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Ludwig Guttmann e o esporte paralímpico

Wagner Xavier de Camargo 23 de agosto de 2020

Quem hoje ouve falar de esporte de pessoas com deficiência não tem a dimensão histórica da importância de Ludwig Guttmann e de sua contribuição para tal prática. Um esporte que nasceu de atividades físicas recreacionais para lesionados medulares (chamados paraplégicos, à época), atualmente é uma expressão extremamente bem-sucedida de prática esportiva.

Ludwig Guttmann. Foto: Wikipédia

Médico judeu, Guttmann mudou-se com a família para Portugal e, logo em seguida, para a Inglaterra, no fim dos anos 1930, quando eram cada vez mais intensos os movimentos antissemitas em várias regiões da Alemanha e arredores, que instauravam um clima de pavor. Instalando-se em Buckinghamshire, passou a trabalhar no Hospital de Stoke Mandeville, onde abriu uma unidade responsável por tratar lesões na medula espinhal, sua especialidade médica.

O local tratava, particularmente, ex-soldados lesionados dos combates da Segunda Guerra e as expectativas de vida para tais sujeitos não eram as melhores, tendo em vista as limitações clínicas e terapêuticas. Os tratamentos de reabilitação eram longos e, muitas vezes, a imobilidade ou falta de perspectiva de futuro, levavam-lhes ao óbito.

Guttmann teve uma ideia sensacional: movimentar o corpo do paciente, reabilitando-o com múltiplos exercícios recreativos e esportivos. Uma das estratégias era mover o corpo da cama a cada 2 horas para prevenir escaras de pressão e, subsequentemente, infecções. Ainda os estimulava a andar ao redor dos prédios, amparados por enfermeiras ou mesmo por muletas e cadeiras de rodas. E sua grande sacada foi sugerir que tais pessoas se engajassem em atividades esportivas competitivas. Parte dessa história é contada num curto documentário, disponível no Youtube, chamado The Mandeville Legacy, da Cliff Productions.

Ludwig Guttmann. Foto: Wikipédia

Seus novos métodos enfrentaram resistência do hospital, que via com maus olhos o excesso de movimento prescrito para os pacientes. Porém, o médico defendia suas ideias baseadas na percepção de melhora clínica do quadro geral e mesmo da autoestima do sujeito lesionado.

Lembro-me de uma cena de outro filme (The Best of Men, 2012), assistido por mim num canal de televisão do hotel, quando participava de um evento acadêmico em Manchester, no ano de 2013. Nos idos de 1948, Guttmann foi chamado para dar explicações ao board counseling (conselho de administração) do Hospital sobre os motivos de oferecer esportes para deficientes, no programa das atividades extra-reabilitação. Era o ano dos Jogos Olímpicos de Londres e alguns diretores achavam ridículo o que aquelas pessoas fariam, em comparação com o que os atletas de alto nível ofereceriam ao público. Essa é exatamente a cena que dá título ao filme, visto que Guttmann explica que os paraplégicos são “the best of men” (os melhores da humanidade) e que seus exemplos de superação é o que ofereciam.

Os Jogos Nacionais de Stoke Mandeville ocorreram no mesmo dia em que houve a abertura oficial dos Jogos Olímpicos de Verão, em Londres, naquele mesmo ano. Guttmann os chamou de “paralel to Olympics”, ou paralelos às Olimpíadas – daí viria o termo paralympic (para-olímpico), que com o tempo se tornou paralímpico em português. E tais jogos foram um sucesso, com demonstração de vigor físico e força de vontade, na modalidade tiro com arco, de 40 pacientes homens e 2 mulheres, que podem ser considerados/as os/as primeiros/as atletas paralímpicos da história.

As edições dos Jogos de Mandeville se tornam anuais e os esportes foram se diversificando. A importância ganha vulto e o que começou com atletas paraplégicos em cadeira de rodas, passa a englobar outros, com outras deficiências (motoras, intelectuais, sensoriais), que usavam ajudas distintas, como muletas, órteses e próteses. Pela visibilidade da iniciativa, e por suporte da Federação Internacional de Ex-combatentes (World Federation of Ex-servicemen), tais jogos ocorrem, em 1960, paralelamente aos Jogos Olímpicos de Roma. Mais tarde, vão ser reconhecidos pelo Comitê Olímpico Internacional como os I Jogos Paralímpicos.

Imagem: Wikipédia

Apenas há pouco mais de 50 anos da criação do esporte moderno, Guttmann foi revolucionário no que propôs. Era impensável naqueles anos colocar uma pessoa lesionada, mesmo com auxílio mecânico, para fazer uma atividade que visasse a competição ou o rendimento esportivos.

Sem dúvida, algo nessa ação era digno de nota: o projeto de inserção no esporte não apenas conferia melhor condição física para o sujeito, como melhorava a autoestima e proporcionava socialização entre iguais. E para a sociedade conservadora dos anos 1940-50, que julgava que pessoas com deficiência tinham que ficar escondidas dentro de casa, essa exposição trazia um resgate do potencial de valor humano daqueles corpos.

 

Guttmann é o “pai” dos Jogos Paralímpicos, assim como Pierre de Frédy (ou o Barão de Coubertin) é considerado o criador dos Jogos Olímpicos da Era Moderna. Ambos têm importância nas histórias olímpica e paralímpica que se desenvolveram ao longo do século XX. Guttmann viveu a alegria de ter acompanhado as primeiras edições dos Jogos Paralímpicos e o engajamento sempre crescente de atletas com deficiência. Talvez tenha se desapontado com o assimilacionismo do movimento em relação ao universo olímpico ou mesmo o preterimento dos Jogos, sempre o irmão mais novo que vive à sombra do mais velho.

De qualquer forma, nestes últimos dias de agosto (de 21 a 28), em que é comemorada a Semana Nacional da Pessoa com Deficiência, vale lembrar dessa figura que Guttmann representa e que ainda carece de maiores pesquisas com foco biográfico. Excetuando-se livros que trazem a “história oficial” do desenvolvimento do esporte paralímpico (como Spirit of Stoke Mandeville, de Susan Goodman), nos quais Guttmann é sublinhado como figura importante, não se encontra obra que resgate este percurso tendo ele como centro.

Acompanhei parte do desenvolvimento da história do esporte paralímpico, ao menos do ponto de vista da intersecção do Brasil nela. Vivi os dinâmicos anos após a bem-sucedida edição dos Jogos de Barcelona, em 1992, e como tudo se estruturou muito rápido por aqui. O Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) foi criado em 1995 e, mesmo muito jovem, logo começou a angariar bons resultados.

As edições posteriores do entroncamento entre milênios (Atlanta-1996, Sidney-2000, Atenas-2004 e Pequim-2008) representaram o crescimento vertiginoso deste tipo de esporte em terras brasileiras e mesmo do incremento tecnológico de próteses super-propulsoras e cadeiras de roda de última geração, principalmente para atletas com amputações ou com outras deficiências físicas. Isso resultou em quebra de recordes por atletas brasileiros/as e uma visibilidade sem precedentes do nosso modo de praticar esportes paralímpicos. Guttmann pode não ter nada a ver com essa história local, mas certamente é o responsável indireto por tudo isso o que estamos conquistando.

 

Referências 

GOODMAN, Susan. Spirit of Stoke Mandeville: the story of Sir Ludwig Guttmann. London: Collins Pub., 1986.

The Best of Men (Filme). Direção: Tim Whitby, 90 min, 2012.

The Mandeville Legacy (Documentário). Direção: Darren Cliff, 3’31 min, Cliff Productions, 2012.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Ludwig Guttmann e o esporte paralímpico. Ludopédio, São Paulo, v. 134, n. 51, 2020.
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