram, né, já que estão sentando a marreta por lá por causa da Copa), pra quem gosta de ver jogo, um pouco renegadas. Isso por que ficam atrás do gol, ou seja, metade do campo (ou 1/3, mais precisamente) você vê bem, mas a outra metade você esquece, precisa de uma luneta. Nem a Geral – que no fundo é como ver um jogo em câmera-mais, sem noção nenhuma de profundidade, mas pelo menos é divertido – nem ela sofre tanto este desdém. Além disso você fica fora do baticundum das torcidas, que é a pulsação do jogo e liga qualquer um na tomada da partida até o apito final. Ou pior, com menos sorte, você fica entre duas torcidas e não sabe bem o que cantar porque as musicas escolheram justamente as amarelas como local de encontro, aí fica aquela zona e tem horas que não se entende nada.

Olha, eu pensava isso tudo até sentar lá naquele dia, porque mal sabíamos o jogo que nos esperava. No primeiro tempo o Mengo fazia gol no outro lado, de modos que ver, mas ver bem mesmo, só vimos o gol do Vasco. Final de primeiro tempo: 1 x 1. E o Fla precisava de dois gols de diferença pra levar o tri-campeonato. Nos dois anos anteriores tínhamos levado o caneco encima do próprio Vasco, mas neste ano na primeira partida da final eles tinham feito um 2 x 1 que tava osso de superar. Veio então o intervalo e tudo já estava nos seus conformes. Gol pra lá, gol pra cá e nós no estádio. O meu irmão, que sempre foi flamenguista mas nunca fora tão ligado ao futebol, tava até gostando. Final é final e não dá pra passar indiferente, mas tava tudo no começo ainda, a gente que não sabia.

Petkovic em sua despedida do Flamengo e do futebol em 2011. Foto: Maurício Val/VIPCOMM.

Retorna o time pro segundo tempo e agora o mengo atacava no gol ali debaixo da gente. Logo de cara ataque pela esquerda e Edílson, o Capetinha, mete o segundo de cabeça numa jogada linda orquestrada pelo Pet! Aí, meu nobre, pressão no Vasco porque aquele placar de 2 x 1 dava o título pra São Januário. Vamos de pressão o segundo tempo todinho, até que o jogo se encaminha pros acréscimos do segundo tempo (e nada de gol). Na arquibancada, vejo o cantinho da torcida do Vasco, lá do outro lado do estádio, cantando a todo pulmão, comemorando o título. E a torcida do Flamengo, incrédula, olhando em silêncio o rumo que a coisa ia tomando. Merda!, pensei. Primeira vez no Maraca e o Beiça vai ver o bacalhau cantar de galo…

Nem bem terminei o pensamento e o Maracanã se levanta num grito: falta na cabeça da área! Olho no relógio e pelas minhas contas já estamos a 46 do segundo tempo. A falta ta meio de longe, é verdade, mas será…. Olho pro juiz e o cara também ta de olho no relógio e percebeu o mesmo que eu. Lá na Raça vejo todo mundo de mão pra cima chamando o gol, mas pra mim não dava pra chamar nada: eu suava frio, mão na boca pro coração não sair. No campo o Pet arrumava a bola, conversava com ela. No gol, o Helton, goleiro do Vasco, arrumava a barreira e se preparava. Na minha cabeça ainda vigora o silêncio sepulcral do Maracanã naquele instante que antecedia a sapatada. Apita o juiz, parte o Pet pra cobrança e… caixa!!! Acabava-se ali o mundo e eu morria feliz (veja o gol).

Gol de falta de Pet. Charge: André Costa.

O que se seguiu não me lembro bem, mas sinto até hoje. Nunca vi, em meus anos de arquibaldo e geraldino, uma confusão tão grande. Ninguém mais tinha voz naquele lugar (exceto os vascaínos, que já não precisavam gritar mais). Se gritou e cantou por sei lá quanto tempo!! Na hora do gol lembro do silêncio, da imagem do Pet batendo a falta, do som do chute do Pet chegando depois da imagem, do Helton saindo uma semana antes pra catar a bola lá na gaveta (nem se saísse um mês antes…) e do barulho da bola na rede. Num primeiro momento acho que não acreditei e olhei pro bandeira. Quando vi o cara correndo apontando o meio campo… nó! Explodi junto com os milhares de flamenguistas do Maracanã e pulei como um louco!! AAaaaaahhhhh, Meeeeeengooooo!!!! Minutosssssss de catarse se seguiram até que, por um instante, retorno a mim mesmo e penso: meu irmão! Cadê meu irmão!!! Olho pra um lado, olho pra outro, e três degraus abaixo de mim (sabe-se lá como ele chegou ali), o Beiça, abraçado com uma galera que provavelmente ele nunca tinha visto antes na vida, comemora com seu melhores amigos da vida algo que ele nunca mais esqueceria. Neste momento meu papel de irmão mais velho estava cumprido.

Zoom na coruja. Foto: Ivo Barreto.

À parte ao fato de que o meu “azar” de ir parar na amarela justo naquele dia tinha se tornado uma das histórias mais invejadas por qualquer flamenguista (ou boleiro) do Brasil, pensei que ver a coruja dormindo numa trave do campinho perto da minha casa era o outro lado da moeda que me faltava naquela história. Bacana… mas, peraí. Selecionei de novo a foto que fiz da coruja na trave, a mais de perto que consegui, e fui dando zoom até chegar de pertinho. Ali percebi que ela tinhas os olhos amarelos enormes e bem abertos. Amarelos? Faz sentido, me diverti com a coincidência. Mas acordada!!??? Que sentido faz, pensei… mas acabei entendendo. Dorme, nego! Dorme ali com um barulho desse!

 São Pedro da Aldeia, Outubro de 2011 (10 anos depois do gol do Pet).

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Ivo Barreto

Arquiteto e Urbanista pela UFF (2004) e Mestre em Projeto e Patrimônio (PROARQ-UFRJ, 2017).  Com destacada atuação no campo da preservação do patrimônio cultural e projetos, é professor do Curso de Arquitetura da Universidade Estácio de Sá, em Cabo Frio/RJ. Autor de livros e artigos sobre memória e Arquitetura, explora em seu trabalho as interfaces  destes temas com o universo cotidiano contemporâneo. Seu último livro, intitulado "#400vezesCaboFrio: memória e território em 400 imagens e centena de olhares", foi lançado pela Editora Escrituras em 2016, tendo por base documentário tratando da formação e identidade do território de Cabo Frio, em seus 400 anos.

Como citar

BARRETO, Ivo. Lá onde ela dorme. Ludopédio, São Paulo, v. 29, n. 3, 2011.
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