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Les Bleus – um time multiétnico jogando ao estilo francês

Arlei Sander Damo 26 de julho de 2018

Com a conquista da última Copa o time da Fédération Française de Football (FFF) se consolida entre a elite das seleções nacionais. É a terceira geração de profissionais a galgar destaque internacional: a de Michel Platini (Euro 1988); Zinedine Zidane (Copa 1998, Euro 2000 e vice na Copa de 2006); Pogba, Mbappé, Griezman, Matuidi e companhia (vice na Euro 2016 e Copa 2018). Dos anos de 1980 para cá, só a Alemanha teve um desempenho à altura (foram duas Copas, 1990 e 2014; três vices 1982, 1986, 2002; e uma Euro, 1988). Brasil, Itália e, um pouco abaixo, a Espanha e a Argentina, completam um grupo seleto ao qual a França parece ter se incluído em definitivo. Não foi um título, apenas, mas a consolidação de uma trajetória quase tão destacada quanto a conquista do tricampeonato brasileiro no México, em 1970.

Há três aspectos dessa trajetória que gostaria de destacar e eles têm um denominador em comum: o Centre National du Football, situado em Clairefontaine, no interior de um parque na periferia de Paris. Este centro pertence à FFF e já recebeu outras designações desde o início da sua edificação, em 1984, sendo esta última, em 2009. As alterações na nomenclatura são o menos importante, dado que Clairefontaine tem se revelado uma constante desde a sua concepção, ainda na longínqua década de 1970. Desde 1988, quando foi inaugurada, é lá que se localiza o centro de referência para a formação de profissionais – atletas, árbitros, dirigentes e treinadores – e de treinamento – todas as seleções nacionais, desde a base até a atual campeã mundial, tanto as masculinas quanto as femininas. Estive em Clairefontaine durante minha pesquisa de doutorado, que tratou da formação de jogadores, e descrevi com mais detalhes a importância deste centro na qualificação da formação de profissionais, incluindo-se atletas, na tese parcialmente transformada no livro “Do dom à profissão”.

Clairefontaine foi, na origem, um projeto de Estado – uma prova de que nem tudo o que o Estado faz é ruim. Mais tarde esse projeto foi repassado para o controle da FFF, cuja atuação destoa, consideravelmente, da nossa equivalente, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF). A FFF cuida das seleções e dos aspectos mais amplos do futebol na França, o que inclui, por exemplo, o futebol amador e a qualificação daqueles que atuam nesse segmento – como árbitros e treinadores –, algo impensável no Brasil. A organização das competições mais rentáveis – Ligue 1, Ligue 2 e Coupe de France (o equivalente às nossas séries A, B e Copa do Brasil) – é delegada a uma entidade cuja gestão é controlada pelos clubes. Clairefontaine é, pois, um projeto amplo, com planejamento de longo prazo, cujos resultados em termos de performance esportiva são notáveis, com 3 finais de copas e 2 títulos nas últimas 6 edições.

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Entrada de Clairfontaine. Foto: Xavoun/Wikipédia.

Se do ponto de vista esportivo, o primeiro aspecto que desejava destacar, Clairefontaine é um sucesso, não menos efusivo é o aspecto político, que está na origem da mobilização estatal. As performances da seleção de futebol masculina nas décadas de 1960 e 70 foram pífias, tendo a França ficado sem representação nas Copas de 1962, 70 e 74, além de ter sido eliminada ainda na fase de grupos em 1966 e 78. O futebol não era um esporte negligenciado na França, mas estava bem abaixo do interesse pelo ciclismo, capaz de mobilizar a nação em competições como o Tour de France. O gosto esportivo dos franceses é eclético e isto tem muito a ver com o sistema escolar, que oferece múltiplas possibilidades de experimentação aos estudantes, com a expectativa de que eles se engajem a uma modalidade, da qual participarão ao longo da vida adulta, com supostos ganhos em termos de profilaxia e sociabilidade. Ciclismo, rugby, artes marciais, ginástica, patinação, petanca, atletismo, entre outras, encontram-se amplamente disseminadas em clubes e associações, de modo que o futebol não é um esporte hegemônico como no Brasil, embora seja largamente praticado. O que fez o Estado francês investir na formação de jogadores de futebol foi o reconhecimento de que este esporte, à diferença de todos os demais, poderia ser estratégico para incluir a crescente leva de imigrantes oriundos das ex-colônias. O Brasil era uma fonte de inspiração, cujo time multiétnico tornara-se um símbolo afirmativo da nação no exterior.

Os clubes profissionais franceses haviam passado a recrutar profissionais formados no mercado, mais ou menos como os ingleses atualmente, que detém o campeonato nacional mais rico do planeta, mas cuja seleção nacional tem resultados modestos nas competições internacionais – o quarto lugar nesta Copa, tal como em 1990, foi o melhor que os ingleses conseguiram em copas, afora a conquista de 1966. Sem uma formação de base sólida, o selecionado nacional permaneceria no ostracismo, razão pela qual surgiu o projeto sediado em Clairefontaine. Toda a lógica do futebol deveria ser repensada e isso deveria começar pela base, criando profissionais competentes para trabalhar nos clubes de quartier – equivalentes à nossa várzea – onde efetivamente se ensina e se aprende a jogar, além de democratizar o acesso aos centros especializados em formação, para onde seriam direcionados os mais talentosos. O modelo de formação prevê até mesmo o reaproveitamento daqueles que são dispensados num estágio avançado do processo, que como é sabido por todos é altamente excludente, permitindo que trabalhem como estagiários em clubes e associações comunitárias até complementares uma segunda formação, seja ela futebolística ou não.

A seleção nacional deveria contribuir para promover a integração nacional e, sob muitos aspectos, também neste propósito, o projeto tem sido exitoso. O futebol não faz milagres, obviamente. Imaginar que as tensões decorrentes da imigração multiétnica possam ser superadas com uma conquista esportiva é ingenuidade. No dia a dia dos franceses persistem as clivagens de gênero, etnia, classe e religião, que geram debates intensos e distensões variadas. No plano da imaginação, no entanto, é possível conceber uma coletividade capaz de superar tais diferenças. E imaginação é algo muito importante!

Photos Judith Litvine et Frédéric de La Mure
Torcedores franceses comemoram na Torre Eifel. Foto: Judith Litvine et Frédéric de La Mure.

As conquistas recentes da seleção francesa performam tal possibilidade, mas nem mesmo os mais otimistas dirigentes poderiam imaginar que uma conquista como a de 1998 poderia mobilizar tão amplamente os franceses, a ponto de arrastar mais de um milhão de pessoas a Champs-Élysées. Tampouco imaginaram que isso poderia se repetir tão cedo, como quase aconteceu em 2006, ainda com a presença da geração liderada por Zizou, e ocorre agora, com uma nova geração, sem que se possa apontar um comandante, porque são vários os destaques – fora de campo a festa foi animada por um velho conhecido em Clairefontaine, o jovem Paul Pogba, nascido em Lagny-sur-Marne, na periferia de Paris, de pais guineenses.

Um time multiétnico; uma conquista ao estilo francês. Eis o terceiro aspecto que gostaria de destacar, embora este seja um terreno é pantanoso, porque alocado no campo da pura doxa. Falar em estilo é deveras complicado, pelo menos quando se trata de um texto acadêmico – o que não é bem o caso aqui. Isto porque, à diferença de outras épocas, em que os intercâmbios eram mais restritos – em termos de profissionais, de saberes e sobretudo de imagens –, desenvolviam-se, de fato, formas de jogar e até algumas técnicas que permaneciam circunscritas aos países ou regiões de origem. As copas eram uma ocasião para exibi-las e, sobretudo, confrontá-las. Embora as regras fossem as mesmas, as modulações das técnicas corporais eram sensivelmente diferentes. Era o caso do jogo dos brasileiros, que impressionou os europeus em 1938, dado que Leônidas da Silva e companhia tinham um toque de bola cadenciado que, com alguma imaginação, poderia ser considerado um empréstimo da capoeira. Se este tipo de analogia já recomenda cautela, tanto mais complicado é estender certos traços apresentados dentro de campo ao que se denomina vulgarmente de caráter de um povo. Esta última parte é melhor evitar, simplesmente.

Em que pese o futebol – assim como todos os esportes – seja muito diferente de outras artes, pois preso às regras e, portanto, menos efeito às iniciativas vanguardistas, sempre houve uma margem de manobra. Esta margem tornou-se menor a partir dos anos de 1970, quando a circulação de tecnologias atinentes à preparação física ou à organização tática se intensificaram. Nos tempos atuais, pode-se afirmar que existe pouca coisa que esteja sendo realizada na Europa, principal centro futebolístico internacional, que não seja de conhecimento dos brasileiros. Por conta disso, há pouco a se esperar em termos de inovação das Copas e esta, em particular, não foi exceção.

A seleção espanhola, vencedora da Copa em 2010 e da Euro de 2008 e 2012, será lembrada como a antítese das seleções alemã, campeã em 1990, e da italiana, em 2006, porque estas não privilegiavam a posse da bola e a troca de passes curtos e envolventes. O tic-tac espanhol é a derivação de uma abordagem – eu gosto do termo – testada inicialmente por Pepe Guardiola no Barcelona – se quiséssemos poderíamos estabelecer nexos com o time brasileiro de 1982, pois o próprio Guardiola chegou a dizer que o Barcelona jogava à brasileira.

Pois bem, a seleção francesa é formada por jogadores altamente técnicos – à exceção de Giroud, talvez, e do goleiro Lloris, como ficou evidente na final. Mas Dechamps não os orientou para que reproduzissem o tic-tac espanhol e o seu selecionado fez uma copa perfeita sem, no entanto, apresentar um futebol vistoso como os alemães fizeram no Brasil, em 2014. Dechamps jogou à francesa, mais até do que a seleção campeã em 1998, da qual ela fazia parte, mas que tinha os lampejos extraordinários de Zinedine Zidane, um jogador que é tido como exceção entre os próprios jogadores de exceção. Mbappé teve alguns lances destacados, mas não se pode dizer que foi por conta dele, apenas, que a França venceu a Copa. Griezmann e Pogba são dois outros destaques da equipe, mas nenhum deles se aproxima de Zidane. A conquista da França foi da coletividade, antes de mais nada. Em segundo lugar, e este parece ter sido uma das razões principais do sucesso, foi que a coletividade não esteve centrada sobre si mesma, mas nos adversários.

Jean-Baptiste Gurliat/ Mairie de Paris
Na Champs-Élysées caças reproduzem a bandeira francesa. Foto: Jean-Baptiste Gurliat/Mairie de Paris.

Quando estive visitando Clairefontaine, em 2004, o Brasil era o então campeão mundial, a conversa foi sobre a Copa de 1998. Para o então diretor de Clairefontaine, a conquista de 1998 era um produto gestado naquele espaço. Ele me convidou para visitarmos o que seria uma espécie de centro de inteligência, que consistia, fundamentalmente, num arquivo gigantesco de fitas VHS – na época ainda se utilizava este dispositivo – com jogos de todas as seleções de todos os continentes. E havia uma equipe especializada na produção desse material, de acordo com as demandas das comissões técnicas. Juntado os recursos poder-se-ia dispor das informações relevantes sobre quaisquer adversários e fora assim, me disse o Diretor de Clairefontaine, que o então treinador Aimé Jaquet pode estudar minuciosamente os movimentos da seleção brasileira.

Jaquet e seu staff teriam chegado à conclusão de que Ronaldo Nazário não era páreo para nenhum defensor – nem dois, talvez – e eles trataram de encontrar um jeito para evitar que a bola chegasse até ele. Teriam sido exitosos ao bloquear os avanços dos alas, Cafu e Roberto Carlos, orientando que os atacantes franceses jogassem pelos flancos. Com Cafu e Roberto Carlos tendo que cuidar da defesa, o meio-campo ficou congestionado e a bola raramente chegou ao ataque. No Brasil teve até CPI para investigar as razões pelas quais o Brasil perdeu aquela Copa, pois Ronaldo teve uma crise no vestiário que entrou para as lendas do futebol. Mas quando eu insinuei isso ao diretor de Clairefontaine ele deu de ombros, como se fosse irrelevante o fato de Ronaldo estar avariado, porque a bola não chegaria nele; tudo havia sido meticulosamente investigado, planejado e executado. Uma questão intelectual, portanto; enquanto para nós brasileiros tudo se explicava pelo descontrole emocional.

A França teve altos e baixos desde 1998, tendo vencido a Eurocopa em 2000 e sido vice em 2016, além de haver chegado à decisão da Copa em 2006, embora desclassificada de forma vexatória na primeira fase em 2010. Pode ser que as convicções de 1998 não tenham tido sempre os mesmos êxitos ou deixadas de lado em alguns momentos. Em todo o caso, elas parecem ter retornado agora. A França fez uma Copa sem muito brilho, mas com muita eficiência num quesito que não pode passar desapercebido: a atenção aos adversários. A Croácia teve mais posse de bola e chegou a propor o jogo em boa parte do primeiro tempo, mas Modric esteve aquém das suas performances anteriores. A vitória contra a Bélgica foi escassa, mas Hazard, De Bruyne e Lukaku praticamente não jogaram, muito diferente do que fizeram contra o Brasil. Contra a Argentina talvez tenha sido o melhor jogo da França na Copa, e da Copa, mas Messi fez ainda menos que nos outros jogos da sua equipe.

Jean-Baptiste Gurliat / Mairie de Paris
Recepção aos campeões do mundo. Foto: Jean-Baptiste Gurliat/Mairie de Paris.

Não acho que Dechamps tenha inovado, propriamente. Mas ele certamente fez algo genuíno, que foi abordar o jogo a partir daquilo em que os franceses se consideram mestres: a abordagem intelectual.  Alguém dirá que não é preciso ser um gênio para saber que Messi, Hazard, Modric e companhia são os expoentes de seus times e sem a performance deles a produção coletiva fica prejudicada. A questão é como se executa uma tal estratégia, pensada de forma meticulosa e seguida metodicamente, com o sacrifício calculado de certos repertórios – quantas vezes se viu Giroud e até Mbappé defendendo! – em detrimento de um plano coletivo.

Particularmente, prefiro o tic-tac, mesmo reconhecendo as qualidades da abordagem francesa que, espero, não seja seguida como um modismo, porque isso poderia nos levar de volta aos anos de 1990. A seleção francesa é jovem e poderá escrever um capítulo novo na história do futebol, inclusive do ponto de vista estético. Mbappé não foi eleito o melhor do mundo nesta ocasião por detalhe – ele ficou com o posto de revelação – mas seus feitos fizeram lembrar um outro menino, que encantou o mundo em 1958. E Mbappé terá muitas copas pela frente, assim como Pogba e até Griezman. Além do que, Clairefontaine seguirá lapidando talentos.

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Arlei Sander Damo

Professor PPG Antropologia Social/UFRGS. Autor de Futebol e Identidade Social e Do dom à profissão. Co-autor de Cultura y Fútbol e Megaeventos esportivos no Brasil.

Como citar

DAMO, Arlei Sander. Les Bleus – um time multiétnico jogando ao estilo francês. Ludopédio, São Paulo, v. 109, n. 34, 2018.
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