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Manga: do corpo entregue ao futebol ao corpo abandonado na velhice

Não demora e se completarão cinco décadas de uma das experiências mais marcantes da minha infância. Em uma tarde de domingo há 46 anos, 19 de setembro de 1976, meu pai, meu irmão e eu fomos juntos ao Estádio Orlando Scarpelli, em Florianópolis, mas não para assistir a um jogo do Figueirense, proprietário daquela praça esportiva, mas do Avaí, seu arquirrival, que enfrentaria o Internacional, de Porto Alegre. O time azurra ainda não tinha a Ressacada, e não podia exercer o mando de campo no Campeonato Nacional em seus domínios que, naquele tempo, se limitavam ao acanhado Adolfo Konder, onde hoje se localiza o Shopping Beira-mar. Se tal gentileza entre os clubes é hoje difícil de imaginar, é porque os tempos são mais cheios de esquinas e a amizade, mesmo na rivalidade, vai cedendo espaço para as estúpidas animosidades.

Era a segunda participação avaiana no certame nacional e o time contava com jogadores que depois fariam história no futebol brasileiro, como Renato Sá e Lico. O Inter, que defendia o título conquistado no ano anterior, vinha quase completo: sem Falcão, jogou em seu lugar o jovem Jair, o Príncipe Jajá, que se destacaria na conquista na campanha do tri, em 1979, na Libertadores e na Copa Intercontinental de 1981, ambas atuando pelo Peñarol, do Uruguai. Na ponta-esquerda o titular Lula foi substituído por Luís Fernando Gaúcho. No mais, era o Colorado octacampeão do Rio Grande do Sul, com Figueroa e Marinho Pérez na zaga, Caçapava e Batista na proteção da defesa, Valdomiro e Dario, o artilheiro, no ataque, e Jair na armação do jogo. No gol, soberano, o veterano Manga.

Era uma época em que eu começava, aos poucos, a acompanhar o futebol, pela televisão, mas também por meio da leitura dos encartes que acompanhavam os times de futebol de botão e da consulta aos livros que chegavam até nós: Jogando com Pelé, em que o Rei mostrava, com textos e imagens, como ser bom jogador, mesmo que não um craque, e o Almanaque Disney sobre o esporte. No ano seguinte eu começaria a ler regularmente a Placar, assim como as páginas esportivas de jornais paulistas e cariocas. Foi nesse contexto que fiquei sabendo da longa e exitosa carreira de Manga, uma surpresa de criança, ser cuja consciência histórica não costuma ser das mais amplas. Afinal, o goleiro, nascido em 1937, já chegara aos 39 anos naquela partida em Florianópolis, vencida pelo Internacional por 4 x 0. Ele era apenas três anos mais jovem que meu pai, cujo desempenho futebolístico ainda era, aliás, razoável no futebol amador da cidade.

Manga
Manga em jogo Botafogo X Fluminense. Fonte: Wikipédia

Ao longo dos anos fui entendendo que além de grande goleiro do Colorado, Manga era um excepcional arqueiro brasileiro, e não só para seus compatriotas, já que fora tetracampeão uruguaio pelo Nacional, além de vencer uma Libertadores e uma Copa Intercontinental pelo Tricolor de Montevidéu. Soube também que o goleiro nascido no Recife atuara pelo timaço do Botafogo dos anos 1960, equipe algum tempo treinado por João Saldanha, com quem teve uma altercação que por pouco não resultou em morte. Coisa de varões que se assinalam em masculinidades inseguras, essas que precisam evocar a violência para manter a ilusão de seguirem, por assim dizer, eretas. Mesmo assim, ambas figuras admiráveis.

Ídolo no Nacional, cujos torcedores o resgataram no Equador, último país em que atuou profissionalmente e onde vivia antes de voltar ao Brasil, ídolo também no Botafogo, que o homenageou com uma camisa temática; admirado no Internacional, em que chegou a bicampeão brasileiro (1975-1976), embora também tenha sido vitorioso também no arquirrival Grêmio; adorado no Operário, de Campo Grande, pelo terceiro lugar no Campeonato Nacional de 1977, pelas defesas implacáveis: esse é Manga. O mesmo que eu gostei de ver, na minha infância, em seu regresso tardio e derradeiro à seleção brasileira, levado por Cláudio Coutinho para compor o elenco que disputava as eliminatórias para a Copa de 1978.

Manga
Fonte: Acervo Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã

Manga tem alguns dos dedos tortos nas mãos que defenderam tantas bolas, e que buscaram algumas no fundo das redes, carne e ossos quebrados que se recuperaram mal, sem o devido cuidado, já que o futebol não podia prescindir da presença dele em campo. Hoje, na nonagésima década de vida, o velho goleiro já não tem a mesma firmeza, enfrenta a pobreza e a doença, mesmo tendo sido acolhido pelo Retiro dos Artistas, no Rio de Janeiro. É o primeiro futebolista a ocupar uma das casas, reafirmando o caráter artístico do futebol do qual ele fez parte. Ídolos ou não, a velhice no Brasil é, para a maioria dos sobreviventes, uma condenação, não porque a vida vai se esvaindo, o que corresponde à condição humana, mas porque o abandono é regra. Que neste país tão difícil, escolhido pelo grande arqueiro para passar seus últimos tempos, ele tenha um pouco de conforto. Ele e todos os velhos, de todos os tempos e lugares.

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Manga: do corpo entregue ao futebol ao corpo abandonado na velhice. Ludopédio, São Paulo, v. 159, n. 26, 2022.
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