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Libertadores #6

Maurício Brum 26 de dezembro de 2021

Ainda pior do que assistir o sucesso do maior rival, o Cerro Porteño precisa conviver com o trauma de jamais ter conseguido vencer uma semifinal de Copa Libertadores.

Libertadores #6

Ninguém jogou tantas Libertadores sem vencer — ou, mesmo, chegar à final — como o Cerro Porteño. O segundo maior campeão do Paraguai disputou nada menos que 40 das 60 Copas da história e, embora tenha visto o Olimpia se tornar um dos clubes mais vencedores do continente, nunca conseguiu emular o sucesso do rival. A tal ponto que, em 2014, a atribulada relação do Cerro com a taça que nunca ergue ganhou um requinte de crueldade a mais, quando o Nacional Querido — também sediado no Barrio Obrero de Assunção, a exemplo dos azulgranas — tornou-se o segundo paraguaio a decidir a Libertadores, enquanto o vizinho famoso segue na fila.

Semifinais, estas sim, o Cerro Porteño jogou às pencas ao longo dos tempos. Seis delas, para ser mais preciso, nas diferentes fórmulas que a Copa teve através das décadas. Mas, em cada uma, ficou no caminho por distintas razões. Às vezes sem qualquer chance de avançar, como em 1978, quando abriu o triangular levando 3×0 do Alianza, em Lima, e fechou caindo por 4×0 para o Deportivo Cali, dentro de casa. Noutras, fazendo jogo duro mesmo contra todos os prognósticos — como em 1993, diante do São Paulo de Telê que buscava o bicampeonato, quando caiu após levar 1×0 no Morumbi e, no Paraguai, sustentar um 0x0 que manteve suas possibilidades abertas até o fim.

Mas nenhuma das decepções seria como a de 1998, a vez em que o Cerro Porteño esteve mais próximo de tocar o céu da final continental que jamais atinge. Aquela Libertadores ficou na memória, particularmente na dos brasileiros, pelo outro lado do mata-mata: o lendário encontro entre o Vasco da Gama (que acabaria campeão) e o poderoso River Plate já no ocaso de seus brilhantes anos 90, uma eliminatória decidida graças ao “gol monumental” de Juninho Pernambucano em Núñez. O River x Vasco, afinal, passou uma sensação de final antecipada, que acabaria confirmada pela posterior conquista cruzmaltina.

Só que, embora parecesse, aquela não era a verdadeira final. Ainda havia um outro lado tentando definir quem desafiaria os brasileiros ou argentinos e é por essa curva esquecida da história que passa uma das noites mais tristes da vida do torcedor cerrista. Na chave dos azarões, o Cerro Porteño media forças contra o Barcelona de Guayaquil, um fantasma antigo, que em 1992 já havia encontrado — e eliminado — os paraguaios nos pênaltis.

Se no confronto do início da década o Barcelona era considerado um time mais imponente, tendo sido vice-campeão da América apenas dois anos mais cedo (contra… o Olimpia), em 1998 a história era distinta: o Cerro Porteño era favorito. Tinha crescido nos mata-matas e estava jogando um futebol difícil de parar. Tão favorito que, anos mais tarde, quando o meia Miguel Domínguez trocou o clube paraguaio pelos equatorianos, ouviu de seus ex-adversários: “nós planejamos o jogo de Assunção para evitar uma goleada”.

Na ida, em Guayaquil, o Cerro havia jogado muito melhor: pressionou mais, teve um gol anulado, e ainda assim acabou levando 1×0 porque certos traumas nunca passam e superar antigas maldições exige muito mais do que uma boa atuação. Antony de Ávila havia feito um gol cedo e o domínio cerrista não encontrou o caminho do empate. Mas, em uma época sem gol qualificado, era um placar plenamente buscável dentro de casa. O Cerro já havia cometido feitos mais difíceis naquela mesma Copa.

E, no Defensores del Chaco, uma semana mais tarde, o favoritismo começou a valer cedo: em apenas 4 minutos os azulgranas já haviam empatado a eliminatória. Aos 22, abriram 2×0 e fizeram o placar necessário para jogar a inédita final de Copa. O Barcelona não era páreo.

* * *

Quando aquela Libertadores começou, pouco parecia indicar que o Cerro Porteño de 1998 entraria na história como o que esteve mais próximo do sonho continental. A Copa abriu de maneira calamitosa, levando 5×1 do Olimpia. No returno, sem goleada, o Cerro voltou a ser derrotado pelo rival. No fim das contas, com troca de treinador incluída, o Ciclón paraguaio acabou avançando com mais derrotas que vitórias, em um grupo compartilhado com os chilenos Colo Colo e Universidad Católica. Salvou-se graças ao número de gols marcados: balançou as redes 6 vezes, contra 5 dos Cruzados.

O início infeliz, porém, logo deu lugar a mata-matas em que o time se transformou. Começou contra o América de Cali, vice-campeão da Copa (como de hábito) apenas dois anos mais cedo. No Paraguai, vitória por 1×0. Na Colômbia, para onde o Cerro foi com pompa e circunstância, viajando no avião presidencial, uma virada que seus torcedores não esquecem: após o América devolver o 1×0 no início do segundo tempo e acreditar na virada, o clube do Barrio Obrero foi capaz de dar a volta no marcador nos dez minutos finais.

Naquelas mesmas oitavas-de-final, o badalado Olimpia não fazia jus aos massacres da primeira fase e acabava eliminado, nos pênaltis, pelo surpreendente Colón de Santa Fe — clube do interior argentino que, em 2019, busca o título da Copa Sul-Americana, mas nunca foi frequentador ou versado em Libertadores: há 21 anos, o Colón fazia sua primeira participação no principal torneio do continente, e assinalava naquele jogo sua maior façanha. Na fase seguinte, cairia com duas derrotas para o compatriota River Plate.

Com o Olimpia fora diante da zebra, o Cerro Porteño passou a empunhar, solitário, a bandeira do Paraguai. E agora teria um teste formidável: nas quartas-de-final, coube aos azuis e grenás enfrentar um Peñarol que tinha tradição, fome e urgência. O aurinegro de Montevidéu vinha de conquistar, no ano anterior, o pentacampeonato uruguaio consecutivo. Era o segundo Quinquenio de Oro da história do clube, um feito que só a lendária equipe do início dos anos 60 havia sido capaz. Só que, se os heróis de três décadas antes também tinham conquistas continentais e mundiais para ostentar, o Peñarol dos 90 só dava voltas olímpicas dentro de casa: campeão da América pela última vez em 1987, havia acabado de completar uma década sem sequer chegar às semifinais da Copa.

O Cerro Porteño, tão verde nesses jogos decisivos, parecia a vítima perfeita para interromper a série infeliz. E coube a Pablo Bengoechea, líder e principal craque dos uruguaios, cravar o gol que parecia condenar o Cerro à sina de sempre: o jogo de ida, no Centenario, havia permanecido administrável na maior parte do tempo. O Peñarol vencia, mas só por um de diferença, e foi apenas aos 48 do 2º tempo que veio o gol do Profesor Bengoechea. Dois a zero, agora sim, era muita coisa para remontar.

Só que, em Assunção, o Cerro Porteño voltou a viver uma das maiores noites de sua história internacional e indicou que aquela Libertadores, quem sabe, não fosse exatamente como as outras: fez 3×0. De súbito, era semifinalista, igualando as melhores campanhas de sua história, e parecia ter um chaveamento mais acessível que o normal.

 

* * *

Foi por isso que, quando o jogo de Guayaquil terminou em derrota simples, nenhum cerrista realmente se assustou. Amaldiçoaram os céus pela má-sorte que sempre os acompanha nesse tipo de jogo, mas sabiam que tinham mais bola. O Barcelona não chegava a assustar: havia se classificado atrás do mesmo América de Cali que o Cerro despachou com duas vitórias. Nos mata-matas, eliminou o Colo Colo — outro a quem o Cerro havia vencido duas vezes — e o Bolívar, que tradicionalmente fraqueja longe da montanha e também o fez no litoral equatoriano naquele duelo de 1998: 4×0 para o Barcelona, após 1×1 em La Paz.

Libertadores #6Talvez fosse um erro, pois nunca se pode confiar muito no Cerro Porteño quando o assunto é Libertadores, e talvez a metade azulgrana do Paraguai terminasse quebrando a cara. Mas aquele início avassalador no Defensores del Chaco parecia dar razão a todos os prognósticos de que, desta vez, o Cerro seria finalmente um dos dois principais times sul-americanos. O que viesse na decisão era outro problema: só chegar a ela já era uma nova história, um rompimento das correntes. O Cerro fez 2×0 em 22 minutos, o que equivalia a 2×1 na soma dos jogos, e seguiu pressionando e jogando muito melhor.

Mas não fez outro gol naquela noite.

Ao contrário: perdeu várias chances e acabou tomando. Em um dos raros ataques do Barcelona, a quinze minutos do apito final, a zaga ficou mal parada e deixou Washington “Coco” Aires livre para mandar um chute firme no canto de Bobadilla. Era o gol do 2×1, que na realidade era 2×2 ao somar os jogos, e agora o Cerro Porteño estava condenado aos pênaltis. Após jogar melhor a ida e perder, massacrar na maior parte da volta e vencer por apenas um de diferença, o Cerro ainda teria mais uma oportunidade para desperdiçar, desde os 11 metros. Mas o vento, agora, já parecia ter virado. E, como no velho clichê da bola, o Cerro estava confrontado com a possibilidade muito real de jogar como nunca e perder como sempre.

Nos pênaltis, seria menos a nova história desejada pelo Ciclón, e mais a repetição de 1992. No futuro, o nome associado àquele jogo já não seria o de um goleador da equipe paraguaia, mas o do goleiro dos equatorianos: José Francisco Cevallos, o mesmo que dez anos mais tarde se tornaria um fantasma eterno na vida de outro gigante com dificuldades continentais — o Fluminense, a quem parou jogando pela LDU de Quito campeã de 2008. Naquela noite, em Assunção, Cevallos pegou três — incluindo o primeiro do Cerro, que abriu a série dos dois times. Depois, pegou também o terceiro chute.

Houve uma derradeira chance para o Cerro acreditar e se frustrar: com a classificação na mão, o Barcelona errou seu quinto chute e manteve as esperanças paraguaias vivas por uma rodada de alternadas. Aí, Cevallos apareceu novamente, defendendo o chute de Fabián Caballero. Não houve mais perdão: Antony de Ávila, um especialista em chegar a finais de Libertadores — o antípoda humano do Cerro Porteño — mandou para as redes. Na Rádio Sucre, de Guayaquil, o narrador Duval Zedeño berrava:

En Defensores del Chaco no lo puede creer la gente.

Gritan todos los integrantes del Barcelona.

Se abrazan los jugadores con el guardameta Cevallos, porque es el gran héroe de la jornada.

Aquel que hace posible esa dramática clasificación se llama José Francisco Cevallos.

O Barcelona era finalista pela segunda vez. Antony de Ávila, pela quarta. Cevallos começava a construir uma mística pessoal que renderia seus momentos mais famosos dez anos mais tarde.

O Cerro Porteño continuava o mesmo de sempre.


Puntero Izquierdo menorPublicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2019. O Puntero em parceria com o Ludopédio publica nesse espaço os textos originalmente divulgados em sua página do Medium.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Maurício Brum

Jornalista e historiador. Editor do Impedimento e sócio no Estúdio Fronteira. Autor dos livros “La Cancha Infame: A História da Prisão Política no Estádio Nacional do Chile” e “Morte e Vida de Victor Jara, a voz da Revolução Chilena”.

Como citar

BRUM, Maurício. Libertadores #6. Ludopédio, São Paulo, v. 150, n. 36, 2021.
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