O problema do sofrimento imerecido ou por que Marinho não culpou Deus na hora da derrota?
Um olhar perdido no espaço, marejadas as pálpebras diante da inexorável derrota, o barulho ensurdecedor do som – já que não havia nenhuma torcida – cada palavra compreendida feria o coração contrito. Arrependimento, dor e sofrimento, esse é o efeito de toda derrota em uma final de campeonato decidida no finalzinho como foi a da Libertadores de 2020, a bizarrice de vivenciarmos a grande decisão em um Maracanã quase[1] vazio e o total descalabro do número de mortes causados pela pandemia de Covid-19, não impediu que todos os campeonatos de futebol nacionais e internacionais fossem praticados e que, para o que nos interessa nesse ensaio, Marinho fosse chamado pelos repórteres de campo a despejar suas palavras finais, disse ele diante do fracasso:
Eu sonhei em estar aqui, sonhei em dar o título para a nação santista, sabe… Eu me preparei muito, saí de rede social para me concentrar. Hoje eu não consegui ser o Marinho, sabe, mas eu entendo uma coisa: os planos de Deus são totalmente diferentes do meu e eu fico triste porque eu não consegui ajudar tanto os meus companheiros […] Eu fico emocionado porque é o título que eu sonhei, eu sonhei pela família que a gente criou, mas a gente sabe que alguém ia ter que ganhar né…(MARINHO, 2021, transcrição nossa).
Esse cortejo de lamentações se repete a cada derrota importante de qualquer clube da série A até a D do futebol brasileiro, já faz algum tempo que os jogadores declaram suas vitórias a Deus e também citam sua vontade inapelável na derrota, o Deus Absconditus do protestante como apresentado por Max Weber em sua Ética Protestante continua sendo a referência para os “ascetas dos gramados”. Só para salientar como essa oblação é quase que fundamental na maioria dos discursos dos jogadores de todos os clubes do Brasil, segue agora o outro lado, o vitorioso, nas palavras do “pitbull” palmeirense:
Eu nunca fiz questão de esconder, mas eu me tornei palmeirense, eu vou morrer palmeirense e eu glorifico a Deus por isso! […] Antes do jogo eu estava procurando o que falar com os nossos atletas, enfim com todos né, e Deus me deu uma palavra, Deus me levou lá em Ezequiel, palavra na Bíblia, Ezequiel foi levado através de sonho ao vale dos ossos secos e Deus falou assim: profetisa a vida! profetisa a vida! Então tudo que era morto em dado momento começou a virar vida e nós, em dado momento, fomos dados como mortos também… (CARVALHO, 2021, transcrição nossa).
O famoso trecho de Ezequiel 37 proferido no discurso do dono da braçadeira de capitão – compartilhada com Gustavo Gomes – deixa a imagem ainda mais profunda de que as afinidades eletivas entre religião e futebol superam qualquer tipo de mensagem laica que o esporte como circunscrição autorreferente poderia determinar. Se é possível encontrar as reverberações do sagrado em um fenômeno extremamente secular como futebol, então constitui-se como plausível uma abordagem weberiana do esporte que tenha como objeto essa relação entre as imagens de mundo construídas pelas religiões de salvação individual e sua enunciação como forma de explicar o insucesso em uma empreitada tão fadada ao imponderável como é a prática futebolística.
Se Weber autorizaria ou não essa abordagem – um tanto quanto heterodoxa de sua problemática – isso pouco me importa, o que quero salientar é a possibilidade de se utilizar o aparato weberiano da crítica a modernidade desencantada para pensarmos os problema do esporte e, em especial, do futebol que é nosso objetivo maior neste pequeno ensaio. Dito isto, quero postular a seguinte proposição: é possível compreender o discurso de Marinho, Felipe Melo e de todo atleta que atribui sua vitória e derrota a vontade divina, ao conceito de teodiceia como proposto na sociologia da religião weberiana.
A teodiceia surge como uma forma de explicação racional da bem aventurança e do sofrimento no mundo, sendo que desde muito cedo foi necessário para as religiões de salvação tratar do problema do sofrimento imerecido, primeiro, de forma não sublimada, com a atribuição a um espírito, demônio ou divindade e, depois, de forma mais complexa, através do mecanismo da culpa projetada por um pecado (WEBER, 2016, p. 30).
O homem sempre quis salvar-se da dor, buscar a alegria, e sempre teve de lidar com o adoecimento e a morte. Cada uma das religiões mundiais – Cristianismo, Confucionismo, Hinduísmo, Budismo e Muçulmanismo – criaram uma explicação racional da distribuição de felicidade e sofrimento no mundo, são diferentes os graus de racionalização alcançados por cada uma dessas formas de explicação, mas o que nos interessa aqui é a interpretação criada pelo protestantismo ascético, pois é dela que bebem os jogadores do futebol brasileiro para legitimarem-se em suas vitórias e absolverem-se nas derrotas. Em um pequeno excerto no final da famosa Consideração Intermediária, Weber apresenta as Três Formas racionais de Teodiceia, o dualismo do zoroastrismo; a ascensão individual e interna ao nirvana, típica da religiosidade Hindu e, por último, o decreto predestinacionista do protestante ascético, diz nos Weber:
A reconhecida impossibilidade de medir os desígnios divinos com critérios humanos implicava renunciar, com desapaixonada clareza, à capacidade de acesso do entendimento humano ao sentido do mundo, renúncia essa que punha fim a toda problemática desse gênero. Com tamanho grau de coerência lógica, não se conseguiu sustentar duradouramente essa doutrina fora do círculo de virtuoses de alto nível. E isso precisamente porque tal renúncia – em contraste com a crença no poder irracional da “fatalidade” – exige a aceitação da ideia de determinação pela Providência, portanto racional de certo modo, daqueles que estão condenados não só à perdição, mas também ao mal; e ainda por cima exige o “castigo”, ou seja, a aplicação de um categoria ética (WEBER, 2016, p.406).
No problema da teodiceia há um vício de origem que Weber apresenta da seguinte maneira: ou a divindade não é onipotente, tendo de conviver com diferentes outras entidades, espíritos e demônios prontos a exercerem o seu poder de destruição na vida dos fiéis; ou ela não é boa, no sentido de que permite a dor e o sofrimento. O protestantismo responde racionalmente a essa contradição afirmando a vontade inacessível da divindade; já o dualismo prefere um demiurgo, que causa o mal em oposição ao bom Deus.
Claro que nas expressões de Marinho e de outros jogadores, não veremos a clareza que só é possível perceber na abstração conceitual do tipo ideal weberiano, mas é perceptível o conflito interno entre “os planos de Deus” e os seus próprios planos. Eis aí o paradoxo de Marinho: culpa Deus pelo insucesso e assume sua própria não-eleição – a dureza do desígnio divino ausente de bondade – ou foge da severa teodiceia da predestinação para um dualismo popular, no qual não foi a vontade de Deus mais a maldade do mundo que lhe condenou ao insucesso? Qualquer solução exige o sacrifício de uma das duas caraterísticas atribuídas ao divino.

Por fim, a título de composição, Felipe Melo aparece como o bem aventurado, o agraciado pela vontade divina, a teodiceia da felicidade é a contraposição natural do sofrimento e se expressa naquela profecia do palmeirense, pois para ele é mais fácil coroar a predestinação como forma de legitimação de sua felicidade no mundo, segundo Weber:
Quem é feliz raramente se contenta com o simples fato de ter felicidade. Além de possuí-la, sente necessidade de ter direito a ela. Quer convencer-se de que a “merece” e principalmente: que a merece em comparação com os demais. Daí querer também poder acreditar que quem é menos feliz que ele, quem não tem uma felicidade comparável à dele, também está, tanto quanto ele, recebendo em troca a parte que lhe cabe. A felicidade quer ser “legítima” (WEBER, 2016, p.25).
Essa passagem poderia muito bem ser utilizada para explicar a malfadada meritocracia tão cara a todo religioso que pretenda sustentar as ordens do mundo, mas ela não cabe tão bem no discurso dos atletas, principalmente porque eles sabem que suas vitórias são sempre provisórias e a conquista de um título provavelmente será seguida da derrotas futuras. Quase que uma ética da vizinhança os sustenta, aquela que por princípio significa: o seu sofrimento de hoje pode ser o meu de amanhã.
De todo modo, fica patentemente expressa a relação entre a teodiceia religiosa e o destino no esporte moderno, reafirmo aqui que mesmo que “esferas” separadas, esporte e religião se mantêm relacionadas: seja nas visões de mundo que constroem os trilhos pelos quais transitam os interesses materiais, como no caso da teodiceia como forma da legitimação da vitória e expiação da derrota; seja como saída de incêndio para um mundo cada vez mais dominado por uma racionalidade instrumental, cujas mãos frias condenar-nos-iam ao flagelo de uma vida repetitiva e irracional em sua finalidade última.
Notas
[1] Cinco mil pessoas foram convidadas pela CONMEBOL para partida, dentre elas estava o prefeito de São Paulo Bruno Covas, ver: Final da Libertadores tem aglomeração e torcedores sem máscara no Maracanã; veja fotos. GE: Globo.com. 30/01/2021. Acesso em 03/05/2021.
Referências
“EU não nasci palmeirense, mas vou morrer palmeirense” | Felipe Melo se emociona após título. Publicado pelo canal ESPN. Acesso em 03/05/2021.
Final da Libertadores tem aglomeração e torcedores sem máscara no Maracanã; veja fotos. GE: Globo.com. 30/01/2021. Acesso em 03/05/2021.
MARINHO chora após santos perder final da libertadores para o palmeiras. Publicado pelo canal ESPN. Acesso em 03/05/2021.
WEBER, Max. Ética Econômica das Religiões Mundiais: Ensaios comparados de sociologia da religião. Vozes, 2016.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.