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Memória em Campo – Hamburgo SV 3×3 Santos (1962)

Gabriel Said 19 de julho de 2021

A partida amistosa entre o Santos e HSV aconteceu no dia 20 de outubro de 1962, no Volksparkstadion, na cidade de Hamburgo na então Alemanha Ocidental. O público de 72 mil presentes é um dos maiores na história do estádio. Apesar de amistoso, estes times poderiam ter feito a final da Intercontinental daquele ano, como veremos logo abaixo.

O Hamburgo era na época um dos times mais fortes do país, campeão dos oito últimos Oberliga Nord, campeonato da região norte do país – a Bundesliga só seria criada em 1963 e antes disso o título nacional era decidido em um pequeno torneio entre os campeões regionais. Enquanto empilhava títulos regionais, foi vice-campeão da copa alemã em 1956, perdendo para o Karlsuher e vice-campeão alemão em 1957 e 1958, perdendo as finais para Borussia Dortmund e Schalke 04, respectivamente. Em 1960 conquistaram o título nacional ao vencerem o 1.FC Köln na final por 3×2, com dois gols de Uwe Seeler (já voltaremos nele).

Representando a Alemanha Ocidental na Copa dos Campeões de 1960-61, eliminaram os suíços Young Boys por 8×3 no agregado, o campeão inglês Burnley por 5×4 e perderam na semi-final para o Barcelona. Após uma vitória em Hamburgo por 2×1, com gol catalão aos 90’ e derrota em Barcelona por 1×0 os alemães foram eliminados pela regra de gol fora. Neste jogo de ida contra o Barça está o recorde de público do Hamburgo, com 77.600 pessoas no Volksparkstadion. Mais tarde, ainda na temporada de 1962-63 a equipe tornaria a vencer a Oberliga Nord e ganharia pela primeira vez a copa alemã, derrotando o Borussia Dortmund por 3×0.

jornal alemão Kicker
Capa do jornal alemão Kicker, após a partida que terminou empatada entre HSV e Santos. Fonte: Acervo Santos FC

O Santos, campeão da Libertadores em julho e campeão do mundo contra o Benfica (que derrotou o Barcelona, carrasco do HSV, na final europeia) poucos dias antes desse amistoso, dispensa apresentações.

A equipe do Hamburgo foi ao jogo com Schnoor; Krug, Meinke e Kurbjuhn; Dieter Seeler, e Werner; Frtizsche, Kreuz, Uwe Seeler, Bähre (Wulf) e Uwe Reuter.

O Santos jogou com Laércio; Zé Carlos, Mauro, Calvet (Formiga) e Dalmo; Lima e Mengálvio; Bé, Coutinho, Pelé e Dorval (Pagão).

Os primeiros minutos foram melhores para o HSV, especialmente com as corridas de Kreuz, explorando espaços na defesa santista pelas duas laterais, conseguindo primeiro uma falta próxima da grande área, depois um escanteio e então a primeira chance perigosa para os alemães. Não tardou para que, em rápido contra-ataque iniciado com roubada de Werner, que passa para Uwe Seeler dar ótimo passe para Reuter sair cara a cara com Laércio, driblá-lo e marcar o primeiro gol da partida aos 6’.

Hamburgo Santos
Passe de Uwe Seeler para Reuter marcar o primeiro gol do jogo. Fonte: Reprodução

O Santos melhorou depois do gol. Passou a jogar com Mauro como líbero para recuperar as bolas enfiadas entre sua defesa e tentava roubar a bola no campo de ataque com os atacantes e meias. As melhores jogadas, como eram de se esperar, passavam por Pelé, que quase empatou a partida logo aos 7’. Com 10 minutos de jogo Bé intercepta um passe no ataque, deixa para Coutinho que avança e recua para Pelé deixar seu marcador no chão e marcar o gol de empate.

Hamburgo Santos
Bé rouba a bola para o Santos marcar seu primeiro gol com Pelé. Fonte: Reprodução

Os alemães tentavam jogar com troca de passes rápidas para seus pontas Kreuz e Reuter explorarem os corredores e entrelinhas em velocidade, com o atacante Uwe Seeler recuando para abrir espaço entre os defensores adversários como um falso 9, função que os alemães conheceram bem quando derrotaram a poderosíssima Hungria no Mundial de 1954 e Hidegkuti era quem fazia esse movimento.

A equipe brasileira tinha na sua tática a transição do 4-2-4 para o 4-3-3, assim como a seleção brasileira campeã do mundo naquele ano. Bé era o atacante que mais transitava entre meio e ataque. O jogo do Santos era com lançamentos de Dalmo na esquerda e principalmente, Zé Carlos pela direita e Calvet pelo meio buscando Coutinho, Pelé ou Dorval. Uma vez que a bola chegava ao ataque, o time todo subia, buscava tabelas e triangulações para criar as chances, embora finalizasse também de fora da área se o espaço surgisse.

O Santos defendia bem deixando a equipe do HSV longe do seu campo de defesa, roubando muitas bolas antes de chegarem no seu terço de campo. Porém, aos 16’ os alemães conseguiram chegar no ataque com Reuter, que fez um bom cruzamento e por pouco Uwe Seeler não alcança a bola. A resposta do Santos foi imediata com lançamento de Mengálvio do campo de defesa deixando Lima cara a cara com o goleiro Schnoor, que chega a sair da área para pressionar Lima e o meia santista acaba chutando para fora.

Santos Hamburgo
Na imagem, seis jogadores santistas pressionam o time do HSV no campo de ataque. Fora da imagem haviam outros dois. Fonte: Reprodução

Aos 18’ foi a vez de Formiga, que entrara no lugar de Calvet, fazer um passe longo para Coutinho no ataque deixar o marcador no chão e perder uma incrível oportunidade dentro da área. Na sequência da jogada Bé recuperou a bola rifada e não se decidiu sobre o que fazer com ela, até se enrolar sozinho e dar o contra-ataque ao Hamburgo, que quase marca.

Na jogada seguinte, Formiga faz lançamento perfeito no peito de Pelé, que tabela com Mauro e depois com Lima que quase o deixa de cara para o gol, não fossem os dois defensores alemães. O contra-ataque foi rápido e mais uma vez o Santos não consegue proteger sua intermediária. Reuter (na direita) cruza com facilidade para Seeler, livre, cabecear para a defesa de Laércio. Os alemães ameaçavam pelo segundo gol.

A jogada segue a se repetir: Formiga lança Pelé, que tenta o cruzamento e a bola sai pela linha de fundo. O tiro de meta é cobrado rapidamente, com Schnoor já lançando Kreutz no meio de campo, logo a bola foi para Uwe Seeler que mais uma vez vê a corrida de Reuter e faz o passe. O ponta sai de frente para o arco santista e marca o segundo gol alemão, aos 22’.

Hamburgo Santos
Outra assistência de Uwe Seeler para Reuter. Fonte: Reprodução

O momento era do HSV, com Kreuz complicando a vida da defesa brasileira, participando de boa jogada que deixou Bähre invadir a área e soltar uma bomba na trave. O Santos ainda veria a bola acertar outra vez a sua trave e uma vez o travessão. Foram alguns minutos em que todos os jogadores de linha dos mandantes estavam no campo de ataque e o Santos não conseguia sair do campo de defesa.

Do lado alemão, o camisa 8 Kreuz era quem fazia as jogadas mais plásticas. Penteava a bola, driblava com facilidade, dava passes de letra e calcanhar.

Perto dos 30’ Pelé cai de mau jeito em dividida com um zagueiro do HSV e sai de jogo por uns três minutos. Tempo o bastante para o time alemão aproveitar a dificuldade do Santos de manter a bola, sem a principal referência, para ensaiar uma nova pressão. E justo quando Pelé voltou a campo que conseguiram a melhor oportunidade, com Reuter fazendo ótima enfiada para Kreuz ficar de cara com Laércio, que faz excelente defesa.

Com Pelé de volta em campo fica evidente a melhora do time. Não só pela qualidade única do Rei, mas por ser quem melhor segura a bola no ataque e também pela movimentação do time com ele: Pelé recua várias vezes e abre espaço para infiltrações de Lima, o camisa 5. Foi assim que, minutos antes, Lima saiu com perigo contra Schnoor, obrigando o goleiro a sair da área para não levar o gol.

Os últimos minutos do primeiro tempo foram equilibrados. Os contra-ataques e cruzamentos do HSV continuavam perigosos, mas o Santos com Mauro de líbero e com a pressão alta no campo de ataque conseguia controlar melhor o jogo. A habilidade dos seus jogadores pelo centro do campo; Mengálvio, Lima, Pelé e Coutinho ainda ajudavam muito o time, que concentrava os ataques por ali com tabelas e triangulações, quase sempre passando por Pelé.

Coutinho por pouco não marca no fim: depois de driblar dois marcadores, acerta a trave. Ainda daria tempo do Rei dar um lindo chapéu no meio de campo para o delírio da torcida local.

Para o segundo tempo o Santos entrou com Pagão, com a camisa 17, no lugar de Dorval. Foi Pagão quem, aos 3’ avança com a bola na intermediária de ataque e deixa a bola com o calcanhar para Pelé passar pela marcação e chutar forte de esquerda da entrada da área e empatar mais uma vez a partida.

Os minutos seguintes são de ataques dos dois lados. HSV chegaria duas vezes com perigo pela direita enquanto Lima comandava as chegadas do Santos, carregando a bola desde a defesa até entrega-la para alguém perto da área adversária.

Com pouco mais de 10’, em jogada que passou por Kreuz, HSV faz um cruzamento para cabeçada perigosa de Reuter, porém defendida com segurança por Laércio. Existem algumas jogadas de perigo de ambas as equipes nesse início de segundo tempo, mas sem os times conseguirem finalizar e, quando conseguiam eram chutes sem pontaria.

Até então no segundo tempo Coutinho tinha se deslocado para a ponta direita enquanto Pagão era quem agora jogava ao lado de Pelé por dentro. Após 15 minutos Coutinho estava sumido do jogo, assim como Dorval no primeiro tempo, eis que então volta para sua posição inicial e Pagão foi para a ponta, mas ele se movimentava mais que os outros indo para o centro e recuando, participando mais do jogo pela direita do que Dorval e Coutinho.

Aos 31’, Bé perde a bola no ataque e HSV puxa um contra-ataque pela direita, encontrando Fritzsche livre na frente da área adversária, que chuta de esquerda e quase faz um golaço. No minuto seguinte, Zé Carlos avança com a bola sem marcação até o meio de campo e faz uma ótima enfiada para Coutinho quase marcar.

Pouco depois foi novamente a vez do HSV atacar. Wulf, que entrou no lugar de Bähre, recebe no meio do campo e avança uns 20 metros até tocar para Reuter na esquerda. O atacante ajeita a bola, cruza com a perna direita para Uwe Seeler, que voa para acertar uma linda cabeçada e colocar mais uma vez o time local na frente do placar aos 33’ do segundo tempo. A torcida grita “Uwe, Uwe” após o gol.

Hamburgo Santos
Uwe Seeler, de 1.70m, voa para marcar de cabeça. Fonte: Reprodução

Uwe Seeler é um atacante histórico do futebol alemão e principalmente do HSV. Nascido em Hamburgo, começou a carreira no próprio clube em 1953, onde jogou até se aposentar em 1972. Pelo clube ganhou todos aqueles títulos citados no início do texto. São 476 jogos e 404 gols marcados. Tem ainda passagens pela seleção, com 15 gols em 10 jogos pela seleção sub-18 e 43 gols em 72 jogos pela principal. Foi vice-campeão do mundo em 1966 e terceiro em 1970. Coleciona ainda os prêmios de terceiro melhor da Ballon d’Or em 1960; melhor do ano na Alemanha em 1960, 64 e 70; artilheiro da Bundesliga em 1964; FIFA 100; entre outras premiações individuais.

Aos 34’ Uwe Seeler poderia marcar outro em tentativa de bicicleta, mas não pegou bem na bola e mandou longe do gol. A torcida estava mais empolgada depois do gol de Seeler e talvez o atacante também, pois aos 35’ quase marca de novo após invadir a área pela esquerda e ter o chute (ou cruzamento) desviado por Zé Carlos. Assim como foi após o 2×1, era o Hamburgo que pressionava por mais um gol, não deixando os visitantes respirarem.

Acontece que em um cruzamento mal feito por Reuter, a bola sobra para Mengálvio, que se livra da marcação e toca para Pagão – pelo meio – deixar o marcador caído e avançar até a entrada da área. Ali, Coutinho saia da direita para o centro. Pagão deixa a bola com Pelé, que contemporiza o jogo e tenta um passe pelo alto sem sucesso para Coutinho dentro da área. Mesmo sem conseguir finalizar, o Santos conseguia graças a Mengálvio e Pagão acabar com a pressão do HSV sem passar pelo mesmo aperto que foi no primeiro tempo. Mais importante: o time voltava para o jogo.

Primeiro foi essa jogada sem sucesso. No ataque seguinte Coutinho conseguiu fazer a cabeçada, mas sem muito perigo. Na terceira tentativa, Lima cruza e Coutinho marca. São 38’ do segundo tempo e o Santos empata pela terceira vez.

Os últimos minutos seriam dos dois times tentando marcar o gol da vitória, com muitos ataques e pressão ao adversário. HSV ainda chegaria com perigo em finalização de Fritzscher e o Santos com Coutinho, mas a partida acabaria empatada com três gols para cada lado. Foi um grande jogo, do ponto de vista técnico, tático e de emoção. Digno daqueles times de HSV e Santos.

Santos
Escalação do Santos para a partida. Feito com TacticalPad.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gabriel Said

Formado em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestrando em Antropologia pela UFF e aluno da Associação de Treinadores do Futebol Argentino (ATFA). Participa do grupo de estudos de Futebol e Cultura, do LEME/UERJ; do grupo de Futebol e Humanidades da Universidade do Futebol e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte e Sociedade (NEPESS), da UFF. Além de escrever a coluna Danúbio Azul no Ludopédio, também escreve para a Universidade do Futebol. E-mail: [email protected]

Como citar

SAID, Gabriel. Memória em Campo – Hamburgo SV 3×3 Santos (1962). Ludopédio, São Paulo, v. 145, n. 36, 2021.
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