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O Front National, Marine Le Pen e o futebol

O resultado do primeiro turno das eleições presidenciais francesas comprova o que já era notado há algum tempo, o real crescimento do partido de extrema direita Front National sob o comando de Marine Le Pen.

Apesar da tentativa de mudança de discurso que busca demonstrar outro tipo de orientação ideológica por parte do FN desde quando Marine Le Pen se torna presidente, a prática não esconde suas aspirações que pode ser caracterizada como uma extrema direita e com anseios autoritários, como pode ser visto em seu plano de campanha.

Sabe-se que, políticos com aspirações autoritárias, independente da vertente ideológica, utilizam o esporte como aporte político, especialmente o futebol, por ser este, o esporte mais popular do mundo. Assim foi na Alemanha de Hitler, URSS de Stálin, Itália de Mussolini ou nas ditaduras latino-americanas, como por exemplo a utilização da seleção brasileira de futebol por parte dos ditadores e especialmente o caso argentino da Copa de 1978.

A família Le Pen historicamente não é ligada ao futebol, não dão importância a ele, apenas fazendo uso dele para demandas bem específicas, como veremos a seguir, mas, chama a atenção que, o ponto 117 do projeto de campanha para as atuais eleições trata especificamente do futebol. Uma pergunta torna-se pertinente: o que quer os Le Pen com o futebol?

Marine Le Pen. Foto: Blandine Le Cain (CC).
Marine Le Pen. Foto: Blandine Le Cain (CC).

Antes de falarmos especificamente sobre a proposta n. 117 do referido plano de campanha, tracemos um breve panorama sobre a relação dos Le Pen com o futebol, que envolve polêmicas com jogadores como Thuran, Zidane, Ibrahimovic e Benzema.

Primeiramente, vejamos o que Jean-Marie Le Pen pensa sobre o futebol. Por ocasião do título dos Bleus em 1998 como aponta Airton de Farias em seu livro Uma História das Copas do Mundo: futebol e sociedade (2014, p. 18) Jean-Marie Le Pen não reconhecia essa seleção por não se tratar, segundo ele, de uma seleção verdadeiramente francesa, visto que 13 dos 22 jogadores tinham origem estrangeira, o autor ainda mostra que o então presidente do FN (2014, p. 202) defendia uma seleção “nativa”. Tais argumentos encontram sentido dentro das críticas ao então presidente Jacques Chirác, visto pelo FN como criador de uma política de integração que prejudicava a cultura e povo francês.

Por ocasião da Copa do Mundo de 2006 Jean-Marie Le Pen, que até então era candidato à presidência da República na França pelo Front National, surge com um discurso de “A França para os franceses” neste caso, uma França sem imigrantes, sem árabes, orientais e negros, logo uma seleção francesa de futebol que refletisse isso. Em um discurso disse que a seleção francesa tinha muitos negros. Jean-Marie Le Pen defendia, na ocasião, uma França nascida da aliança entre Clóvis, rei dos Francos, e a Igreja Católica Apostólica Romana. Para ele, ser francês é descender desta aliança, portanto, Jean-Marie Le Pen defendia que os “novos franceses”, principalmente imigrantes da França além-mar, ou seja, das ex-colônias não deveriam ter acesso à cidadania francesa e automaticamente a seleção francesa.

Como não poderia ser diferente, as afirmações do então líder do FN repercutiram negativamente, tanto na sociedade francesa de um modo geral quanto no mundo esportivo. Lilian Thuran, um dos líderes daquela seleção e um dos principais nomes do título francês em 1998, lembrando que fizera os dois gols na vitória de 2 x 1 contra a Croácia na semifinal, respondeu a Jean-Marie Le Pen dizendo: “Não sou negro, sou francês”, e prosseguiu “ele quer ser presidente e não conhece a história do país, isso é grave e surpreendente.” As afirmações do jogador geraram um debate entre os dois, o político respondeu que “poucos jogadores franceses cantam a Marselhesa”, quando é executada, antes dos jogos internacionais. “Essa é uma afirmação um pouco estúpida… não é porque o jogador canta o hino ou não que sente mais ou menos francês”, observou Thuram em entrevista coletiva e deu fim ao assunto dizendo “se alguém vir o Le Pen por aí, diga que se ele tem algum problema em ser francês, nós não temos”.

Outro caso emblemático foram as afirmações que Marion Le Pen, deputada parlamentar, sobrinha de Marine e sua herdeira política postou em sua conta no Twitter com os seguintes posts “Nascido e formado em nosso país, #Benzema tornou-se multi-milionário graças à França em que ele cospe hoje. Indigno. (01/06/2016 – 07:15) postando logo depois “#Benzema: ‘A Argélia é o meu país França é apenas para o lado do esporte.’ Deixá-lo jogar no ‘país’ se ele não está feliz!” (01/06/2016 – 07:19), em resposta a afirmações de Karim Benzema dizendo que seu país de coração era a Argélia e que a França era seu país apenas por questões profissionais. O caso de Benzema é mais complexo que o caso anterior, em primeiro lugar pela figura de Karim Benzema, que na já Copa do Mundo de 2014 no Brasil se recusou a cantar o hino francês, além de cuspir no chão enquanto ele era entoado, ao ser indagado sobre defendeu que Marselhesa é uma canção sanguinária e racista, em outras oportunidades fora acusado de jihadista, algo que jamais negou.

pORTO ALEGRE, RS, BRASIL, 15.06.14: Jogo da Copa do Mundo 2014 entre França e Honduras, em Porto Alegre. Foto: Camila Domingues/Palácio Piratini
Benzema na partida entre França e Honduras, em Porto Alegre, válida pela Copa do Mundo de 2014. Foto: Camila Domingues/Palácio Piratini.

O caso é mais complexo porque Marion não é Jean-Marie, ela é mais próxima de Marine, que busca uma reordenação do partido no que diz respeito a sua forma, mesmo apresentando aspectos comuns em sua essência, como aponta estudiosos como Jean-Yves Camus (1996; 1997; 2006), Alexandre Dézé (2016) e Nonna Mayer (2013), nota-se que sua crítica no caso Benzema se dá por conta de sua postura enquanto a França, não se trata de um purismo étnico como o de Jean-Marie, visto que nenhum outro jogador de origem estrangeira é criticado, mas um que tem uma postura que ofende a “grandeza da França”, algo tão presente nos dois planos de campanha de Marine Le Pen[1].

Dominique Vidal (2011) destaca que o eixo central da xenofobia da extrema direita francesa usada como capital político do FN tem se deslocado da raça para a religião, ou seja, o foco passa a ser o praticante da religião islâmica o que chama de “islamofobia”, o que fica claro no projeto político e discursos de Marine Le Pen. Karim Benzema é mulçumano, até aí sem problemas, jogadores como Pogba, Kanté, Sissoko e Sagna também são, mas o problema consiste, como vimos em seu post no Twitter, um muçulmano que desdenha da França, não se sente francês e não se importa com isso, caso semelhante ocorreu com Franck Ribery, que “desdenhou” da seleção francesa ao pedir dispensa por questões físicas e no outro dia estava se divertindo em um iate particular. Na prática, Benzema é a personificação do imigrante que a nova conjuntura do FN enxerga como uma ameaça, ele é o tipo de imigrante que deve ser expurgado, segundo a reorientação do partido, não que isso não possa mudar no futuro, criando novos “modelos”.

Marine Le Pen pouco fala de futebol, pouco se expressa a respeito, entretanto, se envolveu em uma polêmica com o sueco Zlatan Ibrahimovic em 2013, por ocasião da derrota do seu então time, o Paris Saint-Germain para o Bordeaux o sueco proferiu a seguinte frase “em 15 anos nunca tinha assistido a uma arbitragem tão má, este país de m… não merece o PSG, somos demasiado bons para este país”, logo depois Marine Le Pen sugeriu que Ibrahimovic deixasse o país, alegando que sua declaração fora insultuosa para com o povo francês, povo aliás, que é um dos pilares de sua atual campanha. Logo depois o jogador pediu desculpas e disse que estava com cabeça quente após o jogo, o que não surtiu efeito nenhum na postura da presidente do Front National que defendeu que o futebol não deve ser algo apenas para visar o lucro, em clara alusão aos donos do PSG.

É curioso que no projeto presidencial de Marine Le Pen, no ponto 117 podemos ler “Apoiar clubes pequenos para permitir a presença de um máximo de jogadores em clubes profissionais franceses e para lutar contra a financeirização do esporte profissional. O reforço das ações contra a violência no desporto amador e impor estrito respeito da laicidade e neutralidade em todos os clubes desportivos.” Pois bem, não fala apenas do futebol, visto que no ponto anterior fala de esporte de um modo geral, mas é inegável se direciona ao futebol, nunca é demais lembrar que os dois principais times franceses, considerando a tabela da Ligue 1– 2016/2017, hoje têm donos não franceses e, ainda por cima do mundo árabe.

Frente a isso, podemos perguntar, o que pretende Marine com o futebol? Ou, mudou algo no que diz respeito a sua visão sobre o esporte? Para buscar responder essas indagações é necessário comparar os planos de governo das duas campanhas, do plano presidencial para as eleições de 2012 “Pour que vive la France”, para o plano atual “Au nom du peuple”[2]. Existe uma vasta ampliação de foco, se antes o centro de suas críticas era a mundialização e o que decorre dela, o plano atual é mais polissêmico, não descartando a mundialização e questões como a imigração, mas faz com que grupos específicos sejam tratados diretamente, como jovens, empresários franceses, desempregados, mulheres, crianças dentre outros, fazendo uso de uma noção genérica de povo francês para unir esses grupos, desta forma, uma melhor atenção para o futebol é fundamental, por isso o uma atenção especial para ele em seu plano de campanha.

Portanto, não é que passaram a amar o futebol, apenas notaram nele um importante mecanismo de coesão, visto que este faz parte da vivência do povo francês. Com suas posturas frente ao futebol, podemos ver as transformações que o partido passa, de uma extrema direita tradicional com Jean-Marie Le Pen para algo que podemos chamar “extrema direita republicana” com Marine Le Pen, que mesmo trazendo em seu DNA ideais sectários, xenófobos e extremistas, buscam mexer na forma como essa mensagem é passada para se adequar aos ideais democráticos e atingir grupos distintos. Sendo assim, dificilmente veremos declarações por parte de Marine ou Marion semelhantes as de Jean-Marie, em primeiro lugar porque o partido mudou sua forma de se apresentar, mas também porque o projeto de poder do FN entende que deve haver uma diversificação maior em sua plataforma, para que possam atingir um maior número de pessoas, o que fica claro em seu atual plano de campanha, com isso, não é de se espantar que o futebol ganhou um lugarzinho especial em seu projeto.

[1] Pour que vive la France – Plano de campanha de 2012.

[2] Au nom du peuple – Plano de campanha de 2017.

Referências

CAMUS, J-Y. Extrémismes en France: Faut-il en avoir peur? Toulouse: Milan, 2006.

____________. L’extrême droite aujourd’hui. Toulouse: Milan, 1997.

____________. Le Front National: Histoire et analyses. Paris, O. laurens, 1996.

DÉZÉ, Alexandre. Comprendre le Front National. Paris: Breau, 2016.

____________. Le Front National: à la conquête du pouvir. Paris, Armand Colin, 2012.

____________. Le « nouveau » Front national en question, Paris, Fondation Jean Jaurès, 2015

ECUVILLON, Pierre. Le phenomene Le Pen: Analyse relationnale, historique et esthetique d’une singularite politique.  2015. 374f. Tese (Sociologie), Universite Paul Valery, Montpellier III, 2015. Montpellier, France.

FARIAS, Airton de. Uma História das Copas do Mundo: futebol e sociedade (Volume 02). Fortaleza-CE: Armazém Cultural, 2014.

PEN, Marine Le. Au nom du Peuple: 144 engagements présidentials.

_____________. Pour que vive la France. Front National: Nanterre, 2012.

MAYER, Nonna. Ces Français qui votent FN. Paris: Flamarion, 1999.

______________.  From Jean-Marie to Marine Le Pen: Electoral Change on the Far Right. In: Parliamentary Affairs, 2013. 66, 160–178.

VIDAL, Dominique. A perseguição ao Islã e o neofascismo. Le Monde Diplomatique Brasil. 03 de janeiro de 2011. <http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=843> (Acesso em 07 de setembro de 2014).

 

Sítios pesquisados

http://www.lemonde.fr/

http://www.lefigaro.fr/

http://www.lavoixdunord.fr/

http://www.france24.com/en/

http://www.estrepublicain.fr/

http://www.leparisien.fr

http://www.liberation.fr/

http://www.sudouest.fr/

http://www.marinelepen2012.fr/

https://www.marine2017.fr/

http://www.ihr.org/main/journal.shtml

http://www.rtp.pt/noticias

https://www.lequipe.fr/

https://esporte.uol.com.br/

http://espn.uol.com.br/

http://globoesporte.globo.com/

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Makchwell Coimbra Narcizo

Doutor em História pela UFU, Graduado e Mestre em História pela UFG. Atualmente professor no IF Goiano - Campus Trindade. Desenvolve Estágio Pós-Doutoral na PUC Goiás. Membro do GEPAF (Grupo de Estudos e Pesquisa Aplicados ao Futebol - UFG). Coordenador do GT Direitas, História e Memória ANPUH-GO. Autor dos livros: A negação da Shoah e a História (2019); A extrema direita francesa em reconstrução - Marine Le Pen e a desdemonização do Front National [2011-2017] (2020) dentre outros... isso nas horas vagas, já que na maior parte do tempo está ocupado com o futebol... assistindo, falando, cornetando, pensando, refletindo, jogando (sic), se encantando e se decepcionando...

Como citar

NARCIZO, Makchwell Coimbra. O Front National, Marine Le Pen e o futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 95, n. 15, 2017.
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