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Manipulação de resultados: problema que acompanha o futebol mundial

Copa Além da Copa 5 de janeiro de 2022

Em algum momento da sua vida futebolística, depois de um árbitro assinalar de forma polêmica um lance, você já deve ter ouvido alguém dizer que “é tudo armado” – talvez você mesmo já tenha dito isso. Mas, é claro, uma revolta após a marcação de um lance é bem diferente de conseguir provar um grande escândalo de manipulação de resultados.

O que não quer dizer que eles não existam. Mas justamente por envolverem pessoas falíveis, eles também costumam vazar e escandalizar torcedores e imprensa. Infelizmente, nem todos são punidos da maneira que deveriam, e outros ficam apenas nas suspeitas, sem evidências que possam comprová-los para além disso.

Este texto é um complemento ao episódio 45 do podcast Copa Além da Copa, sobre as apostas esportivas no contexto do futebol. Se você ainda não ouviu, clique aqui para escutar.

Colômbia: virada suspeita

Não é o tipo de armação mais comum, mas existem algumas partidas em que um time não parece fazer esforço suficiente para vencer, o que sempre levanta as sobrancelhas de quem está assistindo. Algo desse tipo ocorreu há poucas semanas na segunda divisão da Colômbia, num quadrangular final em que somente o primeiro colocado conquistaria o acesso.

Na última rodada, o Unión Magdalena visitou o Llaneros, ambos com chances matemáticas de subir. O time da casa estava conquistando o acesso com o placar de 1 a 0. Os visitantes, porém, conseguiram uma virada milagrosa, com gols aos 50 e aos 51 do segundo tempo.

Acontece que nem todo mundo acreditou no milagre. O gol da virada do Unión chamou demais a atenção pela falta de esforço dos defensores em combater o atacante. Essa preguiça e displicência é algo difícil de explicar, mesmo revendo o lance várias vezes.

A situação estranhíssima fez com que se manifestassem até mesmo jogadores da seleção que atuam na Europa, como Juan Cuadrado e Matheus Uribe, dizendo que o gol era “uma falta de respeito” e “uma vergonha”. E, como o caso repercutiu em jornais do mundo inteiro, até o presidente colombiano Iván Duque foi às redes sociais exigir uma investigação sobre o caso.

Até agora, porém, nada foi encontrado. O acesso do Unión Magdalena continua confirmado e a final da segunda divisão (a ser disputada contra o vencedor de outro quadrangular, o Cortuluá) foi apenas adiada, sem previsão de realização.

Unión Magdalena
Fonte: Wikipédia

Calciopoli: a Itália sacudida

Talvez os mais velhos se lembrem de que, no início dos anos 80, uma denúncia de jogadores manipulando resultados no campeonato italiano deveria ter tirado Paolo Rossi daquela tarde do Sarriá em 1982, quando eliminou o Brasil da Copa. Com aquela vitória redentora, a Itália de Rossi seguiu firme e conquistou o título.

Na última conquista italiana, em 2006, algo similar ocorreu às vésperas do Mundial. Se lá atrás a combinação de resultados era para favorecer apostadores, há 15 anos, o escândalo descoberto a poucos dias da Copa do Mundo estava relacionado à pressão exercida na arbitragem por dirigentes dos principais clubes do país.

Grampos telefônicos feitos pelo que seria o Ministério Público italiano revelaram que cartolas de clubes como Juventus e Milan ligavam para altos dirigentes da federação e chefes de arbitragem para influenciar na maneira como os juízes deveriam atuar, favorecendo ou prejudicando determinados times. Havia também a promessa e a entrega de presentes, além de ameaças.

O nome mais implicado no escândalo era o do veterano dirigente da Juventus, Luciano Moggi, tanto que o esquema era chamado de “sistema Moggi” entre os envolvidos. Por isso mesmo, seu clube foi o que sofreu a punição mais pesada: a revogação de seus dois títulos mais recentes e o rebaixamento. Fiorentina, Lazio e Milan também foram todos castigados com a perda de pontos na primeira divisão, e o mesmo houve com Reggina e Arezzo na segunda divisão.

O caso veio à tona no começo de maio de 2006, quando faltava somente um mês para a Copa do Mundo na Alemanha. E, como sabemos, mesmo com seu futebol doméstico afundado em denúncias de resultados arranjados, a Itália foi campeã.

Luciano Moggi
Luciano Moggi, ao centro. Foto: Wikipédia

No Brasil, divisões inferiores são alvo

As casas de apostas online da atualidade oferecem a possibilidade dos usuários colocarem seu dinheiro em vários acontecimentos: vencedor, gols, minutos dos gols, quantidade de cartões, quantidade de escanteios e muito mais. Talvez manipular uma dessas estatísticas menos “decisivas” seja mais fácil do que o resultado final em si.

Viralizou recentemente um vídeo de um jogo entre Serrano e Goytacaz, pela Série B1 do Campeonato Carioca, no qual vários escanteios suspeitos aconteceram. A equipe de Campos afastou dois atletas, que constantemente pareciam colocar a bola pela própria linha de fundo sem motivo, com o próprio presidente classificando a conduta como “muito estranha”.

Os jogadores afastados se defenderam, afirmaram que apenas não estavam em um bom dia e que a diretoria nem sequer tentou conversar com eles. Até o momento, nada foi provado. Mas casos como esse são comuns: em maio, partida entre Força e Luz e Assu, pelo Campeonato Potiguar, teve nada menos que dezenove escanteios no primeiro tempo. Muitos também não parecem naturais.

360 mil jogadores de futebol são registrados no Brasil. Desses, apenas 25% são profissionais, dos quais 55% ganham um salário mínimo. Com muitos campeonatos de divisões inferiores acontecendo o tempo todo e grande facilidade para se apostar neles, a possibilidade de manipulação chama a atenção dos trapaceiros: os valores oferecidos aos atletas podem mudar uma vida, várias vezes representando anos do que seria conquistado dentro de campo.

Se os casos suspeitos do Campeonato Carioca da Série B1 e do Campeonato Potiguar ainda não tiveram nenhuma irregularidade comprovada, há outras investigações que já concluíram, sim, que houve manipulação de resultados em competições de pouca visibilidade.

A “Operação Game Over”, que aconteceu em 2016, descobriu uma máfia de apostadores que investia dinheiro em questões banais como qual equipe teria o primeiro escanteio de um jogo. Trata-se de um esquema muito mais simples e difícil de ser descoberto: basta subornar um jogador para despretensiosamente colocar a bola para fora, logo no início da partida, e encher a conta bancária sem levantar muitas suspeitas.

Havia também situações complexas investigadas, como altos valores investidos em questões como um time anotar três ou mais gols nos últimos quinze minutos de uma partida. Quando uma aposta muito grande é feita em uma questão improvável como essa, porém, os sites imediatamente notam que há algo de errado e fazem o bloqueio do jogo.

Oito pessoas foram presas na “Operação Game Over”. Seis clubes do interior de São Paulo que disputam as divisões inferiores do Campeonato Paulista procuraram a polícia dizendo que seus jogadores receberam ofertas para manipular partidas. Em caso que chegou a ser publicado no jornal Diário de S. Paulo, atletas do Grêmio Barueri teriam ganho 25 mil reais para que a equipe perdesse por mais de três gols de diferença para o Rio Preto. O alviverde riopretano venceu por 4 a 0.

Após a temporada de 2019, o Tribunal de Justiça Desportiva de São Paulo suspendeu o Batatais, que disputara a Série A-3 naquele ano, por suspeita de participação em esquema de manipulação de resultados. O clube terminou a competição em décimo segundo lugar, mas sofreu algumas goleadas consideradas inexplicáveis. Mais tarde, porém, o time foi absolvido e pôde disputar normalmente a competição em 2020.

Quando a manipulação quase se torna tragédia

Em outubro de 2019, o São José, equipe da quarta divisão do Campeonato Carioca, venceu o Brasileirinho. O problema: a partida estava comprada por apostadores para ter a vitória do time que acabou derrotado.

Segundo relatado à polícia, o goleiro do São José recebeu 3 mil reais e os defensores ganharam mil reais cada para entregar “gols bobos” ao Brasileirinho. Mesmo assim, o adversário não conseguiu marcar. Um homem apresentado como “investidor do clube” invadiu um treino armado na semana seguinte, ameaçou os atletas e afirmou que eles teriam “sérios problemas” se não colaborassem nas próximas oportunidades.

Mas nem houve novas oportunidades. Na partida seguinte, toda a defesa do São José estava mudada. Já sob investigação da polícia, o presidente do time teria dito ao auxiliar técnico, em ligação telefônica, já no final do jogo: “leva esse gol logo, eu já estou desesperado aqui!”.

A polícia começou trabalhando com a hipótese de três equipes do campeonato participarem da manipulação do resultado, mas descobriu que eram pelo menos nove. As quantias financeiras envolvidas na compra de atletas variavam entre 800 e 3 mil reais, demonstrando a facilidade do suborno. E os apostadores, que normalmente não dão as caras em situações como essa, sabiam ser notados quando as coisas não aconteciam como queriam.

Se em tão pouco tempo tantos esquemas foram descobertos, quantos outros não acontecem pelo país?

Fiscalização e integridade das apostas

As trapaças, é claro, não interessam às casas de apostas. Nós costumamos ver na ficção que trapaceiros costumam ter finais bastante trágicos quando são descobertos. Apostas online são diferentes e não têm o mesmo mecanismo de punição que cassinos de antigamente, mas isso não significa que operadores não trabalhem atentamente para coibir qualquer irregularidade.

Há empresas que trabalham em parceria com as casas de apostas e federações, sempre buscando possíveis irregularidades, além de mecanismos que bloqueiam imediatamente qualquer jogo que é alvo de movimentações esquisitas como grandes quantidades de dinheiro investidas em eventos improváveis.

A regulação do funcionamento das casas de apostas no Brasil, que aconteceu em 2018, facilita a fiscalização e o monitoramento das atividades. Um comitê de integridade no jogo é uma das soluções que pode colaborar com o combate das manipulações de resultado. É um trabalho conjunto entre operadores de apostas, empresas de estatísticas e federações, o mesmo que acontece em vários países e garante a segurança no jogo.

Mas manipulações sempre existiram, até mesmo nos hipódromos ingleses do século XVIII. Em um Brasil cada vez mais empobrecido e destruído, o número de atletas cujos olhos brilham com o dinheiro oferecido por trapaceiros não para de crescer.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Copa Além da Copa

Perfil oficial do Podcast Copa Além da Copa. A história, a geopolítica, a cultura e a arte que envolvem o mundo dos esportes.

Como citar

COPA, Copa Além da. Manipulação de resultados: problema que acompanha o futebol mundial. Ludopédio, São Paulo, v. 151, n. 4, 2022.
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