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Libertadores #4

Maurício Brum 27 de novembro de 2021

Em 1971, um padre e um artilheiro em fim de carreira se uniram para derrubar o melhor time da América naquele momento: a história da Hazaña de La Plata, quando o Barcelona de Guayaquil se tornou o primeiro estrangeiro a derrotar o Estudiantes na Argentina

Libertadores #4

Quando decidiu regressar ao seu Equador natal para encerrar a carreira, Alberto Spencer escolheu a mesma cidade que o havia revelado para o futebol: Guayaquil. O ano era 1971, Spencer tinha passado a última década inteira empilhando gols e taças pelo Peñarol de Montevidéu, e talvez já não esperasse muita coisa do futebol em um país menos competitivo que o Uruguai. Um título equatoriano — seu Barcelona, afinal, era o atual campeão e favorito ao bicampeonato –, quiçá uma campanha razoável na Libertadores cujos caminhos conhecia tão bem.

Certamente não esperava dividir o quarto da concentração com um PADRE. Mas, no ano em que Spencer retornou a Guayaquil, trazendo na mala oito títulos uruguaios, três continentais, dois mundiais e a condição de maior artilheiro da história da Libertadores (que detém até hoje), o Barcelona também decidiu contratar um sacerdote católico. Não para orar pelo time — para jogar no ataque.

Dois anos antes, aos 25 de idade, um missionário basco de nome Juan Manuel Bazurko havia desembarcado na América do Sul para levar a palavra divina à paróquia de San Camilo, a cerca de 200 quilômetros de Guayaquil. Nas horas em que não estava pregando, dedicava-se a cravar golaços nos campinhos de várzea da região. O rumor logo correu pelas arquibancadas do país: em San Camilo há um padre que, quando troca a batina pelos botines, pelas chuteiras, joga uma barbaridade.

Não tardou para que os clubes profissionais do Equador buscassem mais informações. Descobriram que, antes da vocação eclesiástica, Bazurko já havia atendido ao chamado da bola: na Espanha chegou a jogar na terceira divisão antes de entrar no seminário. Começaram a surgir interessados. A primeira a lhe oferecer um contrato foi a humilde LDU de Portoviejo. Depois, o gigante Barcelona também quis contar com ele.

A condição do sacerdote era sempre a mesma: o futebol não podia distraí-lo de sua missão. Só treinaria quando pudesse e jamais jogaria aos domingos, dia de missa e repouso sagrado. Além disso, não toleraria atrasos no “cachê” que receberia quando jogasse: dever a Bazurko era passar a perna na própria Igreja, pois o dinheiro seria todo usado para bancar a reforma da capela onde sua comunidade rezava.

Os clubes aceitaram sem pestanejar.

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Libertadores #4
Dividido entre o vestiário e a sacristia.

Na Libertadores de 1971, aquele improvável Barcelona acabou dando a Spencer suas últimas jornadas de glória continental. Sem o cacife para buscar títulos como o Peñarol, o Ídolo del Ecuador ainda assim fez bonito dentro de suas possibilidades à época: superou um grupo compartilhado com seu rival citadino, o Emelec, e os colombianos Junior e Deportivo Cali, para se tornar o primeiro clube equatoriano a atingir as semifinais do continente — naquele então, em triangulares. O próprio Spencer, que ainda tinha bola para gastar, faria cinco gols ao longo da campanha.

A bela trajetória, porém, tinha tudo para se encerrar sem que as semifinais deixassem grandes memórias. A Unión Española, do Chile, até era vencível. Mas como superar o outro time da chave, o imparável Estudiantes de La Plata, instituição que mais bem encarnava o espírito (e as trampas) da Libertadores naquele momento? Nos três anos anteriores, os Pincharratas haviam se tornado o primeiro clube a enfileirar um tricampeonato sul-americano e, em 1968, puseram a coroa mundialista na cabeça ao superar o Manchester United de George Best e Bobby Charlton, dentro de Old Trafford.

Treinado por Osvaldo Zubeldía e comandado em campo por Juan Ramón Verón, o Verón pai, aquele Estudiantes havia construído uma má-fama como um expoente do antifútbol que muitos julgavam necessário para tocar La Copa. Embora fosse uma equipe com um inegável bom futebol, a virilidade sempre presente beirava a brutalidade — e, às vezes, descambava para a falta de qualquer ética esportiva, como nas infames agulhadas de Carlos Bilardo em seus adversários, ajudando a criar uma mística de um time que não se rendia de modo algum, mesmo se precisasse apelar.

Zubeldía já não estava mais no Estudiantes quando a campanha de 1971 se iniciou, abrindo espaço para Miguel Ignomiriello e o que viria a ser uma era menos vencedora, mas disso ainda ninguém sabia e as esperanças permaneciam intactas. O Leão de La Plata ia por mais um título, e tinha ao seu lado a fortaleza situada na dobra da avenida 1 com a rua 57, o Estádio Jorge Luis Hirschi: lá dentro, o Estudiantes jamais havia sido derrotado pela Libertadores. Contava um empate por 0x0 ainda na primeira campanha, contra o Millonarios de Bogotá, e só vitórias desde então.

Após o Pincha abrir o triangular com um triunfo por 1×0 no Equador, El Gráfico reforçava o sentimento de que o caminho para uma nova decisão seria um passeio. “O Barcelona é um time de terceira categoria onde o maestro Spencer está jogando a última parada de sua grande carreira goleadora”, escrevia Oswaldo Ardizzone na famosa revista portenha. Ainda assim, para ganhar havia que saber como, e por pior que fosse o adversário Ardizzone se rendia à dificuldade de jogar fora: “o jogo era lá, em Guayaquil, com as arquibancadas de Guayaquil e os 35 graus de Guayaquil”. E, mesmo assim, deu Estudiantes. O desfecho da segunda rodada, em La Plata, parecia muito óbvio.

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Libertadores #4

Mas, em 29 de abril de 1971, o que ocorreu na esquina de “57 y 1” foi um daqueles jogos que, de tão marcantes, acabam por ganhar nome próprio. La Hazaña de La Plata permaneceria como o grande feito do futebol equatoriano pelas décadas seguintes e, mesmo quando o Barcelona atingisse duas finais de Libertadores nos anos 90, seguiria como uma de suas maiores vitórias: após três anos dominando o continente, a invencibilidade do Estudiantes em seu território estava finalmente exorcizada.

Com um gol marcado pela dobradinha entre o maior dos artilheiros e um padre.

Quase 30 mil torcedores encheram o acanhado Hirschi sonhando com mais uma final e esperando uma goleada contra aquele time “de terceira” que os articulistas haviam prometido. Foram tapeados: o Barcelona impôs um jogo duro, igualou o Estudiantes de um jeito que ninguém ainda havia conseguido fazer, e aos 17 minutos do segundo tempo viram a grande surpresa se consumar. El Pibe Jorge Bolaños, um histórico do futebol de Guayaquil, percebeu Spencer desmarcado e lançou para o ataque. O grande goleador então mirou Bazurko em corrida desabalada e não teve dúvidas: usando sua Cabeza Mágica, acertou uma bola entre os defensores para deixar o sacerdote cara a cara com o goleiro Flores.

E, como o padre efetivamente colocasse a bola na redes, dali nasceu o grito para sempre: benditos sean los botines del cura Bazurko. Os jornais diriam que Deus esteve ao lado do Barcelona naquela façanha. Músicas foram escritas sobre esse jogo: padrecito, padrecito, le decían los argentinos, no más goles padrecito. O um a zero permaneceu até o fim e o Estudiantes foi derrubado em casa pela primeira vez. Logo após a partida, Bazurko e Spencer, colegas de concentração, atravessaram o rio rumo a Montevidéu, onde o artilheiro ainda mantinha família, após onze anos de Peñarol: vitória garantida, o padre cumpria agora com sua outra missão — foi batizar um dos filhos de Spencer.

Libertadores #4

O delicado equilíbrio entre as romarias da bola e as obrigações da Igreja fizeram com que Bazurko logo pendurasse as chuteiras. Pelo Barcelona, fez apenas oito partidas, incluindo a eterna de La Plata, e participou da campanha pelo bicampeonato nacional em 71. Antes que o ano acabasse, porém, já estaria de volta à LDU de Portoviejo, mais perto de seu rebanho e, um ano mais tarde, nem ele nem Spencer jogavam mais bola. Depois das chuteiras, Bazurko também penduraria a batina. Pouco se sabe de sua vida após deixar o Equador, mas a imprensa de Guayaquil garante que voltou à Espanha, casou-se e teve dois filhos. Há quem diga, no entanto, que seu primeiro hijo era mesmo o Estudiantes.

Na sequência da Libertadores de 1971, foi a Unión Española que salvou os Pincharratas: perdeu os dois jogos diretos e segurou os equatorianos em uma das partidas, permitindo que o Estudiantes avançasse à quarta final consecutiva. Mas o Barcelona já havia provado que aquele time não era o mesmo de antes: o Nacional uruguaio venceu a decisão e a Copa saiu de La Plata, para onde não retornaria por quase quatro décadas inteiras depois disso.

Em 2017, Estudiantes e Barcelona voltaram a se enfrentar em La Plata pela Libertadores. O Hirschi não existia mais, demolido alguns anos antes e só agora caminhando para uma sonhada reabertura, e nenhum dos times tinha um missionário católico em campo. Mas certas tradições se mantêm: no Estádio Único, os equatorianos voltaram a vencer, como em 1971.


Puntero Izquierdo menorPublicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2019. O Puntero em parceria com o Ludopédio publica nesse espaço os textos originalmente divulgados em sua página do Medium.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Maurício Brum

Jornalista e historiador. Editor do Impedimento e sócio no Estúdio Fronteira. Autor dos livros “La Cancha Infame: A História da Prisão Política no Estádio Nacional do Chile” e “Morte e Vida de Victor Jara, a voz da Revolução Chilena”.

Como citar

BRUM, Maurício. Libertadores #4. Ludopédio, São Paulo, v. 149, n. 30, 2021.
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