80.12

A mão que parou Pelé

Gabriel Canuto Nogueira da Gama 26 de fevereiro de 2016

Sempre quis ser um contador de histórias. Ou melhor, um catador de histórias, mas não exatamente como a Penélope Keeling do romance de Rosamunde Pilcher, Os catadores de conchas, ou Jonathan Safran Froer do homônimo escritor do livro Uma vida iluminada. Aos dezessete anos, no esplendor da juventude, eu guardava um obstinado desejo: fazer emergir do passado à luz do presente as memórias mais subalternas que pudesse encontrar. Em suma, almejava contar a história dos outros e não apenas fustigar sobre a minha. Decidi que esta seria razão suficiente para a minha primeira grande e laboriosa escolha na vida. Fui ser jornalista.

Três anos depois, aos vinte e à frente, como editor-chefe, de um portal de notícias sobre o futebol mineiro chamado Observatório do Esporte, embarquei rumo à minha primeira grande história de bordo. A terra de destino era Uberlândia e a missão? Encontrar o homem que parou Pelé e ouvir a sua história de peixe grande.

Por mais pretensioso ou audacioso que pudesse parecer, sonhava em transpor a subjetividade e o viés analítico-descritivo do jornalismo literário para a cobertura esportiva. Inspirado nos moldes da revista piauí, ansiava em chafurdar à procura de histórias cativantes de personagens futebolísticos jamais contadas pelo mainstream do jornalismo e reportá-las para o mundo. A do goleiro Renato da Cunha Valle era digna de uma dessas.

Renato em ação com a camisa do Atlético. O goleiro atuou pelo alvinegro entre 1970 a 1972
Renato em ação com a camisa do Atlético. O goleiro atuou pelo alvinegro entre 1970 a 1972.

Assim que atraquei no Triângulo Mineiro, na manhã de 25 de maio de 2012, fui ao bairro central para o meu primeiro dia de entrevistas com Renato, o goleiro atleticano campeão brasileiro de 1971 e carrasco do Rei. Já estava tudo combinado previamente. Seria um dia inteiro acompanhando a sua então rotina de assessor de campanha de um candidato a vereador local e ouvindo as suas peripécias de jogador de futebol.

Na primeira parte do dia, Renato me recebeu em seu escritório de trabalho e, até hoje, lembro do seu olhar atônito ao perceber que seu entrevistador era bem mais novo do que pensava. Frente a frente, duas gerações separadas por décadas, todavia, unidas pela memória e pelo passado. De um lado da mesa, aquele homem robusto com cerca de 1,80 metros e de semblante inabalável se acomodava envolto de infindáveis documentos técnicos e folhetos de propaganda política. Do outro, aguçava o ouvido, preparava o gravador e esperava pelos relatos heroicos daquele sujeito.

Visivelmente eufórico com a possibilidade de narrar seus feitos, Renato iniciou a sua saga de aventuras contando o encontro com um emblemático técnico mineiro. No dia 2 de julho de 1970, quando ainda atuava pela equipe do Uberlândia em uma partida contra o Atlético, válida pelo Campeonato Mineiro, Telê Santana transformou a carreira do arqueiro. Pouco antes de a torcida alvinegra se acomodar nas arquibancadas e o habitual burburinho ecoar no estádio, Renato e seus companheiros caminhavam para os vestiários minutos antes do início do duelo quando, repentinamente, Telê Santana irrompeu na porta do hall principal do Mineirão e parou o goleiro no meio do caminho. Em tom informal e objetivo, ao seu melhor estilo, o treinador fez o inesperado convite a Renato. “Quando terminar o Campeonato Mineiro, eu vou mandar contratar você. Eu te conheço, sei da sua postura e quero você no meu time”. Com aquele simples toque nos ombros, Telê mudou a vida de Renato. Dois meses depois, o goleiro começou a escrever sua história com a camisa do Galo, aos 26 anos de idade.

Ao relatar, emocionado, a sua amizade com Telê Santana, Renato revelou: “Ele era uma referência, uma pessoa muito aberta e inteligente. Além de ter sido um cara sério e comprometido, Telê tinha seu lado enérgico. Com ele não tinha brincadeira durante os treinamentos. Mas fora de campo era outra pessoa, muito amigo. O Telê aceitava opinião, havia diálogo. Ele era o comandante mesmo, tinha o time na mão”.

Renato (à esquerda) com a delegação atleticana ao lado do atacante Dadá Maravilha (à direita)
Renato (à esquerda) com a delegação atleticana ao lado do atacante Dadá Maravilha (à direita) na campanha vitoriosa de 1971.

Oriundo da classe média alta e filho de um oficial da marinha fascinado por futebol, Renato vivia um contexto bem diferente dos jovens talentos que enxergavam o esporte como uma forma ascensão financeira e social. Durante sua juventude, acabou trilhando o caminho inverso da maioria dos garotos. Enquanto os meninos da sua idade brincavam nas ruas e mostravam às famílias aptidão para o futebol desde cedo, Renato só jogava escondido, nas praias do Rio de Janeiro, e sem o apoio pleno dos pais. Apesar dos entraves, ele não pensava em qualquer outra profissão a não ser o de jogador profissional de futebol. Era o início da década de 1960 e eclodia no país o Regime Militar. Milhares de jovens clamavam pela liberdade e democracia de direitos. Para Renato, em plena adolescência, o sonho era o mesmo. Lutar por seu espaço para vencer os preconceitos da família.

No começo de sua carreira, não houve qualquer tipo de empresário ou agenciador − hoje, símbolos arraigados e (quase) imprescindíveis de um futebol regido por uma ótica mercadológica. Enquanto construía sua carreira sozinho, à espera de uma chance, Renato contava com a sorte, na expectativa de alguém se interessar por seu jogo. E foi justamente isso que aconteceu. “Não fiz teste nenhum. Eu entrei no futebol, porque jogava nas praias do Rio de Janeiro e tinha um amigo que já jogava no juvenil do Flamengo. Um dia ele me chamou e eu aceitei treinar lá. Depois de um amistoso que fizemos, veio um auxiliar do Válter Miraglia (então treinador do Flamengo) me convidando”.

No período da tarde, me reencontrei com Renato, em sua residência, para ouvir as outras “novas velhas histórias”. Personagem vívido dos tempos da bola de couro e das luvas esfarrapadas, Renato traz consigo marcas indeléveis de um passado áureo do futebol brasileiro nas paredes preenchidas por recortes amarelados, homenagens de fãs e fotos em preto e branco.

No corredor do apartamento, um pôster roubava a atenção em uma das paredes. Era a imagem do time campeão brasileiro de 1971. A me ver me deparando com aquela relíquia pessoal, Renato começou a contar sobre o dia em que salvou o primeiro grande título da história do Atlético.

Faltava pouco menos de quatro minutos para o apito final. Contra-ataque do São Paulo puxado por Paraná. Humberto Monteiro corre desesperadamente para impedir a jogada, porém, fica no meio do caminho e o time paulista segue com a bola. Paraná avança pela lateral direita, rola para a área e acha Gérson. Ele entra na área. O Mineirão grita. Está perto, faltam poucos metros, quase na marca do pênalti, o “canhotinha de ouro” prepara o chute e…“Acho que foi a mão de Deus. Botei a mão para a direita e consegui defender. Éramos quase campeões brasileiros”.

Era a partida de estreia do Galo no triangular decisivo do Campeonato Nacional de Clubes de 1971, o primeiro Campeonato Brasileiro reconhecido. “São poucos que lembram desse lance”, disse, se referindo ao instante em que a equipe do São Paulo quase marcou nos momentos finais daquele inesquecível 12 de dezembro. Renato salvou com a ponta dos dedos o que seria o gol de empate dos paulistas. O Atlético acabou derrotando o São Paulo por 1 a 0, gol de Oldair, e pôs a mão na taça.

Além da defesa milagrosa nos minutos finais, Renato afirmava, enfaticamente, que o gol de falta alvinegro aconteceu graças a um rápido diálogo que teve com o capitão antes da partida, ainda nos vestiários. Renato e seus companheiros calçavam suas chuteiras, arregaçavam as meias e ouviam as últimas instruções do mestre Telê. O goleiro chamou Oldair no canto e disse: “Se o Gérson entrar na barreira, você chuta na cara dele, entendeu? Porque ele tem um medo danado da bola! Não se preocupa com o gol, não!”. Era um prenúncio do que iria acontecer. Aos 30 minutos do segundo tempo, o Atlético avançava pela intermediária com o ágil Spencer, que só foi parar após Samuel cometer falta na “risca” da área, dentro da “meia-lua”. Tião fingiu cobrar, passou correndo sobre a bola e aconteceu o que Renato tanto esperava. Oldair seguiu os conselhos do goleiro e largou uma bomba em direção a Gérson. Não deu outra. O canhotinha de ouro abaixou a cabeça e a bola morreu no canto esquerdo da meta de Sérgio.

A importância daquela vitória foi tanta que muitos torcedores alvinegros creditam o gol marcado por Oldair no Mineirão como o do título, já que no duelo seguinte, frente ao Botafogo, o Galo só precisava de um empate. Uma semana depois, acabou vencendo os cariocas por 1 a 0.

Renato mostra sua marca de profissão em forma de cicatriz: uma grave lesão no dedo mindinho esquerdo quando defendia as cores do Taubaté-SP
Renato mostra sua marca de profissão em forma de cicatriz: uma grave lesão no dedo mindinho esquerdo quando defendia as cores do Taubaté-SP.

Mas, as histórias que mais me impressionaram foram as que vieram logo em seguida: a recordação dos encontros e duelos frente a frente com o Rei Pelé.

O primeiro deles foi justamente a sua estreia na categoria profissional defendendo o Flamengo. Era o dia 19 de dezembro de 1964 e o clube carioca precisava de um milagre para se sagrar campeão brasileiro pela primeira vez em sua história. O grande problema era o adversário: o imbatível Santos do trio Coutinho, Pelé e Pepe. Na primeira partida da final, Pelé havia feito três gols no estádio do Pacaembu e os santistas golearam por 4 a 1.

E foi nestas circunstâncias, precisando vencer por três gols de diferença no Maracanã e diante de 52 mil pessoas que aquele jovem, de apenas 20 anos de idade, entrou em campo pela primeira vez, ao substituir Marcos Aurélio no segundo tempo. “O Pelé tentou umas três vezes fazer aquele golzinho por cima que gostava de fazer, mas não conseguiu. O Santos jogava pelo empate e a partida acabou 0 a 0.  No final do jogo, Pelé me cumprimentou, me deu parabéns pelo desempenho e disse que eu tinha futuro”.

Mesmo depois daquela decisão, Renato não conseguiu se firmar no Flamengo. A política da cúpula rubro-negra era favorável a contratações bombásticas em detrimento de dar chance às suas revelações. Sem espaço, o goleiro acabou rodando durante cinco anos pelos interiores do eixo Rio-São Paulo, até se destacar no time de Uberlândia. O contexto desfavorável em que vivia Renato levava a crer que a chance de um reencontro com a lenda santista era pequena. Mas o então garoto cresceu, adquiriu experiência e mal esperava que seus embates com a Pelé estavam prestes a acontecer. A ida para o Atlético acabou sendo determinante.

Mais maduro, com o voto de confiança de Telê Santana e já titular do Galo, Renato voltou a enfrentar Pelé em outubro de 1970. O duelo, válido pela primeira fase do antigo Troféu Roberto Gomes Pedrosa, aconteceu no estádio Parque Antártica e terminou em 1 a 1. Ao falar daquele jogo, ele não apaga da memória o único gol sofrido para o Pelé.

“Não tem como eu me esquecer daquele gol. O Santos atacou e nós pegamos a bola e contra-atacamos, só que na saída da defesa, o Pelé ficou mais atrás, como se tivesse na posição de impedimento. Falei para o Vantuir prestar a atenção no Pelé e ele me deu um sinal de ‘ok’ sem se preocupar muito. Só que neste mesmo momento, o Carlos Alberto Torres pegou a bola e lançou direto para o Pelé na frente. Ele correu, deu uma volta no Vantuir, ficou cara a cara comigo e tocou no canto. Foi o único gol que sofri dele em muitos jogos”, revelou orgulhoso pelo feito.

Na temporada vitoriosa com o Galo de 1971, Renato duelou contra Pelé outras três vezes, sendo uma pela fase inicial e outras duas durante o mata-mata. O Atlético venceu a primeira por 2 a 1, perdeu a segunda pelo mesmo placar e voltou a ganhar a terceira, por 3 a 1. No jogo em que valia vaga para o triangular final do campeonato, Renato se emocionou ao relatar como parou o melhor do mundo e qual foi a defesa mais difícil.

“Minha defesa mais marcante contra Pelé foi no ano seguinte, no Mineirão. Nós ganhamos o jogo. Teve uma jogada, em um córner, que teve uma confusão e eu saí do gol. O Pelé apareceu na frente e deu uma ‘chilena’ na bola no lado direito da trave e espalmei para o córner. O Pelé também tinha uma mania de bater as faltas e colocava a bola para quicar em cima do goleiro. Era uma estratégia só para o Edu pegar o rebote. Na vez que isso aconteceu, eu encaixei direto e o Edu até brincou comigo pedindo para eu soltar uns dois dedinhos”.

Após as respectivas aposentadorias, Renato e Pelé trilharam caminhos distintos e tiveram pouco contato fora das quatro linhas. Enquanto o ex-goleiro se enveredou pelo mundo do rádio, como comentarista, o Rei tentava de tudo: foi modelo, ator, garoto-propaganda e até político. Apesar de não terem construído uma amizade sólida, Renato demonstrava admiração pelo antigo rival e quando comentou sobre Pelé, fez referência ao seu famoso apelido. “Tenho um carinho muito grande pelo Negão. Em 1987, tive uma aproximação maior com ele, porque participamos de um jogo do time do Luciano do Valle. Ele só jogou a partida de abertura contra a Itália. Tivemos um treino antes do jogo e peguei três vezes o pênalti dele”, garantiu o feito risonhamente.

Hoje, aos 71 anos, Renato reside em Uberlândia, longe de seus três filhos e três netos. Já foi casado, mas morava em um apartamento de três quartos no centro da cidade até a realização da entrevista, em 2012. Nos corredores de sua casa, um acervo de fotos e condecorações formam um belo mosaico. Desde medalhas, troféus, pôsteres, até times de futebol de botão, relembrando os clubes por onde passou.  Preocupado com a forma física e sua saúde, ele não largava mão de suas caminhadas matinais aos domingos.

Há dezesseis anos no Triângulo Mineiro, Renato já circulou em praticamente todas as rádios locais como comentarista esportivo. Quando concedeu a entrevista, ele auxiliava na candidatura do vereador André Goulart à prefeitura de Uberlândia na função de assessor de gabinete. O ex-goleiro também trabalhava no IPREMU (Instituto de Previdência Municipal de Uberlândia), mostrando que a versatilidade é também uma de suas virtudes, mesmo longe dos gramados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Gabriel Canuto Nogueira da Gama

Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UFMG (Teoria da Literatura e Literatura Comparada), Graduado em Bacharelado no curso de Letras da PUC-MG. Graduado em Comunicação Social (Jornalismo) pela PUC-MG.Foi editor de seção da revista FuLiA / UFMG, periódico quadrimestral da Faculdade de Letras da UFMG, e membro do FULIA - Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, da UFMG.Tem ampla experiência na área de jornalismo esportivo. Foi co-fundador e editor-chefe do Observatório do Esporte, portal de notícias premiado em 2º lugar na versão online do programa "O aprendiz" da Rede Record de Televisão, em 2011. Exerceu a função de repórter do Grupo Estadão na Copa do Mundo de 2014 como correspondente em Belo Horizonte-MG. Tem experiência como editor de texto no programa "Globo Esporte", da TV Globo Minas.É autor dos livros de poesia: "Nós Dois: mais cedo que antes, mais tarde que depois" e "Para Não Desistir".

Como citar

GAMA, Gabriel Canuto Nogueira da. A mão que parou Pelé. Ludopédio, São Paulo, v. 80, n. 12, 2016.
Leia também:
  • 178.25

    Jogo 3: Galo 3 x 2 Peñarol

    Gustavo Cerqueira Guimarães
  • 178.23

    A dança proibida

    José Paulo Florenzano
  • 178.19

    Atlético Goianiense e Vila Nova – Decisões entre clubes de origem comunitária

    Paulo Winicius Teixeira de Paula