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LGBTs em todos os lugares: meia-maratona do Rio-2022

Flávio Amaral 1 de julho de 2022

Participar desde 2017 do movimento para pessoas LGBTQIA+ no futebol me faz perceber a importância da luta pela representatividade dessas minorias no esporte. Vidas são transformadas pelo pertencimento proporcionado pelos clubes e equipes com filosofia inclusiva espalhados por todo o Brasil.

O alagoano Junior Silva é prova de que esse pertencimento supera até as divisas de estado. Em agosto de 2020 ele conheceu, via redes sociais, o Karyocas Esporte Clube, um clube poliesportivo LGBTQIA+ do Rio de Janeiro, e demonstrou interesse em fazer parte dele mesmo à distância. A partir de então, o atleta seguiu sua rotina de pódios e grandes resultados vestindo a camisa de sua nova equipe.

No último dia 18 de junho, Junior disputou a Meia Maratona do Rio, uma das provas de maior repercussão no Brasil. Era mais um passo importante de sua caminhada até o sonho de participar dos Gay Games, considerados os Jogos Olímpicos LGBT+, a serem realizados em 2023 em Guadalajara, no México, e em Hong Kong, na China.

Foi a segunda vez do alagoano na Cidade Maravilhosa e a primeira para competir. Como também atleta e membro da equipe de comunicação do Karyocas, propus registrar a participação de Junior narrando sua prova, acompanhando-o de bicicleta. Como sou jornalista e narrador esportivo, o desafio seria sincronizar minha fala com o transcorrer de sua corrida. A live seria transmitida pelo Instagram do clube (@karyocasec).

Ansiedade a mil

No dia anterior ao evento, estivemos na Casa Maratona para pegar o kit de atleta. Acompanhando Junior naquele momento, senti sua emoção: “Só de estar aqui, mesmo antes de participar da corrida, já posso garantir que estou realizado”, disse emocionado, com o kit nas mãos.

Fizemos ainda um pequeno treino de 15 minutos para avaliar como nos sairíamos: ele correndo e eu pedalando. E isso valeu para que eu me emocionasse também. Há poucos anos seria impensável atletas declaradamente LGBTQIA+ em provas de corrida de rua. Quanta representatividade estava ali envolvida!

LGBTs em todos os lugares: meia-maratona do Rio-2022

Nascer do sol numa paisagem diferente

O dia tão esperado começou cedo: o relógio não marcava ainda 5 da manhã quando chegamos à orla do Leblon. Pouco depois, uma multidão tomava a pista sentido São Conrado. Já no sentido Ipanema, cores separavam as categorias, em que os atletas eram ranqueados por seus tempos em provas anteriores. Junior competiu na categoria amarela, a de melhor tempo depois dos corredores considerados de elite.

Pouco antes da largada, o calor do reencontro: Junior se deparou com colegas alagoanos que vieram com ele no voo no dia anterior. Sorrisos, abraços e votos recíprocos de sorte e sucesso entre os conterrâneos antecederam um aquecimento rápido de apenas 3 km – ele ainda teria 21 km para correr oficialmente.

É parte da nossa preparação, necessário para deixar o corpo bem aquecido e leve para a prova. Sem isso, sentimos o corpo travado, a corrida não flui”, explicou.

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Torcida próxima, apesar dos 2 mil km de distância

Paralelamente, eu vivia ansiedade proporcional pela incerteza de como seria o desafio de acompanhá-lo de bicicleta, tensão que alcançou seu auge quando o locutor do evento anunciava o momento da largada da categoria de Junior. Às 7 da manhã, a live no Instagram do Karyocas já registrava Junior em seu início de percurso.

É muita responsabilidade mostrar ao mundo que atletas LGBTQIA+ podem também estar em posições de destaque e liderança no esporte. Isso gera aceitação e visibilidade, que sintomaticamente ajudam a diminuir preconceitos.

Deveu-se, em grande parte, à torcida alagoana a motivação da realização da live, como forma de aproximá-los de Junior. Foi inevitável acrescentar o apelo dessa audiência à emoção na narração dos passos dados e dos metros percorridos por ele do Leblon ao centro do Rio e de lá de volta à Marina da Glória.

Adversários em comum e nuances da prova

Tanto ele como eu enfrentamos obstáculos. Junior encarou os concorrentes na prova, o forte vento que castigava os competidores, o cansaço da viagem durante a madrugada da véspera, a ansiedade desde antes da viagem e, finalmente, o próprio recorde pessoal, cuja quebra era seu grande objetivo.

Alguns desses oponentes foram comuns a nós dois: levantar num horário em que muitas pessoas estão indo dormir numa madrugada de sábado, o clima frio fora dos padrões do Rio de Janeiro, até mesmo no inverno e o vento, um capítulo à parte: tomou segundos preciosos de Junior e, por vezes, me impediu de me aproximar dele.

O grau de dificuldade de um trecho de leve subida, no túnel que liga Copacabana a Botafogo, foi ampliado pela ventania. Somou-se a isso o fato de eu precisar pedalar entre duas faixas, cada uma com os carros em um sentido: tive de revezar entre a mão e a contramão, preferindo a pista onde os carros davam uma trégua.

Meu maior adversário, no entanto, foi o próprio percurso e as constantes alternativas que precisei encontrar para não perder o contato visual com o atleta. Do Leblon à Marina da Glória, consegui me manter por um bom tempo próximo – por vezes, na mesma via em que ele estava.

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Uma corrida para ficar na memória…

Fiz questão de destacar na transmissão o momento em que Junior se juntou a um grupo de corredores do pelotão que havia largado à sua frente. Era mais uma comprovação de toda a dedicação e luta do alagoano de 29 anos, algo que voltei a frisar na reta final, buscando imprimir na voz uma emoção proporcional à dimensão do momento para ele e sua torcida: uma chegada aguardada desde que ele confirmara sua viagem ao Rio.

A cada passo, a cada metro, certamente passava um filme na cabeça de Junior, filme que começa em 2005, ano em que ganhou uma bicicleta em uma maratoninha e chamou a atenção de pessoas que praticavam a modalidade em Maceió. Passados 17 anos daquele momento, lá estava ele fechando a Meia Maratona do Rio de Janeiro.

…e uma experiência pessoal também

Em 12 anos como jornalista, guardo com carinho especial coberturas que, para mim, significam muito. Assim aconteceu com a dos Gay Games Paris 2018, pela representatividade que envolveu a ocasião, inclusive pelo fato de ter unido minha atuação dentro e fora dos campos. Dessa vez também tenho motivos para comemorar.

Além da importância de acompanhar um atleta com a competência, talento e visão sobre a causa LGBTQIA+, como Junior, posso dizer que me superei ao desempenhar, de forma simultânea, pedalada, filmagem e narração. Junior brincou dizendo que, depois dessa prova, também sou um tipo de meia-maratonista. Os riscos corridos no trânsito do Rio de Janeiro não poderiam ter valido mais a pena.

LGBTs em todos os lugares: meia-maratona do Rio-2022

Emoção de um verdadeiro campeão

Junior corria seu quilômetro final quando, em meio a olhadas para trás – cuidando da distância que conquistara sobre o competidor seguinte, e para o relógio –, buscou fôlego para, lado a lado comigo, dizer que bateria seu recorde pessoal. Seus últimos metros de corrida ganhavam um gostinho ainda maior de superação, dever cumprido e realização.

“É muita emoção, porque só a gente sabe o quão difícil é… é muito amor pelo Atletismo. Sabia que seria uma prova duríssima. Muitos podem achar essas lágrimas besteira, mas para mim tem muito significado. Não vim de Maceió para cá em vão”, desabafou.

LGBTs em todos os lugares: meia-maratona do Rio-2022

Relato emocionado de um campeão de fato. O quinto lugar no geral, o vice-campeonato em sua categoria e a oitava posição contando os atletas de elite – tudo isso dez dias antes do Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+: marcas que traduzem representatividade e a certeza de que podemos ser quem somos ocupando quaisquer espaços, competindo de igual para igual com quaisquer adversários e superando inclusive a nós mesmos. Lições que o esporte e a vida deixam como numa corrida: um passo de cada vez.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Flávio Amaral

Jornalista pós-graduado (especialista) em Jornalismo Esportivo e Negócios do Esporte, narrador esportivo pela webrádio Alternativa Esportes e Superliga Fut7 e gerador de conteúdo sobre o esporte LGBTQIAPN+. Atua nesse movimento desde 2017 como atleta de futebol 7 e e-sports e também como comunicador - é autor do blog Cores do Esporte, no qual documenta a trajetória de equipes e atletas dedicados à causa. Teve passagens por veículos como TV Globo e LANCE! trabalhando com rádio, televisão, jornal impresso e site/portal, além de experiência em comunicação corporativa, gestão de conteúdo e redes sociais no setor público e iniciativa privada. Possui experiência docente em  disciplinas como Jornalismo Esportivo, Gestão de Talentos e Planejamento e Produção de Eventos.

Como citar

AMARAL, Flávio. LGBTs em todos os lugares: meia-maratona do Rio-2022. Ludopédio, São Paulo, v. 157, n. 1, 2022.
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