162.29

Maradona-Messi: 1986-2022

Fabio Perina 29 de dezembro de 2022

Antecedentes

Antes de mais nada, contra qualquer otimismo fácil ou ufanismo individual de “caça likes”, é necessário dizer que essa conquista de agora é muito mais coletiva do que aparenta e foi forjada à partir de várias derrotas anteriores. Desde 86 sem ganhar um mundial. Desde 93 sem ganhar uma Copa América (o que foi redimido um ano e meio antes em pleno Maracanã, como a principal credencial de confiança para essa atual equipe). Em 2009 e 2010, foi o principal encontro entre Maradona e Messi como treinador e jogador nas eliminatórias e depois no mundial. Logo depois, em 2011, já sem Maradona, sediar a Copa América foi um imenso peso para a seleção argentina e principalmente para Messi por representar a pior fase em que era acusado de “romperla toda (la pelota)” no Barcelona, porém na seleção era tido como um “vendido” ao sequer cantar o hino e não ter sangue nas veias.

Logo depois, em 2014, 2015 e 2016, as agônicas finais perdidas para Alemanha e Chile (2x) levaram à imediata renúncia de Messi da seleção. Quem logo depois maradoneanamente voltou atrás. Evidente que Messi é o maior protagonista de sua geração e sobre ele recaem as cobranças de muito talento e conquistas individuais por clubes, porém faltando a conquista coletiva pela seleção. Foi assim também com seus principais “socios” dentro e fora de campo desde o ouro olímpico em Pequim em 2008 e por mais de uma década carregando esse peso na seleção adulta: Angel Di Maria e Sergio “Kun” Aguero (esse segundo quem nos últimos meses se aposentou dos campos por problemas cardíacos, mas nunca deixou de estar próximo dos demais). Assim como Gonzalo “Pipita” Higuain, um artilheiro nato, porém tão marcado por perder gols imperdoáveis nas finais e também recém aposentado.

Ora, se toda guerra cobra suas baixas em suas batalhas, o capitão Javier Mascherano foi um guerreiro de mais de uma década quem também se aposentou após o desastre da eliminação de 2018. O que começou com o treinador Jorge Sampaoli com a blasfêmia de primeiro brigar com Messi e depois brigar com todos os demais a ponto de chegar à beira do abismo de uma eliminação ainda na primeira fase (representado com uma imagem icônica do periodismo oficialista, entregue ao entretenimento sem limites, fazendo um minuto de silêncio quando a seleção não estava ainda de fato eliminada). A crônica argentina tratou disso como rebelião (também chamado “cabildo abierto” pela alegoria de democracia direta) na qual o plantel tomou as rédeas e terminou de isolar de vez um treinador refém de suas idéias e seu estilo. Até mesmo para o cronista brasileiro Douglas Ceconello um grande paralelo entre dois movimentos contestatórios simultâneos: na Rússia pelos jogadores e em Buenos Aires pela greve geral dos trabalhadores contra o governo macrista. Ainda mais simbólico que o gol contra a Nigéria que deu uma sobrevida (na verdade apenas adiando um pouco a queda) foi com cruzamento do lateral Mercado ao lateral Rojo, da direita para a esquerda. E as analogias políticas pararam por aí, pois a coesão interna e o reerguimento e a redenção pelos anos seguintes exigiram criar uma autonomia relativa no lugar do excesso de interferência em que todos queriam sugar algo da seleção ao invés de aportar (inclusive políticos). E nisso também Maradona e Messi tanto se diferenciaram até aqui, sendo que a maior parte de suas vidas foram de mais lutas coletivas para o primeiro e mais lutas pessoais para o segundo.

Mas cerca de um ano após esse desfalque de Mascherano emergiu um novo reforço e dos mais inusitados. Era Messi em sua condição maradoneana, quando numa fatídica disputa de terceiro lugar na Copa América em 2019 justamente contra o “novo” rival Chile. Quando em um “arañazo” (dedos na cara) com Gary Medel que o craque Messi pela primeira vez também foi a fera indomável que tanto se esperou. Aquela quem sabe que com a mesma atitude se vence nos “potreros” e se vence nas finais em grandes palcos.

Não resolveria mais a zona de conforto de vários palpiteiros de se cobrar que a solução para voltar aos títulos seria o craque Messi ser ainda mais craque ao estar rodeado de (supostos) bagres. Mas sim que o espírito coletivo contagiasse a todos. E um discreto protagonista disso que emergia era o jovem treinador Lionel Scaloni, estreante em 2019, quem com baixa experiência para além de auxiliar técnico topou agarrar a seleção quando vários treinadores de renome não a aguentaram ou sequer a ousaram agarrar. Por falar em reencontros e antecedentes, Messi e Scaloni dividiram o plantel na seleção na Copa de 2006.
(Obs: sobre o discreto passado de Scaloni é preciso alguma menção sobre a geografia cultural e futebolística da Argentina. Pois se Maradona representa toda a potência plebéia vinda das villas bonaerenses, algo de complementar emerge de diversos rosarinos com outras potências intelectuais e criativas. Evidente que nem todos vencedores, mas sempre “laburantes”. Dentre eles evidentemente Messi e Scaloni. Esse segundo um discreto lateral entre os anos 90 e 2000, quem o brilhante treinador de seleções juvenis Pekerman identificava uma vocação precoce para enquanto jogador e depois como auxiliar técnico estar sempre grudado ao treinador de turno para sugar o máximo de aprendizado possível. Em suma, mais uma evidência que a glória eterna de 2022 de Messi veio como revanche a várias gerações de torcedores-jogadores-treinadores após 86 de Maradona que chegaram tão perto dela, mas não a tocaram todavia).

Aimar chorando
Foto: Reprodução.

Scaloni em seu retorno à seleção como treinador buscou se cercar de leais auxiliares como os referentes de sua época nos anos 2000: os zagueiros Ayala e Samuel e o meia Aimar. Todos por sua vez escaldados da traumática eliminação precoce em solo asiático em 2002. Ou seja, imaginem se essa retaguarda apesar de tanta liderança e conhecimento da seleção fossem eternamente questionados com um “mas ganhou o que?!” até serem crucificados… Portanto, Scaloni esteve mais sozinho que em um deserto, e apenas o apoio do (também inexperiente) dirigente da AFA, Claudio “Chiqui” Tapia, foi suficiente para sustentá-lo após perder a Copa América de 2019 e com isso o bancasse em 2021 e claro 2022 contra os demais colegas treinadores e principalmente contra todo o periodismo oficialista para permanecer. O cenário de uma “tempestade perfeita” de críticas permanentes em que um dirigente outsider rompia os livretos ao se escorar em uma aposta de altíssimo risco em um treinador também outsider ao invés de fazer o que a maioria faria de buscar uma cartada de segurança de algum treinador consagrado. Assim foi tomando forma a “Scaloneta”, um termo que na cultura “futbolera” remete a “máquina” pelo seu ritmo avassalador e remete a “veículo” por de alguma forma abrir caminhos como uma vanguarda que indica o rumo para o restante da nação. Portanto um termo mais prático e flexível do que um possível “Scalonismo” como seria bem mais comum em outras identidades políticas e claro também “futboleras”.

(Obs: a oposição recente do periodismo ficou bem mais escancarada, mas não um fato novo, vide as históricas guerras declaradas contra os treinadores Bilardo em 86, Passarella em 98 e diversos casos de lá para cá. Algo curioso de se expandir reflexões sobre a identidade nacional em disputa em tempos de um mundial. Pois paradoxalmente a publicidade, como a cerveja Quilmes, buscam uma representação de unidade e ufanismo; enquanto o periodismo realmente existente busca mais audiência com polêmicas e derrotas, e para isso incitando rachas, do que se os títulos viessem. Ora, tantos personagens nessa trama de vários anos fazem a seleção argentina mais dramática e burlesca que uma novela mexicana de vários meses. Felizmente o envolvimento de Maradona como treinador por apenas alguns meses no longínquo 2009-10 o preservou do desmoronamento de ídolos que o desgastaria se estivesse muito tempo ao lado do poder. O que o deixou de volta livre e pleno na condição de torcedor-jogador pelos próximos 10 anos. O que deixa como lição indireta que em uma potência futebolística como Argentina é muito fácil a captação de talentos, vide Messi e tantas gerações vencedoras nas categorias de base, porém muito difícil o seu funcionamento como equipe unida pronta a todas as batalhas).

Nessas condições de pouco respaldo externo que espontaneamente se reforçou a coesão interna entre um treinador-quase-jogador com jogadores-torcedores, quem tal qual Maradona e os demais heróis de 86 cantam a plenos pulmões as músicas da hinchada no vestiário como que se comemorando sua própria batalha. Após a dolorosa derrota para o Brasil na Copa América de 2019 (durante 3 anos a única da “Scaloneta”) serviu como um aviso extra que se ano após ano Messi era o craque solitário como em um deserto, aos poucos os referentes dessa equipe foram ficando ainda mais sólidos como De Paul e Paredes na meia, Lautaro Martinez no ataque e os novos testes que logo se firmaram com “Cuti” Romero na zaga e “Dibu” Martinez no gol (esse último por sua vez sempre criticado pelo periodismo por nunca ter passado pela prova de fogo de pegar no gol de Boca ou River). E evidências mais contundentes ainda foram as incorporações de última hora de Enzo Fernández e Alexis MacAllister na volância e Julián Álvarez no ataque. Sendo inusitado não apenas pela juventude porém com rápida evolução dos 3 como também indiretamente beneficiados pelo aumento de convocados de 23 pra 26. Mais detalhes dessas variações táticas e de nomes a cada partida no Catar podem ser conferidas nesse link. O que foi crescendo a vantagem de se saber possuir pelo menos um time e meio de possíveis titulares prontos a qualquer necessidade ao invés de 11 inquestionáveis (como foram a maioria das grandes equipes do século passado), porém engessados. Inclusive superando desfalques por lesões antes e durante as partidas, alguns recuperados e outros definitivamente desligados.

Em suma, tanto o termo hoje tão conhecido de todos de “Scaloneta” (criado por um programa de televisão de humor esportivo primeiro de forma pejorativa e depois apologética) quanto seu conteúdo não podia ser dar ao luxo de apresentar previamente um “projeto” para um “ciclo”, mas sim foi se constituindo após cada batalha e cada dificuldade sabendo aproveitar o melhor das forças técnicas e principalmente anímicas de seus condutores e comandados. Clichês a parte, foi como uma nova versão futebolística do “a revolução foi nos revolucionando” de Che Guevara ou “o caminho se faz caminhando” de Paulo Freire.

Argentina
Foto: Jorge Araujo/FotosPublicas

As últimas batalhas

Argentina 1×2 Arábia Saudita: De volta a um mundial em solo asiático reencontrando os traumas de 2002, a estréia em 2022 contra a Arábia Saudita começou com um primeiro tempo de massacre argentino em que o 1 a 0 parcial com gol de Messi de pênalti ficou barato. Os diversos gols anulados por impedimentos de Lautaro Martinez deixaram um mal presságio que Scaloni caiu na “trampa” tática do adversário Hervé Renard com um apoio extra do VAR. E pior presságio ainda que uma equipe fraca quando vai para o intervalo ainda viva se torna mais perigosa. Mas tudo recomeçou aleatoriamente no segundo tempo com dois gols instantâneos dos sauditas para delírio da torcida local fazendo a zebra andar à solta em forma de camelo. A perda de 36 partidas de invencibilidade da “Scaloneta” foi um duro golpe anímico que cobrou desmoronar toda a confiança acumulada no tal “ciclo” pré-mundial. Foi como cortar um sonho e sobre a equipe e sobre o país se caiu o peso da noite. E ainda por cima cobrou desmoronar a expectativa diante dos adversários de um grupo fácil que se tornou difícil. Rapidamente Scaloni e seus soldados secaram as feridas com a única convicção de que dali por diante tudo seria definição direta (tal qual mata-mata) sem margens para erros (distinto de França e Brasil que se deram ao luxo de na terceira partida escalar todos os reservas em derrotas para Tunísia e Camarões).

Argentina 2×0 México: O novo encontro contra os mexicanos fez um velho freguês se tornar uma nova batalha inesperada. Rapidamente Scaloni não hesitou em trocar meio time, sabendo que se morresse abraçado a suas fórmulas o destino não lhe teria clemência ao cobrá-lo eternamente. Bravamente (e brevemente) o ferrolho do treinador adversário Tata Martino fez esse país festivo se ilusionar com um possível ato histórico de promover uma eliminação precoce a uma Argentina que só cercava, mas não espetava. Até que na metade do segundo tempo o “zurdazo” inapelável de Messi no fundo das redes de “meme” Ochoa foi como encontrar água no deserto e devolver vida à equipe. Uma vitória completada em 2 a 0 pelo belo chute de fora da área do jovem volante Enzo Fernandez, quem rapidamente evoluiria muito a tomar conta da posição e até ser escolhido a revelação do torneio. No fim, a ilusão do México durou apenas alguns dias com a crença no “chiste” que poderia dar a volta por cima em uma rivalidade tão desparelha, conforme já tratei de seus elementos históricos em texto recente (Obs: O último ato é que o dramático se tornou burlesco com a declaração do boxeador mexicano-estadunidense Saul Canelo Alvarez que, alegando que Messi supostamente teria pisado na camisa mexicana no chão, o desafiou para uma briga!)

Argentina 2×0 Polônia: A terceira partida no grupo se repetiu com o mesmo placar sobre a Polônia, com gols de outros dois novos recém titulares: o volante Alexis Mac Allister e o atacante Julián Álvarez. Nem mesmo a perda de um pênalti de Messi ainda com o placar em branco assustou em uma partida que ainda envolvia risco de uma eliminação, mas foi dominada do início ao fim. Não sentindo o peso da camisa ao trocar provisoriamente a “albiceleste” por uma suplente dessa vez roxa (que em outras edições foi preta ou azul marinho). Sobre o adversário, apesar de um grande goleiro e da classificação obtida de forma contestada no desempate contra o México apenas no saldo de gols, ficou escancarada a pobreza tática de ter em Lewandoski um dos melhores atacantes do mundo, porém mais solitário que em um deserto incapaz de ser abastecido pelo menos com um “chuveirinho”.

Argentina 2×1 Austrália: Ao entrar no mata-mata o placar parcial de 2 a 0 a favor se repetiria com distintos desfechos. Primeiro nas oitavas contra a Austrália (inclusive repetindo um agônico encontro na repescagem de 93 decidida por apenas um gol de vantagem), os primeiros 3/4 da partida estiveram sob controle através dos gols de Messi e Julián Álvarez. Porém um chute despretensioso desviado entrou sem chances para Emiliano Martinez e recolocou os australianos no jogo com uma agonia absurda. Novamente Lautaro Martinez emergindo como candidato a vilão errando gols imperdoáveis nos contra-ataques. É então que no último lance emergiu o goleiro argentino confirmando a sua credencial de ser quem pega a bola do jogo “tapando un mano a mano” e no caso evitando o empate do adversário. Uma imagem insólita de “terra arrasada” com o goleiro caído no chão com a bola nas mãos e mais meio time também caído. O que serviu de um alerta extra que não se chega à glória por um caminho de rosas. Um lance daqueles que separa um goleiro predestinado a ser campeão de apenas um bom goleiro, assim como alimenta ótimas resenhas que grandes equipes quase campeãs esbarraram no último momento por não terem um grande goleiro. Assim como dia após dia as demais peças foram ficando azeitadas enquanto uma engrenagem em pleno funcionamento: com os laterais (mais ofensivos do que nunca) Molina e Acuña e principalmente os já comentados Fernandez e Mac Allister na meia e Alvarez no ataque. (Além claro do reerguimento do “motorcito” De Paul após um mal início físico e técnico no torneio) Quanto mais jovens mais cedo foram para a Europa, o que ajudou a criar a “casca” de grandes decisões, mas sem se desenraizar do compromisso de representar uma comunidade antes que a si mesmos. Em suma para conduzir essa máquina versátil a tantas peças que é a “Scaloneta” foi preciso a mente “laburante” de Scaloni sem ficar refém de nomes ou esquemas ao afrontar as mais versáteis situações (até mesmo dentro de uma mesma partida).

Argentina 2×2 Holanda: O reencontro com a “laranja mecânica” trazia lembranças positivas da semifinal de 2014 com a consagração do goleiro Sérgio “Chiqui” Romero nos pênaltis. Mas também alguns tabus como o de ter mais derrotas e como o de nunca ter vencido esse adversário no tempo normal. Já o reencontro de 2022 era também o reencontro com o treinador Van Gaal. Não somente fomos lembrados de seus atritos pessoais com craques sul-americanos por vários anos como principalmente a surpresa de ver uma equipe do “carrossel” (dentre as européias é a que mais se identificou com o “futebol-arte”) catimbar tanto em uma partida, sua prorrogação e até mesmo nos pênaltis. Mas como nos países baixos não há “potreros”, se viram forçados a guerrear em um terreno hostil demais a seus costumes. Seria tentador a muitos lança rótulos como “final antecipada” e “guerra de nervos” com uma partida insólita cheia de alternâncias. Em que os laterais argentinos foram “carrilleros” pisando na área mais do que nunca para arrumarem um gol e um pênalti cada. Porém a boa vantagem de 2 a 0 se perdeu no último minuto de largos acréscimos quando os holandeses encheram a área argentina com grandalhões, mas em um lapso de genialidade em uma cobrança de falta fizeram um gol com toque de bola encontrando um espaço impossível. Se o esperado seria um balde de água fria que esfriasse animicamente a “Scaloneta”, durante a prorrogação ela foi surpreendentemente voltando a ficar azeitada e ditar o ritmo da partida tendo as melhores chances. Uma confiança e poder de decisão que se confirmaram nos pênaltis ao abrir logo de cara 2 a 0 (com Martinez repetindo Romero com 2 “atajadas”) e não perder mais a vantagem até o 4 a 3. Uma imensa vitória coletiva e dentro dela indissociável a reação de Messi de provocar Van Gaal e os holandeses em geral com um um gesto inconfundível de colocar as mãos nos ouvidos em campo e depois na coletiva de imprensa uma encarada com um “Que mirás, bobo?”. Mais do que um momento maradoneano, estava mais do que nunca evidente a conversão e redenção maradoneanas em marcha. Faço minhas as palavras dos grandes cronistas Douglas Ceconello (“A gente pedia uma centelha, mas Lionel resolveu acender o maçarico.”) e de Menon a seguir:

“E começou a se cristalizar um novo Messi. Não mais o craque que vive em um mundo todo seu, um Olimpo particular. Apareceu um Messi humano, briguento, catimbeiro e mal-educado. Um cara disposto a mudar seus conceitos e seu estilo para dizer aos argentinos que está para o que der e vier.” 

Argentina 3×0 Croácia: Uma equipe que saiu dessa batalha contra a Holanda ainda mais “cascuda” encarnou o melhor espírito de Bilardo em 86 com suas “cábalas” (superstições) e não trocou mais a combinação de uniforme de camisa “albiceleste” com calções e meias brancas dali por diante. Depois de tanto sofrer mais do que em um parto o que de fato se pariu foi uma “Scaloneta” indomável. Pouco o que falar por tornar fácil uma partida que se apresentava com difícil pela modesta Croácia ter recém redobrado sua confiança ao eliminar o Brasil e se mostrar nos últimos dois mundiais a mais “cascuda” em prorrogação e pênalti. Mas um novo e agônico desempate como esse não foi preciso devido à Argentina já liquidá-la no primeiro tempo e apenas administrar no segundo sem sustos. Espantoso como volantes e meias tão jovens comandaram todos os ritmos do meio-campo, enquanto no ataque um Messi cada vez melhor contagiou um jovem Julian Alvarez também cada vez melhor. Alguns ainda céticos diriam que o caminho até a final teria sido “fácil” por não enfrentar nenhum campeão do mundo, mas assim desconsideram uma equipe que foi amadurecendo em todos os aspectos.

Argentina 3×3 França: Quis um capricho do destino que “cabala” mesmo foi da segunda à sétima partida o placar parcial de 2 a 0 se repetisse como um tango de disco riscado. Longe de mim arriscar uma crítica estética ao tango embora o clichê seja inevitável, pois algo de “deja vu” contra a Holanda se repetiu agora contra a França se abrindo caminhos aparentemente mais fáceis e mais cedo antes mesmo do intervalo. Aqui uma fundamental menção ao craque Di Maria, tão discreto quanto indispensável (e também mais um “laburante” da Scaloneta ao aceitar voltar pra marcar e aceitar não ser titular) ao cavar um pênalti e ao concluir um contra-ataque demolidor. O que expressou toda a superioridade técnica, física e anímica do “azarão” há tanto tempo na fila de 36 anos sem títulos mundiais contra a “favorita” atual campeã mundial. Somente aos 80 minutos de jogo a França acordou, ou melhor, sua equipe seguiu mediana (embora as substituições lhe deram imensa vantagem física) mas quem acordou mesmo foi seu craque Mbappé com uma “ráfaga” de dois gols seguidos: 2 a 2 parcial. Tal qual contra a Holanda, o mais esperado a qualquer equipe do mundo seria desmoronar, mas o que se viu foi novamente se reerguer em plena prorrogação. Para quem tanto se acostumou a sofrer o gol de Messi na prorrogação não poderia deixar de ser sofrido com um possível impedimento (mas felizmente a máquina infame do VAR não se chocou com a máquina sublime da “Scaloneta”), uma série de rebotes e um chute que apenas cruzou a linha embora não estufou as redes. 3 a 2 parcial. Mas esse mesmo destino quis aprontar em outra brecha, quando um chute francês resvalou na mão do lateral Montiel dentro da área, para testar se a “Scaloneta” aguentaria ainda uma última prova de sofrimento: 3 a 3 e (quase) vamos aos pênaltis. Se já não bastasse estar no fio da navalha “a matar o morir”, esteve à beira do abismo nos últimos segundos quando milagre de “Dibu” Martinez em um “mano a mano” com um francês com uma abertura de pernas garantiu uma sobrevida. Era como se sentir como um Sísifo repetindo um esforço inglório sem nunca encontrar trégua nem recompensa. Uma cobrança racionalmente injusta para muitos que se cobrasse de um elenco tão jovem a responsabilidade sobre a lembrança de Maradona em 86 e com isso os 36 anos que os separam. Tal qual os melhores do mundo tremeriam, porém não esse grupo de jogadores-torcedores que vivem as alegrias e tristezas de seu povo. Mas novamente nessa instância se mostraram “cascudos” na última vez que exigidos em que as cobranças desperdiçadas pelos adversários eram convertidas pelos argentinos. Até que a última batida ficou com o jovem Montiel que afastou qualquer risco de ser o vilão pelos próximos 36 anos.

Argentina
Foto: Jorge Araujo/FotosPublicas

Legados

“No confronto entre o maior jogador dos últimos 15 anos e o maior dos próximos 15, deu Messi, que conseguiu algo mais improvável que uma Copa – fez o mundo inteiro, incluindo o Brasil, torcer para Argentina. E apesar de tudo que dissemos nos últimos 4 anos sobre o Qatar, Fifa e seus interesses suspeitos, a Copa para se esquecer se tornou uma Copa inesquecível.”

“Fue como si, en el centro de la galaxia del fútbol, las principales estadísticas, los grandes héroes y las emociones más sentidas se hayan puesto de acuerdo para viajar al 18 de diciembre de 2022 y congregarse en el estadio Lusail de Doha con un objetivo inédito: inventar un súper partido, el más fascinante, uno en el que la realidad se confunda con el mito y canonice al último rey sin corona. (…) El fútbol nos fascina porque no sabemos cuando es realidad y cuándo es ficción.” 

Uma breve menção sem tentar me alongar que felizmente diversos blogueiros que acompanho diariamente misturaram sim futebol com política como se deve para denunciar o “suco” de monarquia catari que foi esse mundial com autoritarismo, exclusão e privilégio (tudo que não podemos mais suportar por aqui). Sem dúvida o desfecho acima é tentador de cair em metáforas fáceis, mas não há “guionista” (roteirista), pois isso aqui não é ficção. Mas sim o próprio Jogo em seu estado mais indomável. Afinal certamente muitos argentinos desconfiariam que algo de “chiste” acontecia se depois de tanto sofrer contra a Austrália e Holanda justamente contra a França tudo estivesse tão fácil. Se o “roteiro” na vida real da sociedade e política argentina é de angústias e sofrimentos, obviamente que no futebol não seria diferente. Então foi preciso voltarem a sofrer para se agigantarem ainda mais para mostrar que a glória eterna não lhes escaparia. Pois lembram que em 86 também se andou no fio da navalha entre a glória e o desastre (vide os placares de 2 a 0 contra ingleses e alemães que “se achicaran”) até que veio finalmente a glória em definitivo.

A síntese dessa fusão tardia entre Maradona e Messi confirma a tese que sempre defendi, mesmo contra a corrente, e agora com toda a midiatização e individualização da Messimania creio ser preciso reconhecer seu amadurecimento: que buscar comparar se quem foi melhor foi Maradona (e mais alguns outros) ou Messi é mais uma “masturbação mental” e algo para “encher linguiça” de mesas-redondas. Ora, sempre é mais fácil dispensar analisar mediações ou contextualizações se há poucos números que façam isso por nós. Afinal eles não tem que competir, mas se complementar como uma redenção e até podemos dizer como uma reencarnação. Ora, acrescento que tanta obsessão de comparar craques, gênios, ídolos, mitos, etc no fim das contas trata menos deles em si e mais de nós e de nossa época pela imensa carência de ídolos recentes e de nossa ansiedade de precisar a tudo metrificar. Sobre esse choque de gerações, mostra que a brutal diferença de haver internet onipresente em 2022 e não em 86 foi prejudicial ao tentar nivelar contextos incomparáveis e sobretudo desprezar a maior lição do Jogo: que nas quartas-de-final em ambos anos o Brasil perdeu por detalhes do acaso enquanto a Argentina ganhou da mesma forma. Mas também lembrar que, seja no patamar que esteja, a grandeza de Messi por si só como um craque “raiz” em um futebol que quase nada tem de “raiz” já é por si só uma baita vitória pelas suas comemorações e declarações sóbrias dentro de campo e vida pessoal ainda mais sóbria fora dele. Eu particularmente gosto muito mais da metáfora do futebol como “guerra”, mas entendo o apelo de tantos que o preferem como “arte” e agora se vêem não apenas contemplados, mas até redimidos. Embora eu ainda prefira ver essa tal “arte” mais coletiva do que individual, como tentei demonstrar na formação e funcionamento da “Scaloneta”. Faço minhas as palavras (mais do que nunca necessárias) da cronista (mais do que nunca necessária) Milly Lacombe. A ela acrescento, parafraseando Nelson Rodrigues, que no futebol a matemática é uma piada de necrotério!

“Não há como estabelecer ordem de grandeza entre os artistas. Cada um a seu modo, eles deram sentido às nossas vidas, nos emocionaram, transcenderam suas pátrias, elevaram a humanidade a um lugar de mais significado, alargaram o campo do possível. Tinha que bastar para que não caíssemos na tentação de estabelecer colocações. Deuses não deveriam ser colocados em rankings.”

Um fio condutor que pode passar despercebido para muitos é que ao longo do mata-mata foi se polarizando dentro da dimensão futebolística uma frente ampla terceiro-mundista enquanto um “puño apretado” contra o imperialismo cultural. Ou seja, do lado de lá houve muito mais que os memes que “explotaron” para todos verem da declaração de Mbappé meses atrás que o futebol sul-americano ficou ultrapassado por conta do “ciclo” pré-mundial haver mais partidas entre europeus pela Nations League. Mais do que isso, algumas evidências saltam aos olhos que bastou os europeus se fecharem em mais partidas de preparação contra si mesmos que justamente ao enfrentar o restante do mundo quando era para valer somaram inúmeras derrotas. Mais do que isso, era exibido um colonialismo esportivo sem disfarces ora menosprezando a capacidade da “albiceleste” antes de alguma vitória e ora deslegitimando o mérito depois
de alguma vitória. O que partia tanto holandeses e franceses enquanto adversários diretos dos argentinos como principalmente dos espanhóis (principalmente a mídia madrilenha, portanto, anti-Messi) quem evidentemente são marcados pelo trauma latente de ver Messi crescer em Barcelona, porém ter optado por não se naturalizar espanhol. Assim como o trauma recente deles diante do goleiro “Dibu” Martinez com suas frequentes provocações subvertendo o manual do jogador “global” bem comportado e após o título acumulando cada vez mais desafetos europeus com insultos abertos, principalmente de franceses enquanto jogadores, ex-jogadores e até mesmo a federação.

Em suma, evidente que o incômodo era imenso diante de 4 títulos mundiais seguidos europeus nas últimas Copas e agora privados de comemorar o 5o seguido, sendo que muito seletiva e cinicamente eles desconsideram que essa recente hegemonia foi obtida justamente quando suas seleções mais estiveram miscigenadas por imigrantes. Sem mais espaço para problematizar (uma tarefa bem melhor cumprida diariamente pelo cronista Vitor Guedes) essa obsessão com “ciclo” e “processo” no fora de campo coincidir com a “posse de bola” dentro de campo, sendo essas algumas das filosofias “futboleras” mais derrotadas por diversas seleções (sejam as europeias e seja o Brasil de Tite tão europeizado).

Já do lado de cá a Argentina foi ganhando apoios de diversos latino-americanos (inclusive cada vez mais brasileiros, principalmente a partir das semifinais, seja em adesões individuais ou dos veículos de comunicação) e até mesmo das surpreendentes multidões em Bangladesh (e possivelmente de outros povos de outros rincões de mundo obcecados em ver os europeus derrotados). A começar pela constatação óbvia que a própria taça da Copa do Mundo tem sua redenção ao voltar para o mítico Rio de la Plata, berço do seu primeiro e último campeão. (Obs: embora apenas mencionei mas não analisei a premissa de jogadores-torcedores na “Scaloneta”, também há uma constatação bem menos óbvia após a nauseante cerimônia de entrega da taça com tantos privilegiados reunidos. Pela qual soou por todo estádio uma redenção das arquibancadas através da conhecida música “cumbia de los trapos”) Assim como uma redenção do próprio Jogo, pois conforme a máxima de um filósofo-jogador, apenas pelo futebol um país pequeno e pobre pode se tornar gigante e poderoso ao desatar a força de sua potência plebéia. Em suma, um retorno da taça a um dos povos que sabem da força indomável de uma frase com seu modo de vida: “se juega como se vive”.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Maradona-Messi: 1986-2022. Ludopédio, São Paulo, v. 162, n. 29, 2022.
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