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Libertadores #02

Maurício Brum 18 de setembro de 2021

São 60 edições do torneio mais importante do nosso continente. Em parceria com o Impedimento, o Puntero publicará uma seleção com dez dos maiores jogos na história do torneio. No nosso episódio #02: A América redescobre o Boca Juniors

Libertadores #2

Foi um daqueles jogos em que as circunstâncias importam até mais do que o resultado ou as consequências. Naquele curto intervalo entre o apito final e o início dos pênaltis, o pai com o coração acelerado pôde olhar para o filho de dez anos e comentar, numa Bombonera em êxtase: “eso es Boca, pibe”. Isso, e não o que você conheceu em sua curta vida inteira. Esse time que não se entrega e transforma seu estádio em uma das canchas mais temidas do hemisfério. O Boca é o clube das epopeias continentais — mesmo quando elas não terminam como gostaríamos.

Porque, depois do milagre, viriam os pênaltis, e os pênaltis já não seriam tão simpáticos ao time de La Boca naquelas impossíveis oitavas-de-final da Libertadores de 1989. Mas a vitória que encerraria uma década para el olvido já havia acontecido, independentemente do que os tiros desde a cal ditassem, e mesmo com a eliminação: se os pênaltis foram infelizes, com a bola rolando o Boca deu à Copa uma das mais absurdas remontadas que a América já viu.

A esquadra azul y oro que chegou àquele 12 de abril tentava mostrar, a si mesma e a toda uma nova geração de torcedores para quem as glórias dos anos 70 já eram distantes demais, que a amargura ficaria para trás. A Copa de 89 representava uma espécie de renascimento continental para o clube da Bombonera: havia exatos dez anos, desde o vice da América contra o Olimpia, o Boca não superava sequer a fase de grupos na Libertadores. Jogou só duas, em 82 e 86, e em ambas sua trajetória acabou cedo — na segunda delas, aliás, ficou impotente pelo caminho enquanto via o River Plate vencer a chave, seguir em frente e, por fim, erguer a primeira de suas quatro Copas. O Boca nunca havia passado tanto tempo em superar a etapa inicial — e jamais repetiria uma sequência tão longa de frustrações.

Um decênio inteiro após seu último mata-mata, o Boca voltava a se deparar com seu algoz de 1979: o Olimpia paraguaio. O jogo de ida já não foi das melhores experiências para quem havia esperado tanto tempo para voltar a uma eliminatória da Libertadores: para os supersticiosos dos dois lados, o resultado passava uma mensagem clara de que as coisas estavam decididas — assim como no primeiro jogo de 79, a ida de 89 acabou em 2×0 a favor do Olimpia. No confronto original, o Boca não havia sido capaz de buscar o placar: a volta acabou zerada, e a Copa pousou em Assunção pela primeira vez.

A vitória paraguaia não era exatamente uma zebra — jamais seria, considerando-se as camisetas envolvidas. Mas, pelas campanhas até ali, uma vantagem de um par de gols era bem mais do que se imaginava. Afinal, um confronto grande assim só havia acontecido tão cedo, nas oitavas, porque o Olimpia vinha de resultados pífios na primeira fase. Favorecido por uma fórmula em que três dos quatro times sobreviviam aos grupos, os campeões paraguaios conseguiram avançar com mais derrotas que vitórias — uma campanha, além de tudo, manchada pela suspeita de marmelada da última rodada, quando levou 5×4 do conterrâneo Sol de América… um placar raro e conveniente: era o único que classificaria os dois paraguaios, eliminando o Colo-Colo, que havia empatado na véspera com o líder Cobreloa. A Conmebol multou os clubes de Assunção, mas manteve o resultado.

Se o Olimpia vinha de caminhada acidentada, o Boca havia terminado ponteiro em uma chave compartilhada com o Racing de Avellaneda e os peruanos Universitario e Sporting Cristal. Sem gol qualificado, não parecia tão impossível assim cogitar uma virada, ao menos antes de a bola rolar.

* * *

Libertadores #2
Capa do Clarín em 30 de maio de 1989.

A Argentina que recebeu a partida de volta estava imersa em uma das tantas convulsões sociais que vêm marcando seu último meio século. Mergulhado na sua própria versão da hiperinflação que corroeu os bolsos latino-americanos nos anos 80, o país ainda se preparava para eleições presidenciais, enquanto o mandatário da vez via sua popularidade despencar.

Em maio, milhares sairiam às ruas protestar contra o presidente Raúl Alfonsín, que estava a ponto de se despedir. A inflação bateria em quase 97% ao mês, com uma série de manifestações e saques que começaram em Rosario, e logo chegaram a Buenos Aires e Córdoba. Na época, ainda sem ter lidado bem com as feridas da ditadura encerrada em 1983, a Argentina viu as forças de ordem reagirem com a violência conhecida: 14 pessoas foram mortas pela polícia no auge dos distúrbios.

Essa fase mais aguda da crise começaria algumas semanas após o jogo da Bombonera, quando o austral (moeda da época) teve sua cotação descongelada e sofreu uma súbita desvalorização em relação ao dólar. Mas embora a espiral do descalabro econômico só viesse a atingir seu ponto mais crítico após o Boca x Olimpia, as arquibancadas já traziam os efeitos do debate político em torno das eleições que se aproximavam: toda a partida contra os paraguaios foi jogada com uma gigantesca faixa política nas proximidades do meio-campo, fazendo propaganda para o situacionista Eduardo Angeloz.

Angeloz investia pesado em anúncios e relações públicas para tentar superar a crescente impopularidade de Alfonsín — e Antonio Alegre, presidente do Boca na época, era ligado à Unión Cívica Radical, o então partido do governo (Alegre, por sinal, deixaria o cargo no clube em 1995, quando foi derrotado por… Mauricio Macri). Nas eleições de 14 de maio, a carestia se provou um obstáculo grande demais para o candidato governista: Angeloz terminou superado por Carlos Menem. Sem saber como contornar a crise, Alfonsín eventualmente renunciou, ainda em julho, permitindo que Menem assumisse cinco meses antes do previsto.

Libertadores #2
A publicidade na Bombonera em campanha por Angeloz na presidência da Argentina.

Sob um estandarte que bradava “Angeloz Presidente”, o Boca entrou em campo tendo que buscar uma desvantagem de dois gols e, quando viu, já precisava recuperar quatro: logo nos minutos iniciais da partida, Alfredo Mendoza e Raúl Amarilla feriram os argentinos de morte. Aos 16, Mendoza mandou um testaço para o fundo das redes após escanteio; aos 18, o próprio Mendoza veio driblando desde o meio-campo e atravessou a bola na área para Amarilla empurrar às redes.

Mas o que parecia uma eliminatória sentenciada rapidamente se converteria naquele que tem fortes argumentos para ser considerado um dos melhores jogos da história da Libertadores. Aos 22 minutos, o colombiano naturalizado argentino Walter Perazzo aproveitou uma sequência de falhas defensivas para descontar: a zaga afastou mal a bola, que espirrou para trás, nos pés de Perazzo — seu chute rasteiro transformou-se em frango entre as pernas do lendário Ever Hugo Almeida. O gol acordou o Boca e desestabilizou os paraguaios. Cinco minutos depois, Mendoza, que já tinha amarelo, deu uma patada por cima da bola e saiu de campo mais cedo.

A expulsão não teve efeitos imediatos, mas seria decisiva para instalar o caos no segundo tempo. O Boca buscou o empate aos três minutos, com Villarreal aproveitando rebote de Perazzo (sempre ele), que tinha acertado a trave. Faltando dois gols e com todo o segundo tempo pela frente, a missão argentina parecia cada vez mais realizável — até Navarro Montoya não conseguir agarrar uma cobrança de falta, dar rebote nos pés do mesmo Amarilla que já havia guardado um, e o Olimpia novamente se colocar em vantagem pouco tempo depois. Os visitantes seguiriam vencendo por 3×2 na noite (5×2 no agregado) até os 25 do 2º tempo.

Quando Comas voltou a igualar as coisas, de pênalti, a vinte minutos do fim, a montanha ainda parecia alta demais para ser escalada. E o alpinismo virou missão para onze atacantes. A orientação: quem tivesse condições de subir, deveria fazê-lo. Era o único jeito de manter as esperanças. Assim, aos 41 minutos, o zagueiro uruguaio Richard Tavares apareceu no canto direito da área adversária e, sem pensar muito, soltou o pé tão logo recebeu a bola. Faltava um. E veio, dois minutos depois, em um escanteio pela esquerda: uma cobrança curta, talvez o único escanteio curto que já funcionou em jogo grande em 60 edições de Libertadores. Perazzo (como poderia ser outro?) recebeu na ponta da área, cortou para o meio e chutou. Almeida não esperava: já se encaminhava para o canto oposto, mas a bola veio no lado em que ele estava originalmente. Pego no contrapé, não conseguiu voltar a tempo.

Cinco a três na noite e agregado empatado. A virada impossível tornada real. A Bombonera pronta para ser derrubada a cada pulo dos milhares de torcedores incrédulos. “Eso es Boca, pibe”.

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Libertadores #2
Ever Almeida, histórico goleiro do Olimpia, teve uma de suas grandes noites pelo clube paraguaio.

Os pênaltis foram outra história. Neles, cada equipe teve a oportunidade de sentenciar a eliminatória a seu favor: Navarro Montoya, com uma mão só, salvou o Boca no último tiro da série normal, permitindo o empate. Nas alternadas, Portela isolou o primeiro tiro paraguaio e, aí, foi a vez de Almeida manter o Olimpia vivo contra todos os prognósticos — o erro de Portela pareceu tão definitivo que fotógrafos e gandulas já tinham invadido o campo como se o Boca houvesse se classificado.

Ao fim de tudo, foram necessários longos dezoito pênaltis, e Ever Almeida seria o grande triunfador da noite: além de ter convertido o que chutou, ainda pegou três. Suas defesas foram contra ninguém menos que os goleadores boquenses com a bola rolando — Tavares, Villarreal e até mesmo Perazzo, os artífices da remontada, viram ela se tornar insuficiente quando o infernal arqueiro voou. Só Comas voltou a converter. O Olimpia fez 7 a 6, seguiu em frente e Almeida aumentaria sua lenda pessoal em outras séries penais daquela mesma campanha. A Copa de 89 terminaria em vice-campeonato para os paraguaios, que na decisão encontrariam um igualmente endiabrado Higuita, mas já no ano seguinte a taça voltaria a Assunção.

O Boca, embora eliminado, obteve mais que uma vitória pírrica: recuperava seu orgulho e sua fé no que era capaz de fazer pelos gramados do continente. Os dias mais gloriosos sob Carlos Bianchi ainda levariam outra década para serem iniciados, mas, antes que 1989 acabasse, a Bombonera voltaria a celebrar uma conquista continental: em novembro, o time de azul y oro ergueu a Supercopa da Libertadores, torneio que reunia todos os velhos campeões da América. Na final, derrotou o Independiente de Avellaneda — a primeira vez na história em que o Rojo foi superado em uma final sul-americana.

O Boca estava de volta.


Puntero Izquierdo menorPublicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2019. O Puntero em parceria com o Ludopédio publica nesse espaço os textos originalmente divulgados em sua página do Medium.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Maurício Brum

Jornalista e historiador. Editor do Impedimento e sócio no Estúdio Fronteira. Autor dos livros “La Cancha Infame: A História da Prisão Política no Estádio Nacional do Chile” e “Morte e Vida de Victor Jara, a voz da Revolução Chilena”.

Como citar

BRUM, Maurício. Libertadores #02. Ludopédio, São Paulo, v. 147, n. 27, 2021.
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