99.17

Luta livre de mulheres: G.L.O.W. e anos 1980

Wagner Xavier de Camargo 17 de setembro de 2017

Há certas coisas na vida que nunca esquecemos. Um fato inusitado, um ruído aborrecedor, um perfume marcante ou mesmo um programa televisivo. Bem, nesse último caso, apenas para quem nasceu numa época histórica em que a TV era a vedete de qualquer casa de família. Lembro-me, com certo saudosismo, de alguns programas de luta livre aos sábados à noite que, em geral, assistia com um tio ou com meu pai. Em que pesem suas opiniões de que tudo aquilo lá era combinado, do auge de minha impetuosa sabedoria juvenil eu pensava que não podia ser, pois era muita emoção junta e meu coração sempre seguia em ritmo alucinado.

O programa era transmitido pelo SBT e, se não me falha a memória, se chamava “Luta Livre de Mulheres”. Vigorou na grade de programação até início dos anos 1990 – aliás, como vários outros programas desenvolvidos pela emissora ou importados. Afora a rivalidade estabelecida entre Globo e SBT que se alternavam na briga infantil do “Ibope”, nós telespectadores/as é que saíamos na vantagem pelos vários bons programas oferecidos, como Bozo, Chacrinha, Balão Mágico, novelas mexicanas e afins.

Como parece que vivemos hoje um boom de referências que estão voltando da década de 1980, semanas atrás, enquanto zapeava por entre filmes e séries de uma rede de streaming muito popular da internet na atualidade, surpreendentemente encontrei G.L.O.W., anunciada como uma “nova série” à disposição. G.L.O.W. (Gorgeous Ladies of Wrestling) é exatamente aquilo que vi quando jovem adolescente, ou seja, um programa televisionado de luta livre de mulheres, cujo objetivo era a catarse e o plágio cômico de ações de wrestling (desenvolvidas, inclusive, pelos homens). Na época em que surgiu nos EUA foi um sucesso absoluto de audiência.

https://www.youtube.com/watch?v=-LKFqyeFpoE

Não sou expert em luta livre ou boxe, apesar de ser fascinado pelo universo dos esportes. Mas sei que aqueles shows de luta livre eram distintos do boxe e mesmo da luta greco-romana, justamente porque eram concebidos como espetáculo. O formato “espetáculo e movimentos esportivos”, misturados com cenas eletrizantes e engraçadas, davam o tom divertido da contenda. Outra característica importante da luta livre (ou particularmente essa entendida como show) era a pré-determinação do resultado. Além disso, assistíamos às lutadoras (ou aos lutadores) usando todos os tipos de golpes e manejos de braços ou pernas, com acrobacias aéreas e uso de objetos, que só mesmo podiam ludibriar um garoto (ainda inocente) como eu naquela fase da adolescência.

A recente série, portanto, é inspirada no programa real de luta livre de mulheres daqueles anos 1980 e quer contar a história de G.L.O.W. Traz, como protagonistas, uma atriz desempregada em Los Angeles (Alison Brie interpretando Ruth Wilder) e um diretor decadente de filmes B (Marc Maron personificando Sam Sylvia), que juntos a um grupo de 14 outras mulheres bem diferentes entre si, tentam montar, sem muito apoio e pouco patrocínio, um show de wrestling feminino para ser vendido às redes de TV. A série é cômica, mas de um humor sutil e inteligente. Aborda, ao mesmo tempo, inúmeros estereótipos comuns na década de 1980 (de “mulher foi feita pra casar” ao tabu do sexo entre diferentes etnias), porém – e ironicamente –, reverte-os como instrumentos libertários para as próprias mulheres protagonistas.

Há uma infinidade de referências em todos os dez episódios, desde a trilha sonora (que tem músicas de Queen, David Bowie, Roxette, Scorpions), passando pelas cenas de luta livre masculinas nos televisores (que eram uma febre, principalmente nos EUA), pelos vários filmes de espionagem de 007, a Guerra Fria e os discursos de Reagan, pela moda de fumar cigarro, pelos penteados com laquê, pelas ombreiras, glitter e cinturas altas nas roupas. Ao que parece, G.L.O.W. surge exatamente num período em que a liga feminina de luta livre norte-americana estava em decadência e propõe uma via alternativa no sentido de trazer de volta a importância da modalidade. Em várias falas dos episódios frisa-se o “empoderamento feminino” frente a situações adversas. Como num diálogo de Sam e Ruth no episódio 3, sobre o mau humor da atriz frente ao insucesso de arranjar um trabalho Sam diz “tente ligar o foda-se pra quem te xinga.. Isso é  empoderamento!”.

capaglow
Imagem do cartaz de divulgação da série G.L.O.W.

Particularmente um estereótipo é o algoz do grupo: a prostituição. Há várias cenas em que elas justificam que “não são prostitutas” e “não fazem programas”. No episódio 5, por exemplo, as garotas vão para uma sessão de treino, enquanto o próprio diretor exclama “girls wrestling is fucking hot”. Com verossimilhança na realidade, as lutadoras vestidas com collants coloridos, que deixavam suas formas delineadas, eram consideradas “prostitutas” a partir de uma visão masculina e machista. Tanto na série, quanto no programa original, discursos e ações das lutadoras assentam-se (assentavam-se) no caráter disruptivo de tentar reverter tamanha injustiça relativa a elas e a sua modalidade.

A atual série G.L.O.W. tem apenas 10 episódios e nós não sabemos se vai ou não continuar. De qualquer forma, seja para se inteirar das referências dos anos 1980 ou para olhar para um importante movimento esportivo que envolveu lutadoras amadoras em dado momento da história nos EUA, ela é uma importante fonte de conhecimento para saber mais sobre o wrestling de mulheres. E, sobretudo, para dialogar sobre os preconceitos e estereótipos de gênero que, trinta anos mais tarde, ainda nos afetam!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 16 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Luta livre de mulheres: G.L.O.W. e anos 1980. Ludopédio, São Paulo, v. 99, n. 17, 2017.
Leia também:
  • 177.14

    Resumos do GTs XI e XII – III Seminário Online do Ludopédio 2024

    Equipe Ludopédio
  • 177.12

    Resumos do GTs IX e X – III Seminário Online do Ludopédio 2024

    Equipe Ludopédio
  • 177.10

    Copa 71: how the first women’s World Cup was erased from footballing history

    John Williams