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Memória em Campo – Estrela Vermelha 2×2 Bayern (1991)

Gabriel Said 25 de agosto de 2021

Falar dessa partida do Estrela Vermelha (Crvena Zvezda) contra o Bayern é falar de uma das grandes exibições esportivas da Iugoslávia. É tentador, na mesma medida que desafiador tratar do futebol nos Bálcãs durante a virada dos anos 1980 para 1990. Estava escancarado ali como futebol e política não apenas se misturam, mas por vezes são uma coisa só, afinal trata-se de um time formado por três sérvios, quatro montenegrinos, dois croatas, um macedônio e um romeno apenas algumas semanas após o início da Guerra Civil Iugoslava.

Vamos, no entanto, focar em ler o jogo de volta entre Estrela Vermelha e Bayern de Munique, válido pela semifinal da Copa dos Campeões de 1990-91. Para isso pedi à Marija Marković para usar uma de suas artes daquele time que viria a ser campeão europeu.

Estrela Vermelha
Arte de Football Marija. Autoria: Marija Marković (Марија Марковић)

Nos últimos cinco anos o Estrela Vermelha deixava para trás anos irregulares para ganhar duas ligas iugoslavas (ainda ganharia a liga de novo em 1991) e uma copa iugoslava. O melhor, porém, ainda estava por vir. Depois de vencer de virada por 2 a 1 em Munique duas semanas antes, com gols de Pančev e Savićević, o Crvena Zvezda foi a campo no Marakana naquele 24 de abril de 1991 diante de mais de 79 mil pessoas com Stevan Stojanović; Duško Radinović, Slobodan Marović, Refik Šabanadžović e Miodrag Belodedici; Vladimir Jugović, Robert Prosinečki e Siniša Mihajlović; Darko Pančev, Dejan Savićević e Dragiša Binić. Ljubomir Petrović era o treinador.

O Bayern por sua vez ganhara uma copa e cinco vezes a Bundesliga nos últimos seis anos e contava com quatro alemães que estavam na final da Copa do Mundo de 1990, vencida pelos alemães. O time bávaro era: Aumann; Schwabl, Bender, Grahammer, Augenthaler e Effenberg; Reuter, Strunz e Thon; Wohlfarth e a sensação dinamarquesa Brian Laudrup. O treinador era Jupp Heynkes.


Os alemães dão o pontapé inicial e já dá para ver um pouco como os iugoslavos jogariam: enquanto se defendendo, teriam muitos jogadores no seu campo e algumas perseguições individuais ao portador da bola adversário, com oito jogadores de linha tentando fechar qualquer espaço pelo meio ao Bayern.

A primeira jogada plástica vem aos pés de Binić, que já no segundo minuto avança pela direita e com um drible de corpo  passa por dois alemães, mas acaba perdendo a bola na sequência. O Bayern tentaria contra-atacar rápido por aquele lado, mas logo chegaram quatro jogadores do Estrela, incluindo Binić, para pressionar e forçar o recuo.

Estrela Vermelha
Estrela Vermelha (camisa listrada) faz pressão no ataque contra o Bayern (liso), que recua. Fonte: Reprodução

Os três zagueiros do Bayern não eram muito pressionados. O Crvena marcava com duas linhas, sendo a do meio de campo bem larga, para isolar a defesa rival do restante do time e acabava por forçar passes longos. Porém, em uma subida de Bender pelas costas de Binić aconteceu a primeira finalização da partida, pelo próprio ala alemão, mas com defesa tranquila de Stojanović.

O Bayern é o melhor time nos primeiros minutos, conseguindo ficar mais tempo com a bola no ataque e impedindo os ataques dos donos da casa. O Estrela Vermelha joga em um esquema tático híbrido, alternando constantemente os jogadores na linha de defesa, meio e ataque de acordo com os contextos do jogo. Quem mais alternava era Mihajlović, que frequentemente recuava do meio para complementar a linha de defesa. Prosinečki por sua vez flutuava para onde ele pudesse contribuir mais na armação das jogadas. Em menos de 10 minutos de jogo já tinha aparecido na saída de bola entre os zagueiros, no meio, se aproximando dos pontas e até como um segundo atacante, esperando para puxar um contra-ataque. Já o romeno Belodedić ficava na sobra da defesa como líbero.

Estrela Vermelha
Estrela Vermelha (listrado) se defende com quase todos seus jogadores no campo de defesa, protegendo o centro. Fonte: Reprodução

Nesta jogada acima o Bayern erra o lançamento e Prosinečki inicia o contra-ataque carregando a bola pelo meio. Savićević abre em diagonal pela esquerda e recebe o passe, faz o cruzamento e o goleiro Aumann soca a bola, que sobra no pé de Prosinečki que chuta e a bola é desviada para escanteio. A torcida começa a vibrar muito alto.

Depois dos 10 primeiros minutos o ritmo da partida cai e a intensidade também, com ambas equipes cometendo alguns erros técnicos bobos. A torcida por outro lado, mais quieta nos primeiros minutos, agora já está bem participativa e provavelmente ajudou com que aos poucos, os donos da casa conseguissem entrar melhor no jogo pois enquanto o Bayern ainda errava, o Estrela errava menos a cada minuto.

Aos 18’, Prosinečki recupera a bola e faz triangulação com Savićević, que abre o jogo para Mihajlović. Uma jogada que merece atenção pela sua riqueza: Prosinečki passa e se movimenta sabendo que um colega estava aberto pela esquerda, então vai para o meio, atraindo a atenção dos dois marcadores alemães que o observavam. Savićević por sua vez, teve a habilidade de driblar o marcador já abrindo o seu campo para fazer o passe na lateral. Os jogadores do Bayern ainda não viram Mihajlović, que está lá por questão tática, para abrir o campo. É um momento que coloca em xeque alguma preponderância da tática ou técnica. Ambas estão a serviço uma da outra.

Estrela Vermelha
Savićević com a bola observa Prosinečki passar por perto e Mihajlović mais distante. Fonte: Reprodução

Agora o jogo se abre, os erros bobos, não-forçados se vão e o jogo fica mais vertical com os times alternando ataques promissores, mas ainda com poucos chutes.

Em um momento, Savićević carrega a bola desde o campo de defesa, partindo da direita para o meio, passando pelo primeiro marcador e então sofrendo a falta. É uma falta frontal a cerca de 27 metros do gol. O cobrador será Mihajlović, considerado um dos melhores batedores de falta da história, sendo o recordista no futebol italiano com 28 gols de bola parada. Contra o Bayern, ele bateu no contrapé de Aumann, com a bola quicando perto do gol. O goleiro já estava indo para o canto esquerdo e apenas observa sem reação a bola entrar na sua direita.

Os alemães reagiram rápido e logo chegaram com muito perigo em finalização de Thon. A defesa do Estrela parou achando que o atacante estava impedido no lançamento que partiu do meio de campo, mas o goleiro Stojanović saiu bem do gol para defender o chute.

Um pouco depois foi a vez dos donos da casa atacarem com perigo. Pančev domina a bola (com muita classe, diga-se) no meio de campo depois de rebatida em escanteio a favor do Bayern e parte para cima dos três defensores bávaros. Ele passa a bola na direita, entre os marcadores. Pela transmissão não tem ninguém lá, mas logo aparece Savićević como um cometa, que chega perto da área e percebe Pančev se desmarcando atrás da defesa. O cruzamento é preciso, mas Aumann faz a defesa.

Na imagem 1, Pančev faz o passe e a transmissão não consegue mostrar o outro jogador do Estrela Vermelha. Na imagem 2, Savićević aparece para receber o passe. Fonte: Reprodução.

Aos 33’ Prosinečki recupera a bola na intermediária de defesa, gira o corpo e pisa na bola provocando os dois marcadores ali perto. O primeiro dá o bote e não acerta o desarme, mas a bola se afasta do iugoslavo, então o segundo vai na sobra e acaba levando um corte de letra. O Estrela segue a jogada pela lateral esquerda com Savićević, que deixa o primeiro marcador no chão (Messi faria parecido com Boateng anos depois), passa pelo segundo, mas chuta muito longe do gol. Seria um golaço.

Confortáveis em jogar no contra-ataque, o Estrela Vermelha terminou melhor o primeiro tempo, com alguns de seus melhores jogadores como a dupla Savićević e Prosinečki muito confortáveis em campo. O entrosamento é notório.

O clube de Belgrado começou a formar seu time cinco anos antes, em 1986, quando adotou a política de contratar jovens promessas iugoslavas como Dragan Stojković, que ficou no clube de 1986 até 1990, até se juntar ao Olympique de Marseille. No entanto, outros jogadores ficaram e foram multi-campeões no clube como  foi o caso do elenco que estava em campo: Marović, Radinović, Šabanadžović, Belodedici, Prosinečki, Mihajlović, Pančev, Savićević e Binić foram chegando aos poucos, ano após ano para se juntarem ao goleiro Stojanović, que já estava na equipe profissional do Estrela Vermelha desde que virou profissional em 1982. Para completar o time, Jugović também foi promovido em 1989.

Voltando para o segundo tempo do jogo, o Bayern precisa virar para conseguir ao menos levar para a prorrogação, mas logo no início do segundo tempo o Estrela já consegue um contra-ataque que possivelmente decidiria o jogo, não fosse um polêmico impedimento marcado de Pančev, que ficaria cara a cara com Aumann.

Estrela Vermelha
Impedimento marcado contra o Estrela Vermelha no início do segundo tempo. Fonte: Reprodução

Apesar do susto, os alemães estavam melhores. O 3-5-2 do primeiro tempo permanecia enquanto não tinham a bola, com Wohlfarth e Laudrup pressionando a dupla Radinović e Belodedici, mas agora pareciam atacar em uma forma de 3-4-3, normalmente com Thon completando o trio. Os ataques estavam mais laterais e Laudrup frequentemente abria para um dos lados.

Em uma jogada pela esquerda, Thon toca a bola para Strunz, um colega de equipe passa pelas suas costas abrindo o campo pela esquerda a atraindo a marcação, mas Strunz passa pelo meio para Thon, livre, dentro da área cruzar para Wohlfarth perder a chance com o gol aberto.

O Crvena Zvezda responderia minutos depois com Binić, puxando para a direita dentro da área e chutando para a defesa de Aumann, mas o Bayern melhorava no jogo no ritmo de Laudrup, que começava a aparecer o tempo inteiro no jogo, recuando ou abrindo em uma das pontas, fazendo o cobertor do Estrela parecer sempre curto porque o time alemão estava regularmente encontrando ou criando algum espaço para explorar.

Em uma tabela de Laudrup com Wohlfarth, o dinamarquês carrega a bola até ficar cercado por quatro iugoslavos e sofrer a falta em um lugar próximo de onde o Estrela marcou o gol da partida, mas agora uns 3 metros à frente. Depois de um desentendimento com a barreira, que saía da posição antes do apito, o Bayern faz sua jogada ensaiada rolando a bola para Augenthaler chutar e ver a bola passar do lado da barreira, por baixo das pernas do goleiro e parar dentro do gol. Com um clássico frango o Bayern empatava a partida aos 16’ do segundo tempo, para o desespero de Stojanović.

A torcida gritava “Zvezda, Zvezda!” para apoiar, mas o momento era dos visitantes. Aos 21’ Effenberg cruza da esquerda na intermediária para a área, eram três jogadores de cada time ali. A marcação do Estrela estava mal feita, deixando Thon livre. Augenthaler salta para disputar a bola com Belodedici, os dois erram, a bola bate em Radinović e acaba sobrando para Thon marcar e virar o jogo.

A virada fez o Estrela voltar ao jogo. Começavam a organizar sua saída contra a dupla de atacantes com Marović, Radinović e Belodedici, uma saída de três. Depois de chegar perto algumas vezes, o Estrela Vermelha conseguiu uma finalização em mais uma cobrança de falta de Mihajlović, que apesar de ser a mais de 30 metros de distância, assustou o goleiro adversário com um chute forte e de baixa altura.

O placar aliado ao cansaço parecia tornar o jogo mais aberto na reta final. A partir dos 30’ aconteceriam várias chances perigosíssimas de gol para ambos os lados. Primeiro foi o Bayern aproveitando uma saída errada de Šabanadžović. A bola fica para Laudrup cruzar e Thon por pouco não alcança. Os iugoslavos respondem na sequencia com um chute de Pančev que passa do lado da trave.

Outra vez o Estrela chegava, agora com Prosinečki chutando a bola rolada em um tiro livre de longe e Aumann defendendo bem. Voltamos ao Bayern, com Laudrup chutando forte da meia-lua e Stojanović desviando para fora.

O Estrela chega mais duas vezes, mas não consegue finalizar bem, então é a vez do Bayern aos 38’ da segunda etapa: Laudrup abre na esquerda e toca para Thon no meio. O camisa 10 alemão faz lindo passe para Wohlfarth tocar na saída do goleiro e se lamentar com a bola batendo na trave. Dois minutos depois, Prosinečki puxa mais um contra-ataque, toca para Savićević na direita, que passa de primeira para Binić chutar cruzado e por pouco não marcar.

Eu poderia tentar um suspense sobre quem avança para a final, mas você que está lendo já sabe que o Estrela Vermelha foi campeão europeu nessa temporada e também sabe o placar dessa partida: dois a dois.  Faltando agora menos de três minutos para acabar a partida, o jogo poderia ir para a prorrogação e só lá o gol acontecer… mas foi no tempo normal. Ainda assim, talvez você não saiba como foi esse gol, então tente imaginar:

O goleiro Stojanović arremessa a bola na direita para Marović, ele tenta o passe vertical para Binić, mas Effenberg dá um carrinho na bola e ela volta para o lateral iugoslavo. A marcação se aproxima e ele dá um toque que encobre os marcadores  para chegar em Stojanović, mais centralizado. O meia avança, passa por dois adversários e tabela com Pančev, que saíra da área para fazer o pivô. Stojanović consegue assim passar por mais um defensor, mas outro consegue dar um toquinho na bola e tirá-la do controle do jogador iugoslavo. Um zagueiro do Bayern dá um carrinho na bola, derrubando Stojanović junto e a bola fica no pé de Prosinečki na entrada da área pela esquerda, que avança até receber marcação dupla. Ele então toca para trás, para Mihajlović cruzar. O cruzamento seria certeiro se não fosse Augenthaler, o capitão do Bayern, campeão do mundo meses antes e autor do primeiro gol bávaro, que corta o cruzamento, mas para o seu lamento (assim como Stojanović se lamentou no seu gol) o corte foi estranho, de canela e para trás, encobrindo o goleiro Aumann. O Estrela Vermelha se classifica com gol contra aos 45’ do segundo tempo.

Depois do gol os jogadores davam piruetas, corriam para todos os lados, se abraçavam: o Crvena Zvezda ia para a final europeia! Nos instantes finais aconteceu ainda a primeira e única substituição do jogo, com o meio-campista Vlada Stošić (outro formado no clube) entrando no lugar de Pančev. Quando a partida encerrou, a torcida no Marakana – estádio em Belgrado que tem esse nome em homenagem ao Maracanã do Rio de Janeiro – invadiu o campo celebrando a classificação. Com faixas, bandeiras e sinalizadores, o gramado virou arquibancada. Cena que hoje em dia seria muito difícil de acontecer em uma competição europeia.

O Estrela Vermelha conquistaria o título cerca de um mês depois em Bari, na Itália contra o Olympique de Marseille. Pančev e Prosinečki terminariam aquela Copa dos Campeões entre os principais artilheiros, com 5 e 4 gols respectivamente. O artilheiro da copa estava no time francês: Jean-Pierre Papin marcou 6 gols, mas a final é assunto para outro texto.


Aproveitando, conheça e acompanha o fantástico trabalho da Marija Marković! Tem entrevista com ela aqui no Ludopédio em parceria com a Revista Pelota e veja algumas artes no Instagram dela (@footballmarija).


https://www.youtube.com/watch?v=BicPXZdZHkw

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Gabriel Said

Formado em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestrando em Antropologia pela UFF e aluno da Associação de Treinadores do Futebol Argentino (ATFA). Participa do grupo de estudos de Futebol e Cultura, do LEME/UERJ; do grupo de Futebol e Humanidades da Universidade do Futebol e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte e Sociedade (NEPESS), da UFF. Além de escrever a coluna Danúbio Azul no Ludopédio, também escreve para a Universidade do Futebol. E-mail: [email protected]

Como citar

SAID, Gabriel. Memória em Campo – Estrela Vermelha 2×2 Bayern (1991). Ludopédio, São Paulo, v. 146, n. 46, 2021.
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