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Lilli Henoch e a resistência contra o nazismo

Wagner Xavier de Camargo 10 de outubro de 2021

Em setembro último fez 80 anos do assassinato de Lilli Henoch, uma excepcional atleta judia, que foi morta pelo regime nazista alemão, em 1942. Conheci sua história por meio de um livro que ganhei de presente, Championnes (Campeãs, em tradução livre), de Lorraine Kaltenbach e Clémentine Portier-Kaltenbach, publicado em 2019.

Foto: Capa do livro Championnes (Campeãs), de Kaltenbach e Portier-Kaltenbach, edição francesa.

Lilli desenvolveu uma paixão pelo mundo dos esportes, numa época de efervescência de tais práticas por mulheres – notadamente na segunda década do século XX. Como era oriunda de uma família rica e de status privilegiado, ela experimentou não somente modalidades individuais como também as coletivas, e desenvolveu habilidades motoras surpreendentes desde muito cedo.

Vale lembrar que o mundo naquela época era bem diferente do que é hoje e não se encontravam muitas mulheres esportistas. O esporte moderno tinha sido recém-inventado pelo Barão Pierre de Coubertin e era uma prática homossocial por excelência (de homens para homens). Havia um consenso comum de que mulheres “serviam” para serem torcida e só deveriam praticar esportes que não fossem contra “a natureza de seu corpo”, feito para gerar proles saudáveis. Lilli se aventurou no atletismo, uma atividade que era considerada “nada feminina” para os padrões (europeus).

Algo que potencializou sua carreira esportiva foi a mudança da família de uma região da antiga Prússia Oriental para Berlim, capital alemã, o que deu a ela a chance de se filiar ao Berlin Sports Club (BSB), logo depois do fim da Primeira Grande Guerra. O clube esportivo congregava grande parte de judeus e foi lá que Lilli encontrou condições para treinar e desenvolver suas habilidades atléticas.

Entre 1922 e 1926 acabou colecionando uma série notável de resultados esportivos, como recordes sucessivos no lançamento de disco (chegando a 26,62 m, em 1923), várias vitórias no arremesso de peso (atingindo 11,57 m, em 1925), e uma marca arrasadora com a equipe alemã de revezamento 4 x 100 m, que em 1926, marcou 50”40 na prova. Em 1924, ela também ganhou uma medalha de prata nos 100 metros rasos, no campeonato anual alemão.

Além disso, desde 1925 também estava envolvida com modalidades coletivas, como o hóquei no gelo e o handebol. Como expõe Gertrud Pfister, uma importante pesquisadora alemã de história do esporte, “Lilli Henoch, que aderiu ao BSC pouco depois da Guerra, rapidamente se tornou a sua melhor atleta e passou a ser admirada não só pelo seu nível do seu desempenho, mas também devido à sua espantosa versatilidade atlética” (PFISTER, 1999, s/p.).

Ao passo que Adolf Hitler ascendia ao poder nos anos 1930 e estendia os tentáculos da ideologia nazifascista sobre vários setores da sociedade, a carreira esportiva de Lilli definhava progressivamente. Foi expulsa do BSB, e mesmo com toda a excelência em sua performance, deixou de representar a Alemanha em competições oficiais.

Alemanha Nazista
Foto: Policiais nazistas pregando cartaz com dizeres: “Alemães! Contra-ataque Judeus! Não comprem de Judeus” sob olhar atônito de mulher pedestre.(Fonte Wikipédia). 

 

Segundo nos conta as autoras Lorraine e Clémentine, com muita resiliência, Lilli acabou encontrando uma vaga de professora de ginástica, numa escola judaica. Passou, assim, a fazer parte do Clube Judeu de Ginástica e Esporte 1905 (Jüdischer Turn und Sportclub 1905), que era apadrinhado da Associação dos Veteranos Judeus Alemães da Grande Guerra. Mas acabou durando muito pouco.

No início de setembro de 1942, há exatos 80 anos, Lilli Henoch, sua mãe e seu irmão eram deportados para o campo de concentração de Riga, numa área interiorana da Lituânia. Lá são separados, e ela e sua mãe são levadas por um esquadrão paramilitar responsável por execuções em massa, geralmente via armas de fogo. Tais esquadrões, os chamados Einsatzgruppen, operavam nos territórios europeus ocupados por nazistas, matando milhões de pessoas, sobretudo judeus. Eles ficaram conhecidos na implementação do que se chamou de “solução final da questão judaica”, um horror sob todos os aspectos.

Elas foram assassinadas a sangue frio, e em conjunto com muitas outras pessoas (dentre as quais figuravam artistas, intelectuais, homossexuais, ciganos, professores, todos em sua maioria judeus) foram enterradas numa vala comum, nas proximidades do próprio campo de concentração da Lituânia.

Lilli Henoch
Foto: Placa de homenagem (chamada Stolperstein) a Lilli Henoch, em frente sua antiga casa em Berlim. Nos dizeres, “Aqui morou Lilli Henoch, nascida em 1899, deportada em 5.9.1942 para o campo de concentração de RIGA, assassinada em 8.9.1942” (Fonte Wikipédia).

 

Mesmo resistindo, Lilli Henoch acabou compondo a lista de vítimas da “arianização do esporte” (termos de Lorraine e Clémentine), na qual figuraram vários nomes de atletas, que desapareceram do mapa simplesmente porque eram judeus ou porque passaram a ser perseguidos pelo regime nazista.

Para quem se interessar:

Kaltenbach, Lorraine; Portier-Kaltenbach, Clémentine. Lilli Henoch: Martyre des Einsatzgruppen. In: Championnes: elles on conquis l´or, l´argent, le bronze. Flammarion/Paris: Arthaud Poche, 2019. p. 151-153.

Pfister, Gertrud. Lilli Henoch. Jewish Women’s Archive: A Comprehensive Historical Encyclopedia. 31 Dec. 1999. Disponível em https://jwa.org/encyclopedia/article/henoch-lilli. Acesso 28 set 2021.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Lilli Henoch e a resistência contra o nazismo. Ludopédio, São Paulo, v. 148, n. 15, 2021.
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