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Medellin: bola, bomba e Botero

Gilmar Mascarenhas 22 de janeiro de 2018

Abril de 2017. Aquele jogo da Libertadores contra o campeão sul-americano trazia sim motivação especial, mas funcionou muito mais como pretexto para enfim conhecer esta cidade singular. Aliás, nem tenho preferência por pomposas competições internacionais: sou daqueles poucos a acreditar que da Champions League à série B do Carioca, ou mesmo à Taça de Favelas do Rio de Janeiro, cada partida de futebol tem, ainda que sob formas tão distintas, sua magia, sangue e alcance poético. O belo documentário “Campo de Jogo”, de Eryk Rocha (2014) que o diga.

Nascido em Cascadura, ousaria afirmar que, em se tratando de charme e animação, um bom duelo em Conselheiro Galvão (alô, alô, vizinha Madureira!) pode superar a maioria dos jogos transmitidos cotidianamente pela grande mídia. Leia-se, a propósito, “Ode a Mauro Shampoo e outras estórias da várzea”, do talentoso botafoguense Luiz Antonio Simas, a quem devo a elogiosa apresentação do livro Entradas e Bandeiras: a Conquista do Brasil pelo Futebol.

Neste sentido, se já era fã do Seedorf, tornei-me ainda mais quando de sua fala, na final do Campeonato Carioca de 2013, conquistado por antecipação (vencemos os dois turnos), após a vitória por 1 a 0 sobre Fluminense. Às lagrimas, o craque “world class” comemorava o título ainda em campo, quando foi indagado por um jornalista muito surpreso com a cena: como poderia um jogador com quatro títulos da Champions League no currículo, habituado a audiências bilionárias nos mais luxuosos estádios do planeta, se emocionar com um mísero torneio local, vencido no pacato estádio Raulino de Oliveira? Seedorf afirmou que para ele não havia diferença: qualquer que fosse o campeonato, mantinha sua rotina profissional de treinos, de empenho e de briga pela conquista do título. Missão cumprida, fim de mais um ciclo. E mais, que nos clubes “pequenos” havia atletas igualmente valiosos, homens trabalhando com afinco, dignidade e a merecer todo o respeito. Em tempos de “futebol moderno”, sua fala varou como uma flecha pontiaguda a esfera pública na qual estamos imersos, onde o abismo das cifras econômicas define rígidas hierarquias entre o céu e o inferno. Business, business, business…

Aterrissei em Medellin na véspera do jogo, em voo repleto de outros botafoguenses, atmosfera particularmente cordial a colaborar no enfrentamento de duas escalas (Bogotá e Barranquilla). Por eles fiquei sabendo da existência de ingressos a bordo, cortesia que muito facilitou minha vida. Ao contrário da maioria fiz, como de costume (mania de geógrafo), o trajeto para o hotel em transporte público, uma forma lenta de penetrar a cidade mais profundamente, em camadas, noite adentro. Perscrutar as falas, cheiros e detalhes. Cruzar pausadamente a montanha (Cordilheira dos Andes) para avistar o profundo Vale de Aburrá, onde se “encaixa” e se espreme como pode a lendária urbe de quatro milhões de habitantes.

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Chegada de ônibus. Foto: Gilmar Mascarenhas.

 

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Vista geral da cidade a partir do Metrocable Santo Domingo. Foto: Gilmar Mascarenhas.

Atravessar favelas poeirentas na descida íngreme, situadas a 1.800 metros de altitude (casebres pendurados a vertiginosos quatrocentos metros acima da área central, bem-vindo os teleféricos) até alcançar lá embaixo uma estação de metrô. Neste, quase todos os olhares exprimiam, ali por volta das dez horas da noite, a tensão que paira no cotidiano local. Este o cartão de visitas da cidade que foi considerada, nos anos 1980, a mais perigosa do mundo, no auge do reinado de Pablo Escobar. E que exibe marcas e registros diversos de terrorismo homicida, bem como o mais famoso monumento de Botero, o Pássaro da Paz, parcialmente destruído por uma bomba em 1995 (que num evento festivo matou doze pessoas, incluindo crianças), e que ali persiste, a pedido do artista, como testemunho de um doloroso passado recente. Nauseante, embora de rara beleza, é o Museu Casa de La Memória, dedicado à guerrilha e suas vítimas, incluindo centenas de milhares de “desplazados” (a registrar o magnífico trabalho documental de Marta Rodriguez e Natalia Botero).

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O Pássaro da Paz. Foto: Gilmar Mascarenhas.

Na recepção do hotel fui atendido por um eloquente e fanático torcedor do Atlético Nacional, muito esperançoso na vitória de seu time, campeão da Libertadores do ano anterior. Demonstrou impressionante conhecimento acerca da história do Botafogo, incluindo detalhes das três passagens do Glorioso na cidade, onde jamais perdeu uma partida. Eu mesmo desconhecia o enorme prestígio da Estrela Solitária por estas bandas. Não por acaso, há apenas treze quilômetros de Medellin, na cidade de Itagui, foi fundado em 1981 um clube de futebol denominado Botafogo, em assumida homenagem ao alvinegro carioca. Interessante pesquisar se outros clubes brasileiros influenciaram a tal ponto nossos vizinhos continentais. Desconheço outros casos. No Brasil, ao menos no circuito profissional, destacam-se o River do Piauí e o Colo Colo de Ilhéus (BA), criados respectivamente nas décadas de 1940 e 1950, quando seus homenageados homônimos brilhavam na cena futebolística internacional.

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Botafogo de Itagui presente no estádio dando-nos boas-vindas. Foto: Gilmar Mascarenhas.

Curiosamente, o futebol colombiano exibe um histórico distinto da maior parte dos países sul-americanos, apresentando um processo relativamente tardio de adoção consistente desta modalidade esportiva, e a Geografia ajuda a compreender o processo. No contexto de grande difusão do futebol pelas malhas do imperialismo britânico, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, a Colômbia estava, assim como a Venezuela e boa parte do Caribe, inserida na zona de vasto predomínio de capitais norte-americanos. Capitais ingleses na zona costeira, como em Barranquilla, propiciaram a formação de clubes de futebol no início do século, mas sem vigor suficiente para uma efetiva difusão nacional. A forte presença norte-americana incidia nos padrões culturais e privilegiava a adoção do beisebol, tal como ocorreu em toda a sua área de influência (vide a vizinha Venezuela, a Republica Dominicana etc.). É notável, por exemplo, que nem mesmo a imensa força popular de Che Guevara e de todo o contexto da Revolução Cubana tenham sido suficientes para que o beisebol, já arraigado nos costumes, fosse substituído pelo futebol, dentro do estratégico projeto revolucionário de reduzir o legado cultural ianque em favor de práticas esportivas que aproximassem Cuba de “sus hermanos sudamericanos”.

Numa Colômbia ainda de economia basicamente agroexportadora, as “plantations” de banana, café e cacau eram controladas pela gigante United Fruit Company. Em 1928, no Departamento de Santander (vizinho ao de Antióquia, onde se encontra Medellin) vinte a trinta mil trabalhadores rurais (que ao que tudo indica desconheciam o futebol) promoveram uma vigorosa greve exigindo jornada de quarenta e oito horas semanais, descanso dominical e redução dos elevados índices de miséria. O governo norte-americano ameaçou invadir a Colômbia caso não “resolvessem” imediatamente a questão. Foi assim que se promoveu o famoso “Massacre de Las Bananas”, abordado no magistral Cem Anos de Solidão, de García Márquez. Impiedosamente, as forças armadas colombianas assassinaram neste trágico episódio entre 400 e três mil trabalhadores rurais. A inexatidão dos números apenas revela a brutal indiferença para com as vidas humanas. O futebol chegaria mais tarde na vida andina colombiana, no bojo da urbanização galopante. Sem alterar, contudo, a miséria reinante. Apenas aportando doses de sonho e alegrias fugazes àquelas vidas obscurecidas.

Apenas em 1948 surgiu finalmente uma seleção colombiana de futebol e se realizou o primeiro campeonato profissional. O próprio Atlético Nacional é de 1947. Take off futebolístico tardio, mas com forte impulso gerado pela intensa industrialização e ascendente economia petroleira nos anos 1950. Neste contexto particularmente favorável, o clube Milionários (de Bogotá) promoveu a inusitada aquisição de estrelas internacionais como Di Stefano, e talentos como o lendário alvinegro Heleno de Freitas, montando uma poderosa equipe. O futebol era uma nova onda no país, fazendo com que em 1950, o mesmo “Gabo” (Gabriel García Márquez), em sua Barranquilla, presenciasse pela primeira vez, aos 23 anos, uma partida de futebol. Heleno então jogava no Junior Barranquilla e foi ele mesmo, o “maestro”, boêmio convicto e artista da bola quem mais encantou o genial escritor. Em sua crônica El Juramiento”, escrita imediatamente após aquela partida contra o poderoso Millionários, disse que Di Stefano entendia tudo de retórica e que Heleno daria um extraordinário autor de romances policiais. Termina afirmando que voltaria ao Estádio Municipal para não mais se sentir uma “ovelha desgarrada”, aderindo assim à “Santa Hermandad de Los Hinchas”.

Nesta onda surgem os principais estádios, como o de Medellin, em 1953. No ano seguinte, o país organiza a Taça Colômbia-Brasil. Nela, Botafogo (que estivera excursionando no país em 1952, vencendo todos os cinco jogos disputados) e Vasco da Gama (com remanescentes do famoso “Expresso da Vitória”) foram convidados a representar-nos diante das quatro maiores equipes colombianas.  O alvinegro de Garrincha e Quarentinha sagrou-se campeão vencendo todas as partidas, em Bogotá, Santa Fé e Medellin. Invencibilidade mantida em nova visita a Medellin em 1971.

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No estádio, torcedor do Atlético adentrou nossa torcida se dizendo fã do Botafogo e trazendo a revista local “Vea Deportes” de 1971. Na foto o ataque avassalador do então chamado “Selefogo”: Zequinha, Roberto, Jairzinho e Paulo César. Testemunha ocular, não esquece o espetáculo que presenciou. Foto: Gilmar Mascarenhas.

De metrô, cheguei comodamente ao estádio Atanasio Girardot, com quatro horas de antecedência para estudar o ambiente.  Gostei muito da peculiar inserção do equipamento no tecido urbano: dentro de um grande parque, denominado Unidad Deportiva Atanasio Girardot (costumeira homenagem a um general herói da independência nacional). Trata-se de um complexo poliesportivo (piscina, velódromo, quadras diversas), bem municipal exemplarmente dotado de equipamentos de acesso público e em ótimas condições. Visitei vários deles. Situação invejável, se compararmos com a precariedade reinante no Brasil, país “olímpico”.

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Perspectiva do estádio e do parque a partir do metrocable Linea J – Aurora.

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Algumas instalações e usos do Parque, momentos antes do jogo. Foto: Gilmar Mascarenhas.

Para além do intenso policiamento (a cidade é repleta de câmeras, cercas elétricas e outras formas agressivas de “proteção”), creio que o parque atua como “zona de amortecimento” de potenciais conflitos ao redor do estádio, pois diversas pessoas (para além dos torcedores) frequentam assiduamente o local, circulam com cães, andam de patins, bicicletas, namoram, “distensionando” assim a atmosfera pré-jogo. Ademais, são inúmeros “bares” (quiosques) onde os torcedores comem deliciosas arepas, bebem a “michelada” (cerveja com limão e sal) ao som alto (demais) de cumbias e vallenatos de forte apelo popular. Com o espaço sonoro plenamente ocupado, sobra para os agressivos cânticos torcedores pouca oportunidade. Em situação similar (inaugurada provavelmente pelo Estádio Centenário, em Montevidéu, bem no meio do Parque Batlle), quantos estádios temos no Brasil? Nenhum, dentre os principais. O Mineirão conta com agradável área verde no entorno, mas não um parque. O Parque da Sabiá em Uberlândia, certamente, mas o equipamento praticamente não funciona (o clube local trafega entre a série D nacional e a “segundona” estadual). Imaginei o Maracanã localizado no meio da Quinta da Boa Vista, “compartilhando espaço” com o Jardim Zoológico e o Museu Nacional, em inserção bem menos asfixiada. Ou o Pacaembu no Ibirapuera.

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Foto: Gilmar Mascarenhas.

Preços dos ingressos: arquibancada superior (as “Populares” Norte e sul) a 25 COPs (pesos colombianos), equivalendo a trinta reais, portanto mais acessíveis que os nossos para uma Libertadores (coincidentemente, o salário-mínimo colombiano se equipara ao nosso). O ingresso mais caro (camarote) custava 110 COPs, muito menos que um assento na Oeste Inferior do Itaquerão, para não citar os abusivos valores cobrados na modesta Ilha do Urubu. No interior do estádio lotado, a bela festa alviverde. E um clima muito amistoso, praticamente sem separação entre as torcidas (um tênue cordão de isolamento constantemente vencido para troca de cordialidades (camisas, inclusive) e fotografias. O episódio recente da Chapecoense muito contribuiu para a tranquilidade reinante.

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Zona de contato entre as torcidas. Foto: Gilmar Mascarenhas.

O Atlético estava absolutamente invicto em seus domínios naquele ano. Mas para tristeza da massa confiante, vencemos os campeões por 2 a 0, ratificando nossa tradição em terras colombianas. O jogo foi numa quinta-feira e eu tinha pela frente três dias da Semana Santa para vasculhar a cidade. Teleféricos (“metrocable”) para as favelas (“comunas”) (modelo copiado posteriormente no Rio de Janeiro, com a diferença fundamental de funcionar plenamente em Medellin), museus, feiras, espaços culturais, muitas caminhadas, o fabuloso Parque Arví, a magnifica culinária colombiana e a simpatia inconteste das pessoas. É notável o vasto programa de intervenções urbanas radicais, de cunho material e simbólico, ensejado nos últimos quinze anos, que não raramente tem sido designado como o “Milagre de Medellin”. Avanços sim, mas fica evidente o modelo adotado de estetização da pobreza. Ainda assim, se compararmos com o Rio de Janeiro, guardadas as devidas proporções e os distintos contextos histórico-geográficos, os progressos colombianos no combate à pobreza e no incentivo à cultura e apropriação popular dos espaços públicos são dignos de nota. Talvez não aguarde a próxima Libertadores para rever a cidade em sua peculiar e desafiadora trajetória. Pode demorar muito, nesses tempos tão áridos de ”futebol moderno”, nada simpáticos à tradição gloriosa da Estrela Solitária.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gilmar Mascarenhas

Professor Associado do Instituto de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Como citar

MASCARENHAS, Gilmar. Medellin: bola, bomba e Botero. Ludopédio, São Paulo, v. 103, n. 22, 2018.
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