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O problema do sofrimento imerecido ou por que Marinho não culpou Deus na hora da derrota?

Caio Pedron 14 de maio de 2021

Um olhar perdido no espaço, marejadas as pálpebras diante da inexorável derrota, o barulho ensurdecedor do som – já que não havia nenhuma torcida – cada palavra compreendida feria o coração contrito. Arrependimento, dor e sofrimento, esse é o efeito de toda derrota em uma final de campeonato decidida no finalzinho como foi a da Libertadores de 2020, a bizarrice de vivenciarmos a grande decisão em um Maracanã quase[1] vazio e o total descalabro do número de mortes causados pela pandemia de Covid-19, não impediu que todos os campeonatos de futebol nacionais e internacionais fossem praticados e que, para o que nos interessa nesse ensaio, Marinho fosse chamado pelos repórteres de campo a despejar suas palavras finais, disse ele diante do fracasso:

Eu sonhei em estar aqui, sonhei em dar o título para a nação santista, sabe… Eu me preparei muito, saí de rede social para me concentrar. Hoje eu não consegui ser o Marinho, sabe, mas eu entendo uma coisa: os planos de Deus são totalmente diferentes do meu e eu fico triste porque eu não consegui ajudar tanto os meus companheiros […] Eu fico emocionado porque é o título que eu sonhei, eu sonhei pela família que a gente criou, mas a gente sabe que alguém ia ter que ganhar né…(MARINHO, 2021, transcrição nossa).

Esse cortejo de lamentações se repete a cada derrota importante de qualquer clube da série A até a D do futebol brasileiro, já faz algum tempo que os jogadores declaram suas vitórias a Deus e também citam sua vontade inapelável na derrota, o Deus Absconditus do protestante como apresentado por Max Weber em sua Ética Protestante continua sendo a referência para os “ascetas dos gramados”. Só para salientar como essa oblação é quase que fundamental na maioria dos discursos dos jogadores de todos os clubes do Brasil, segue agora o outro lado, o vitorioso, nas palavras do “pitbull” palmeirense:

Eu nunca fiz questão de esconder, mas eu me tornei palmeirense, eu vou morrer palmeirense e eu glorifico a Deus por isso! […] Antes do jogo eu estava procurando o que falar com os nossos atletas, enfim com todos né, e Deus me deu uma palavra, Deus me levou lá em Ezequiel, palavra na Bíblia, Ezequiel foi levado através de sonho ao vale dos ossos secos e Deus falou assim: profetisa a vida! profetisa a vida! Então tudo que era morto em dado momento começou a virar vida e nós, em dado momento, fomos dados como mortos também… (CARVALHO, 2021, transcrição nossa).

O famoso trecho de Ezequiel 37 proferido no discurso do dono da braçadeira de capitão – compartilhada com Gustavo Gomes – deixa a imagem ainda mais profunda de que as afinidades eletivas entre religião e futebol superam qualquer tipo de mensagem laica que o esporte como circunscrição autorreferente poderia determinar. Se é possível encontrar as reverberações do sagrado em um fenômeno extremamente secular como futebol, então constitui-se como plausível uma abordagem weberiana do esporte que tenha como objeto essa relação entre as imagens de mundo construídas pelas religiões de salvação individual e sua enunciação como forma de explicar o insucesso em uma empreitada tão fadada ao imponderável como é a prática futebolística.

Se Weber autorizaria ou não essa abordagem – um tanto quanto heterodoxa de sua problemática – isso pouco me importa, o que quero salientar é a possibilidade de se utilizar o aparato weberiano da crítica a modernidade desencantada para pensarmos os problema do esporte e, em especial, do futebol que é nosso objetivo maior neste pequeno ensaio. Dito isto, quero postular a seguinte proposição: é possível compreender o discurso de Marinho, Felipe Melo e de todo atleta que atribui sua vitória e derrota a vontade divina, ao conceito de teodiceia como proposto na sociologia da religião weberiana.

A teodiceia surge como uma forma de explicação racional da bem aventurança e do sofrimento no mundo, sendo que desde muito cedo foi necessário para as religiões de salvação tratar do problema do sofrimento imerecido, primeiro, de forma não sublimada, com a atribuição a um espírito, demônio ou divindade e, depois, de forma mais complexa, através do mecanismo da culpa projetada por um pecado (WEBER, 2016, p. 30).

O homem sempre quis salvar-se da dor, buscar a alegria, e sempre teve de lidar com o adoecimento e a morte. Cada uma das religiões mundiais – Cristianismo, Confucionismo, Hinduísmo, Budismo e Muçulmanismo – criaram uma explicação racional da distribuição de felicidade e sofrimento no mundo, são diferentes os graus de racionalização alcançados por cada uma dessas formas de explicação, mas o que nos interessa aqui é a interpretação criada pelo protestantismo ascético, pois é dela que bebem os jogadores do futebol brasileiro para legitimarem-se em suas vitórias e absolverem-se nas derrotas. Em um pequeno excerto no final da famosa Consideração Intermediária, Weber apresenta as Três Formas racionais de Teodiceia, o dualismo do zoroastrismo; a ascensão individual e interna ao nirvana, típica da religiosidade Hindu e, por último, o decreto predestinacionista do protestante ascético, diz nos Weber:

A reconhecida impossibilidade de medir os desígnios divinos com critérios humanos implicava renunciar, com desapaixonada clareza, à capacidade de acesso do entendimento humano ao sentido do mundo, renúncia essa que punha fim a toda problemática desse gênero.  Com tamanho grau de coerência lógica, não se conseguiu sustentar duradouramente essa doutrina fora do círculo de virtuoses de alto nível. E isso precisamente porque tal renúncia – em contraste com a crença no poder irracional da “fatalidade” – exige a aceitação da ideia de determinação pela Providência, portanto racional de certo modo, daqueles que estão condenados não só à perdição, mas também ao mal; e ainda por cima exige o “castigo”, ou seja, a aplicação de um categoria ética (WEBER, 2016, p.406).

No problema da teodiceia há um vício de origem que Weber apresenta da seguinte maneira: ou a divindade não é onipotente, tendo de conviver com diferentes outras entidades, espíritos e demônios prontos a exercerem o seu poder de destruição na vida dos fiéis; ou ela não é boa, no sentido de que permite a dor e o sofrimento. O protestantismo responde racionalmente a essa contradição afirmando a vontade inacessível da divindade; já o dualismo prefere um demiurgo, que causa o mal em oposição ao bom Deus.

Claro que nas expressões de Marinho e de outros jogadores, não veremos a clareza que só é possível perceber na abstração conceitual do tipo ideal weberiano, mas é perceptível o conflito interno entre “os planos de Deus” e os seus próprios planos. Eis aí o paradoxo de Marinho: culpa Deus pelo insucesso e assume sua própria não-eleição – a dureza do desígnio divino ausente de bondade – ou foge da severa teodiceia da predestinação para um dualismo popular, no qual não foi a vontade de Deus mais a maldade do mundo que lhe condenou ao insucesso? Qualquer solução exige o sacrifício de uma das duas caraterísticas atribuídas ao divino.

Marinho
Marinho disputa a bola na final da Libertadores contra o Palmeiras. Foto: Cesar Greco/Palmeiras.

Por fim, a título de composição, Felipe Melo aparece como o bem aventurado, o agraciado pela vontade divina, a teodiceia da felicidade é a contraposição natural do sofrimento e se expressa naquela profecia do palmeirense, pois para ele é mais fácil coroar a predestinação como forma de legitimação de sua felicidade no mundo, segundo Weber:

Quem é feliz raramente se contenta com o simples fato de ter felicidade. Além de possuí-la, sente necessidade de ter direito a ela. Quer convencer-se de que a “merece” e principalmente: que a merece em comparação com os demais. Daí querer também poder acreditar que quem é menos feliz que ele, quem não tem uma felicidade comparável à dele, também está, tanto quanto ele, recebendo em troca a parte que lhe cabe. A felicidade quer ser “legítima” (WEBER, 2016, p.25).

Essa passagem poderia muito bem ser utilizada para explicar a malfadada meritocracia tão cara a todo religioso que pretenda sustentar as ordens do mundo, mas ela não cabe tão bem no discurso dos atletas, principalmente porque eles sabem que suas vitórias são sempre provisórias e a conquista de um título provavelmente será seguida da derrotas futuras. Quase que uma ética da vizinhança os sustenta, aquela que por princípio significa: o seu sofrimento de hoje pode ser o meu de amanhã.

De todo modo, fica patentemente expressa a relação entre a teodiceia religiosa e o destino no esporte moderno,  reafirmo aqui que mesmo que “esferas” separadas, esporte e religião se mantêm relacionadas: seja nas visões de mundo que constroem os trilhos pelos quais transitam os interesses materiais, como no caso da teodiceia como forma da legitimação da vitória e expiação da derrota; seja como saída de incêndio para um mundo cada vez mais dominado por uma racionalidade instrumental, cujas mãos frias condenar-nos-iam ao flagelo de uma vida repetitiva e irracional em sua finalidade última.

Notas

[1] Cinco mil pessoas foram convidadas pela CONMEBOL para partida, dentre elas estava o prefeito de São Paulo Bruno Covas, ver: Final da Libertadores tem aglomeração e torcedores sem máscara no Maracanã; veja fotos. GE: Globo.com. 30/01/2021. Acesso em 03/05/2021.

 

Referências

“EU não nasci palmeirense, mas vou morrer palmeirense” | Felipe Melo se emociona após título. Publicado pelo canal ESPN. Acesso em 03/05/2021.

Final da Libertadores tem aglomeração e torcedores sem máscara no Maracanã; veja fotos. GE: Globo.com. 30/01/2021. Acesso em 03/05/2021.

MARINHO chora após santos perder final da libertadores para o palmeiras. Publicado pelo canal ESPN. Acesso em 03/05/2021.

WEBER, Max. Ética Econômica das Religiões Mundiais: Ensaios comparados de sociologia da religião. Vozes, 2016.

WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Caio Pedron

Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unicamp. Palmeirense de coração e apaixonado pelo futebol.

Como citar

PEDRON, Caio. O problema do sofrimento imerecido ou por que Marinho não culpou Deus na hora da derrota?. Ludopédio, São Paulo, v. 143, n. 23, 2021.
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