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Luta de classes, dramas sociais e origens do futebol moderno

Wagner Xavier de Camargo 3 de maio de 2020

Você já se perguntou quais são as origens do futebol? De onde veio, quem o inventou e mesmo como chegaram nesse formato de jogo que hoje assistimos e tanto gostamos? Apesar de haver textos sobre isso, muitos deles sociológicos e não tão acessíveis, há algumas produções fílmicas ou documentários e, pela primeira vez em uma plataforma de streaming, uma série que se propõe a responder tais questões a partir das origens históricas, inclusive com resgate de fatos e pessoas reais, numa narrativa envolvente. “O Jogo Inglês” (ou The English Game) está disponível desde 20 de março de 2020 na Netflix e traz como cenário o desenvolvimento do futebol moderno no século XIX, no Reino Unido.

Dividida em seis episódios na primeira temporada, a série situa a história no ano de 1879, quando um time de operários de uma fábrica de algodão da pequena cidade de Darwen chega às quartas de final da F.A. Cup (ou Copa da Inglaterra), em menção a um torneio organizado e arregimentado pela Football Association, fundada em 1863. O fato em questão é que até então nenhuma equipe que não fosse da aristocracia tinha chegado a uma etapa decisiva da Copa.

A trama tem como protagonistas principais um trabalhador da referida fábrica, Fergus Suter (interpretado pelo escocês Kevin Guthrie), e um aristocrata, Arthur Kinnaird (personagem do inglês Edward Holcroff). Fergus é trazido de um time de Patrick, de Glasgow, para jogar em Darwen e, a partir disso, outra tensão é introduzida, qual seja, a “transferência” de um jogador mediante pagamento em dinheiro no sistema do futebol inglês, que naquele momento ainda se encontrava em estruturação.

The English Game, série do Netflix. Foto: Reprodução.

Vale lembrar duas questões aí enfocadas. Em termos de regras, um compêndio delas recebeu concordância unânime apenas na penúltima reunião inaugural da Football Association no fim de 1863, conforme explicam Eric Dunning e Graham Curry (2006). Foi nesta ocasião que se proibiram dois pontos polêmicos que se arrastavam por anos: a proibição definitiva em carregar a bola com as mãos e o golpear jogador adversário para impedir a jogada. Vários episódios ilustram este período muito bem, como indecisões quanto à jogadas em campo ou mesmo se a regra permitia ou não um tempo adicional de prorrogação.

Além disso, o esporte moderno nascia como fruto do cavalheirismo dos nobres ingleses e receber dinheiro era impensável naquele contexto. Esta tensão está muito bem colocada na série, e perpassa várias cenas e discussões, desde as que mostram tal ganho possibilitando ao personagem Fergus ajudar sua família na Escócia, até as que focam os acalorados debates dentro dos encontros da Football Association sobre o pagamento de alguns jogadores daquele futebol, que parecia nascer com ares de se profissionalizar. O conflito entre amadorismo e profissionalismo será resolvido por lá somente mais tarde, no ano de 1885.

A partir do mote introdutório do jogo de futebol nas quartas de final e da presença de Fergus e Jimmy Love (o escocês James Harkness) contratados mediante dinheiro para jogar em Darwen, alguns dramas se desenvolvem. De um lado, os operários da fábrica lidam com uma situação social de penúria diante do monopólio dos meios de produção de algodoeiros, das políticas salariais e a exploração de sua mão de obra, e de outro, histórias pessoais no meio aristocrático mostram mulheres traídas por seus maridos, casos de abortos e mesmo um abrigo para mulheres grávidas e mães solteiras, recusadas exatamente pela condição de gestação não reconhecida – denominado na série Blackhall Women’s Refugee, na cidade de Blackburn, Inglaterra. É o futebol permeando as relações sociais.

Esse último ponto é interessante de ser observado. De meu ponto de vista, apresenta-se uma visão feminista e contestatória dentro da série a partir de algumas personagens mulheres. São os casos de Margaret Alma Kinnaird (inglesa Charlotte Hope), mulher de Arthur, que claramente se coloca contra o privilégio dos homens dominarem os assuntos ou de humilhar sujeitos subarternizados; Martha Almond (a irlandesa Niamh Walsh), mãe solteira e camareira, que luta para sobreviver, tem consciência de classe e acaba por se tornar companheira de Fergus no fim da primeira temporada; Betsy Crownshawn (Lara Peake), operária que acaba engravidando e sofre estigma social devido a sua condição de mulher solteira; Lydia Cartwright (Kelly Price), mulher aristocrata e coordenadora do refúgio Blackhall, que abortou várias vezes e ostenta preconceito pelas mulheres lá acolhidas, e que termina se compadecendo com a situação da filha bastarda de seu marido.

Por suas atitudes e falas, dão pistas para que entendamos como a mulher era tratada num momento da história do ápice do imperialismo inglês, denominado “Século Imperial Britânico” (1815-1914) pelos historiadores, o qual foi caracterizado pelo auge da produção da Revolução Industrial, expansão colonial e dominação do continente africano e, consequentemente, afirmação de uma masculinidade ortodoxa. Neste período histórico no qual a série se desenvolve, as mulheres começaram a questionar a dominação patriarcal aceita socialmente. Temos em fins do século XIX o que se chamou depois de primeira onda feminista – e o Reino Unido foi um dos lugares de maior expressão.

Desse ponto de vista, posso dizer que a série tematiza, de modo acurado mas bastante sutil, as relações entre gêneros num contexto vitoriano (a rainha Vitória governa o Reino Unido neste período), no qual a ordem do “casal procriador” deveria prevalecer sobre o sexo por puro prazer. Momentos íntimos que aparecem rapidamente em alguns episódios mostram cenas bem comportadas dos casais, na cama ou mesmo em trajes de dormir.

The English Game. Foto: Divulgação/Netflix.

De volta aos gramados, durante anos houve uma disputa ferrenha entre modos de jogar o football, como chamavam, nas escolas públicas e mesmo nas universidades. E nessas houve uma bifurcação de pontos de vista que deu origem a duas modalidades distintas: o futebol moderno e o rúgbi. Contam vários autores que estudantes da escola de Eton (etonianos) e os da escola de Rugby disputavam para descobrir qual modelo de jogo prevaleceria sobre o outro. Na série fílmica, Arthur e seus amigos jogadores aristocratas eram todos ex-alunos de Eton e, portanto, jogavam numa equipe nomeada Old Ethonians (antigos etonianos).

A série também tematiza a violência dos encontros esportivos. Especialmente no episódio 4, há uma contenda amadora entre as equipes de Darwen e de Blackburn, na qual um dos jogadores, no caso Jimmy, “transferido” do primeiro clube para o segundo, com o propósito de fazer tabela com o amigo Fergus. No jogo, ele acaba sofrendo uma falta, marcação rara naquela época e isso resulta em sua perna quebrada, com a tíbia exposta. Autores ingleses que escreveram sobre futebol já haviam se referido a isso, mesmo nas escolas públicas, onde um tipo de futebol era praticado e regras orais conferiam certa despadronização de ações nas disputas pela bola: “[…] o jogador tropeçava, montava, acotovelava, empurrava com os ombros e sentava no adversário […] e havia também um bom número de tíbias quebradas, porque a maioria dos jogadores usavam chuteiras com pontas de ferro” (DUNNING; CURRY, 2006, p. 60).

Segundo Norbert Elias (1992), um sociólogo do esporte que estudou justamente tais questões em torno do esporte e do futebol, o grau de violência refletido naquelas práticas amadoras e iniciantes estava vinculado aos traços de organização da sociedade britânica da época, centralizada num Estado nacional. Conforme o século XIX se desenrolava, o aumento do controle estatal e do monopólio da violência davam origem a um autocontrole nas práticas, regulado pelo medo. Se isso acontecia, de outro lado a sensação de prazer e liberdade promoviam explosões de violência, como vimos no jogo amistoso entre Darwen e Blackburn, no qual Jimmy foi lesionado. Tal explosão de violência de torcedores, muitos anos mais tarde, vai originar um fenômeno conhecido como hooliganismo.

A série The English Game trouxe a história das origens do futebol moderno e também o cenário que acolherá o desenvolvimento dos esportes em fins do século XIX. Ela é um ótimo estudo social acerca dessas questões que, em geral, passam longe dos fãs de esporte. Sem querer, quem assiste a série terá duas oportunidades mais do que únicas: saber mais sobre como o futebol enquanto jogo se desenvolveu e entender um pouco mais os dramas sociais, as lutas de classe e o panorama histórico de quando tudo isso aconteceu.


Para quem se interessar:

The English Game. Direção: Birgitte Stærmose e Tim Fywell. 2020. Disponível Netflix

DUNNING, Eric; CURRY, Graham. Escolas públicas, rivalidade social e o desenvolvimento do futebol. In: GEBARA, Ademir; PILATTI, Luiz A. Ensaios sobre história e sociologia nos esportes. Jundiaí: Fontoura, 2006, p. 45-76.

ELIAS, Norbert. A gênese do deporte moderno: um problema sociológico. In: Elias, Norbert & Dunning, Eric. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992, pp. 187-221.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Luta de classes, dramas sociais e origens do futebol moderno. Ludopédio, São Paulo, v. 131, n. 6, 2020.
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