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Memórias da vida e do futebol

Plínio Labriola Negreiros 14 de novembro de 2018

Nas buscas por fontes para a uma pesquisa sobre o futebol nos anos 1930 e 1940, vi a possibilidade, e necessidade, de trabalhar com a história oral. Tinha uma inspiração muito clara: Memória e sociedade: lembranças de velhos, obra de Ecléa Bosi. Nela, que guarda um vigor ímpar, a partir das memórias recolhidas com velhos — que nasceram, aproximadamente, no início do século do século XX —, há, praticamente, uma história da cidade de São Paulo contada por personagens concretos, com as suas experiências sendo alinhavadas a cada página, nas quais os eventos históricos são intercalados com acontecimentos pessoais. Com a decisão de colher depoimentos orais, a lembrança dessa obra foi inevitável. O livro da professora Bosi revela o quanto o ato de recolher memórias vinculava, com laços fortes, depoente e entrevistador. Para cada uma dessas pessoas com quem pude ter contato, de maneiras diferentes, o fato de alguém escutar suas experiências passadas produzia em cada um deles muito prazer. Não há como esquecer as palavras do sr. Paulo Schiesari, que iniciou o seu depoimento dizendo: “Você está me dando uma oportunidade muito gostosa porque todas as vezes que eu exteriorizo isso, eu ganho em saúde, alegria e felicidade”.

Ao mesmo tempo, não eram pequenas as minhas preocupações teóricas com esse tipo de fonte, bem utilizada nas últimas décadas. Não são apenas convergências. Há questionamentos quanto ao estatuto científico da história oral; há um debate extenso acerca do seu caráter metodológico ou técnico. Para Paul Thompson, na história oral existe a possibilidade de dar voz a quem não a tinha, fazendo da história oral um método, já que produz uma contra-história. Além do mais, com a história oral, o historiador tem a possibilidade de construir o seu próprio documento. Assim, entendo que a história oral deva ser pensada enquanto um método, já que a sua função não é a de cobrir lacunas deixadas pelas outras fontes, principalmente as escritas, porém deve recuperar as experiências de sujeitos que não puderam deixar seus testemunhos, pois foram ignorados pela história oficial.

Ao mesmo tempo, a história oral não deve nada em relação às fontes mais tradicionais. Afirma Alessandro Portelli que as fontes escrita e oral não são excludentes, mas “requerem instrumentos interpretativos diferentes e específicos”. Ou seja, cada uma dessas fontes têm as suas próprias características e funções. Cabe ao pesquisador utilizá-las dentro dessa perspectiva.

A leitura de Alistair Thomson, ainda acerca da história oral, também traz inúmeros pontos de reflexão. Quando estive recolhendo os depoimentos orais, estive preocupado em como se estabeleceriam as relações entre entrevistado e entrevistador. Isso tornou-se uma preocupação maior a partir do momento em que percebi que o meu trabalho também estaria sendo analisado. Thomson mostra como, no desenvolvimento das suas entrevistas, foi percebendo “a dimensão e a intensidade do seu comprometimento emocional e político” com o tema da sua pesquisa. O fato de o autor trabalhar com um tema-limite, que mexe com a própria identidade do povo australiano, não deixa de representar também uma preocupação com temas com implicações políticas menores. Cito, a título de exemplo, como as pessoas que entrevistei estiveram muito preocupadas em saber para que time de futebol eu torcia. Graças ao meu sobrenome italiano, Labriola, apesar de algumas confusões criadas, pude circular com tranquilidade entre os torcedores do Palmeiras. Quando fui conversar com corinthianos, precisei mostrar que o meu sobrenome não me tornava, automaticamente, um palmeirense. Existiam ainda cobranças, quando os entrevistados me lembravam que eu deveria estar sempre muito atento às “verdades” que eles haviam me confiado e quais eu deveria fazer constar do meu trabalho.

Outra questão que a experiência de Thomson deixa explícita é a da memória de cada pessoa sofre uma série de interferências, que vão desde o lugar social que ocupam, passando pelo momento em que passam a ter as suas memórias sendo lembradas. Daí a forte mistura de um passado heroico, permeado de eventos que sustentam a criação do povo australiano, com relatos lendários da própria vida do entrevistado. Para o pesquisador da Austrália, essa situação revela menos um limite da história oral e mais um possível ponto de análise. Ou seja, é necessário pensar que são as pessoas que preferem continuar a fazer do passado um espaço de eterno heroísmo e o porquê disto. De certa forma, é o que aponta Marilena Chauí na apresentação de “Memória e sociedade”, quando apresenta o fato de a memória política dos velhos entrelaçar-se com a história política oficial.

Tais questões balizaram as minhas conversas, na segunda metade dos anos 1990, com pessoas ligadas ao futebol, com jogadores ou não.

Murilo Antunes Alves, o futebol através dos microfones

Murilo Antunes Alves. Foto: ALESP/Reprodução.

O vereador Murilo Antunes Alves – nascido no início dos anos 1920 em Itapetininga-SP -, meu primeiro entrevistado, foi procurado por ser um antigo cronista esportivo, inclusive um dos primeiros a trabalhar com a locução esportiva, ao final dos anos 1930. Também foi cronista de jornal. Apesar de ser, à época da entrevista, um vereador com muitas atribuições, como a de secretário da Mesa da Câmara Municipal de São Paulo e de apresentar um programa diário em uma rede de televisão, ele se propôs a me receber sem maiores entraves.

Fiz a entrevista no seu gabinete na Câmara Municipal. De certa forma, posso afirmar que o seu relato oral foi um pouco prejudicado porque ele já deu outros depoimentos para trabalhos afins. Tanto que não foram necessárias maiores explicações. O espontâneo acabou perdido. De certa forma, a sua fala já estava pronta. Mas nem por isso deixou de ser importante.

Um outro ponto que eu coloco como prejudicial é o fato do sr. Murillo ser um político e jornalista conhecido, o que fez que a sua fala fosse marcada por um caráter muito conciliador. Jamais esteve pronto para qualquer polêmica. Quando apontou alguma crítica mais ácida, referiu-se a fatos já conhecidos. Foi o caso de quando falou do speaker Nicolau Tuma, que recebeu grandes críticas por causa de uma locução de uma corrida automobilística em 1937 em São Paulo. Esse fato já foi bem explorado no livro A bola no ar: o rádio esportivo em São Paulo, de Edileusa Soares.

Ao mesmo tempo, Murilo Antunes Alves fez questão que o seu depoimento ficasse restrito ao seu contato profissional com o rádio e com o futebol. Extrapolou muito pouco. Sendo assim, fiquei sabendo pouco de outros aspectos da sua vida. Por exemplo: foi estudante de Direito na USP, durante o Estado Novo. Nesse espaço ocorreu, de forma ímpar, uma resistência ao regime ditatorial. Nada se falou sobre isso. Na prática, o sr. Murillo limitou-se a citar nomes de importantes alunos dessa faculdade, que mais tarde acabaram se destacando na vida jornalística e política brasileira. Algo bem conhecido.

Foi perceptível que o vereador se preparou para a entrevista, pois trouxe algumas fotos da época em que exercia a função de radialista. De todos os entrevistados foi o que menos se emocionou ao lembrar do passado; talvez pelo fato de ainda estar em plena atividade. É possível ele não tenha produzido uma separação brutal entre o passado e o presente. Sua memória em relação aos fatos da sua vida profissional é grande. Lembrou-se das suas primeiras atividades. Ao menos gostou de dar esta impressão.

Ao mesmo tempo, através das suas memórias é possível dimensionar parte do que era o trabalho de um locutor de rádio e, mais especificamente, um locutor esportivo. As dificuldades para exercer esse ofício não eram pequenas, assim como as perspectivas profissionais não se mostravam tão promissoras. Daí o sr. Murillo ter saído da área esportiva e militado em outros campos do jornalismo.

Paulo Schiesari, uma vida pelo Palmeiras

Conversei com o sr. Paulo Schiesari, sócio da Sociedade Esportiva Palmeiras desde 1941 e conselheiro vitalício. Desde os primeiros contatos mostrou-se muito disposto a dar uma entrevista, que foi muito profícua.

Quando da entrevista, tinha 72 anos, aposentado e muito lúcido, apesar de estar com a saúde um pouco abalada. Através da sua fala percebi que esteve muito envolvido com a vida do clube. A minha primeira impressão foi de estar diante de um torcedor, tanto apaixonado pelo futebol como pelo clube do coração. Foi um contato muito diferente do travado com Murilo Antunes Alves, este muito mais preocupado em manter a imparcialidade de um jornalista.

O sr. Paulo cultivava um orgulho grande pela sua família. Seu pai, Romano Schiesari, saiu da Itália com seus familiares e chegou ao Brasil com 9 anos de idade. Trabalhava como marceneiro, vindo morar em São Paulo, no Bom Retiro, onde nasceu o senhor Paulo. Seus pais casaram-se e tiveram 12 filhos, sendo 8 homens. O sr. Romano não gostava de futebol. O sr. Paulo Schiesari aprendeu a gostar do Palestra por causa do seu tio Antônio. Seus irmãos não eram sócios do Palmeiras. Perdeu os pais, que morreram em 1959, dentro de um espaço de 3 meses. Demonstrou ter um orgulho grande pelo seu irmão Nelson, então desembargador. Ficou triste pelo fato de o pai não estar vivo para vê-lo em posição tão importante.

Sua dedicação ao clube sofria críticas da família, já que passava um tempo grande lá. Afirmava que estar aposentado significava poder desfrutar da vida e dedicar-se quase integramente ao Palmeiras. Deixou claro como a sua dedicação ao clube prejudicou, de alguma maneira, as relações familiares.

Sua fala antes da gravação pareceu mais tranquila. Ao ligar o gravador, caminhou para um certo formalismo. Seu discurso foi bem articulado. Lamentou não ter quase nada guardado, como revistas, fotografia, entre outros objetos. Porém, essas ausências materiais foram compensadas pela memória extraordinária, principalmente ao que se refere às grandes conquistas do Palmeiras.

Como a minha intenção era de que o sr. Paulo falasse da sua vida — e dentro desta emergisse o assunto futebol —, não preparei qualquer roteiro com questões preestabelecidas, pois meu desejo era interferir o menos possível. Assim, simplesmente, a minha solicitação foi no sentido de que ele rememorasse a sua trajetória pessoal. Porém, ele me pediu que eu fosse encaminhando a entrevista, já que sua memória poderia não ajudar. Assim, colhi seu depoimento mais através de uma conversa. Apenas acabei seguindo o seu desejo, o que para este tipo de trabalho é fundamental.

Senti, como já afirmei, que estava diante de um torcedor, já que suas análises caminhavam, no geral, para o clubismo. Quando relembrava de eventos direta ou indiretamente relacionados com a II Guerra, entendia que “todos” estavam contra o time dos italianos. Mais do que isso: estavam contra os próprios italianos. Porém, seu ódio maior é contra os paulistanos “quatrocentões”, de certa maneira concentrados no São Paulo Futebol Clube. Guardava um rancor especial contra um são-paulino dos mais fanáticos: tratava-se do monsenhor Bastos, que ele chamava de “monsenhor das vocais trocadas”.

Tudo isso porque com a entrada do Brasil na II Guerra, em apoio aos Aliados, todas as colônias residentes no país sofreram algum dado. No caso do Palmeiras, uma situação dramática: foi obrigado a trocar seu antigo nome — Palestra de São Paulo — para Palmeiras poucas horas antes de um jogo decisivo contra o São Paulo. Além dessa partida ter sido jogada sob muita tensão — inclusive propalava-se que os “inimigos” italianos, torcedores do Palmeiras, seriam agredidos —, também parte da torcida do São Paulo tentou ocupar a sede do Palmeiras.

Em cada momento da nossa conversa, mostrou-se sempre muito emocionado pelas coisas que lembrava e contava. Deixou claro, implicitamente, que eu estava lhe prestando um grande favor. Apesar da longa conversa, demorou a se cansar.

Ao tomamos um cafezinho juntos, ele me mostrou uma homenagem recebida do Palmeiras, através de uma placa de prata, pois foi o idealizador de criar o dia do Palmeiras. Mostrou-me, ainda, uma camisa de um jogador atual do mesmo clube, entre outras coisas. Deu-me algumas balas e guardanapos com o emblema do Palmeiras.

Talvez por delicadeza não perguntou para que time eu torcia. Porém, como reconheceu o meu sobrenome italiano, deve ter acreditado que eu torcia para o mesmo clube que ele se dedicou quase sessenta anos da sua vida.

Fora da gravação falou de duas coisas polêmicas, que fazem parte do cotidiano do futebol, mas nunca são provadas. Afirmou que existiam árbitros corruptos, que arranjavam resultados; como também falou dos cronistas esportivos que eram subornados para falsearem alguns acontecimentos, como falar bem de jogadores apenas medianos.

Através de suas memórias foi possível compreender a importância do futebol para uma cidade que crescia a passos largos e que recebia a forte presença dos imigrantes. Apesar da imigração ter diminuído muito o seu ritmo com o início da Era Vargas — houve ingerência do poder público neste sentido — São Paulo era uma cidade de imigrantes. A partir de meados dos anos 1930, os conflitos entre os brasileiros e os imigrantes começavam a mudar de direção. No início do século os primeiros imigrantes chegavam e eram tratados como forasteiros. Passadas algumas décadas, com muitos imigrantes já enriquecidos, o conflito se estabelecia entre os que tinham “berço”, os que tinham sobrenomes pomposos e os forasteiros enriquecidos.

Um ano após ter entrevistado o sr. Paulo Schiesari fui informado do seu falecimento. Senti a dor que a morte de uma pessoa próxima provoca. Talvez este seja um dos efeitos mais significativos do trabalho com história oral: o encontro de pesquisador e depoente.

Oberdan Catanni, defendendo as cores do Palmeiras

Oberdan Cattani defendeu o Palmeiras no anos 40 e 50 e tornou-se uma lenda do clube. Nasceu em 12 de junho de 1919 e faleceu em 20 de junho de 2014. Autor: Autor: Baptistão Caricaturas.

Oberdan Cattani, nascido em Sorocaba-SP no ano de 1919, veio jogar no Palmeiras em 1941, ficando até 1954. Depois jogou por um ano no Juventus. Clube que, segundo Oberdan, recebia os jogadores dos clubes grandes de São Paulo, quando estes jogadores começavam a ficar velhos.

Conversei com o sr. Oberdan Cattani na sua casa, na Pompéia, bairro em que fica a sede do Palmeiras. Trata-se de um sobrado típico de classe média, comprado em 1945, quando Oberdan casou-se e já estava estabilizado como atleta profissional. Na sua casa, num cômodo anexo ao seu quarto, cheio de lembranças do Palmeiras — inclusive as roupas de cama — encontravam-se todas as lembranças que o ex-jogador tinha da sua época de atleta profissional. Esse cômodo me foi mostrado com muito orgulho. Lá existiam taças, quadros, fotos, placas em homenagem ao jogador, recortes de jornal, charges, além de inúmeros outros objetos. O interessante é que quando perguntei se ele havia guardado alguma coisa da época, me respondeu que não, ao mesmo tempo que me encaminhou ao seu memorial.

Para Oberdan Cattani, lembrar do seu passado glorioso foi uma forma de manter o interesse pela vida. Apesar de lembrar do passado com um certo — e justificável — saudosismo, não coloca as suas memórias a serviço de um passado mítico e ideal, imune a contradições e mazelas. Como atleta profissional sentiu-se muito mal em duas situações: quando renovava contrato e era chantageado emocionalmente pelos diretores do Palmeiras e quando esse clube o dispensou, depois de quase quinze anos.

A entrevista foi muito conturbada, mas nem por isso menos interessante ou proveitosa. Inicialmente no nosso encontro estava marcado para a sede do Palmeiras, perto da sua casa, mas como ele havia brigado com alguns diretores do clube dias antes, prometia nunca mais entrar no Palmeiras. Na verdade, ele esperava que alguém do clube lhe pedisse desculpas por um pequeno incidente. Teve o seu orgulho ferido.

No meio da entrevista, Oberdan Cattani recebeu a visita de dois amigos, também ex-jogadores: sr. Gustavo (que jogou no Palestra Itália, ainda no tempo do amadorismo), de 83 anos, e o Sr. Renato, que jogou na Portuguesa de Desportos. Eles se sentiram no direito de interferir na entrevista, chegando a corrigir, em poucos pontos, na fala do nosso entrevistado. Além de diversas provocações, já que o sr. Renato afirmava ter feito vários gols de cabeça no Oberdan Cattani. Este negava, muito contrariado.

Em todos os momentos, desde o contato inicial, Oberdan mostrou-se muito interessado e orgulhoso pela entrevista. Ele disse gostar de falar do passado. Mas também se mostrou muito interessado nas coisas do presente, destacando-se como organizador dos veteranos do Palmeiras. Quase que realizou um trabalho de assistência social com ex-jogadores hoje abandonados à própria sorte. A situação desses antigos atletas o sensibilizava muito. Criticou muito a diretoria do Palmeiras por não dar a devida atenção a essas pessoas.

Conversando com o ex-goleiro do Palmeiras e das seleções paulista e brasileira, foi possível verificar como é difícil para Oberdan Cattani não poder mais viver as glórias do futebol. Falar desse passado significa reviver a fama e o assédio de torcedores. Sentia-se muito feliz quando era reconhecido em algum jogo do clube.

Francisco Raimundo Oliveira Santos, lutando contra Leônidas

Vivi um momento especial conversando com o ex-jogador Chico Preto, apelido do sr. Francisco Raimundo Oliveira Santos, que jogou como zagueiro no Sport Club Corinthians Paulista entre 1941 e 1945. Depois foi jogar na Portuguesa Santista e no América do Rio. Parou de jogar aos 27 anos, em função de problemas no joelho, já que operou os meniscos. O futebol só o tornou famoso por alguns anos, quando chegou a defender a seleção paulista. Contou, com orgulho, que foi carregado pelas ruas de São Paulo, após uma vitória contra a seleção carioca, em pleno Rio de Janeiro.

Quando veio jogar no Corinthians, Chico Preto tinha dezenove anos. Na nossa conversa, tinha 73 anos. Mostrou-se muito lúcido. Era divorciado e teve dois filhos: um de 50 e uma de 48 anos, que moram em Santos. Idades da época da entrevista.

Mais do que contar as suas alegrias e tristezas no futebol, falou com orgulho que estudou. Fez o ginásio e, nesse curso, profissionalizou-se na área de torneiro mecânico e ferramenteiro. Estudou em Santos. Na época da entrevista, morava sozinho e continuava a trabalhar numa pequena sala de um prédio no centro de São Paulo. Ele tinha uma pequena empresa que fazia adesivos de logotipos de automóveis. Trabalhava sozinho e parecia ter muito serviço.

Relutou em dar entrevista; achava que não tinha o que contar. Foi o depoente que me deu “mais trabalho”. Foram necessárias várias conversas preparatórias até o sr. Raimundo, como ele gosta de ser chamado, resolveu permitir a gravação da nossa conversa. Esta foi muito interessante, pois ele não foi um jogador muito famoso, entre outros motivos. Se no primeiro contato ele não parecia muito disposto em contar a sua passagem pelo futebol, mais tarde a situação transformou-se: foi mostrando-se muito simpático à ideia de gravar, tanto que me pediu uma cópia da gravação realizada, para que ele “possa escutar em casa”.

O sr. Raimundo nasceu no Nordeste e veio com a família para Minas Gerais. Começou na várzea e passou a jogar pelo Vila Nova. Transferiu-se para o Corinthians em 1941. Tornou-se campeão nesse ano. Em 1942, quando Leônidas da Silva veio jogar no São Paulo F. C., o então Chico Preto o enfrentou no jogo de estreia do atleta que acabava de vir do Rio de Janeiro, depois de ter brigado com o seu clube, o C. R. Flamengo.

Nesse famoso jogo, no qual fala-se na presença de mais de setenta mil pessoas no Estádio Municipal do Pacaembu, inaugurado dois anos antes, Corinthians e São Paulo empataram por três gols. O sr. Raimundo pareceu lembrar-se muito bem desse jogo, já que ele tinha a função de marcar o estreante Leônidas. Disse que em função da sua pouca idade e do prestígio do estreante, passou a primeira parte da partida, em que o São Paulo vencia por 2 gols a zero, sem saber o que fazer, já estava mais emocionado do que outra coisa. Além da emoção de estar jogando contra um Leônidas da Silva, grande figura brasileira da Copa de 1938, sentia-se sem condições técnicas para rivalizar com o Diamante Negro. Inclusive, o sr. Raimundo contou que durante o jogo Leônidas lhe dizia: “— Olha, eu sou o Leônidas…”.

No intervalo do jogo, o técnico do Corinthians, Joréca, precisou “levantar o seu moral”, mostrando que ele poderia marcar o Leônidas, já que ele, o Chico Preto, também tinha duas pernas e dois braços. No segundo tempo do jogo, passou a marcar melhor seu adversário e o Corinthians terminou a partida conseguindo um empate em 3 gols e Leônidas pôde ser minimamente controlado.

Esse acontecimento é muito interessante porque foi o primeiro a ser lembrado pelo sr. Raimundo, inclusive com detalhes. Emocionou-se ao contar acerca desse jogo. Ao mesmo tempo que não pareceu interessado em lembrar de quando começou a jogar, onde, como veio parar em São Paulo, mergulhou naquele jogo. Contou da presença da torcida, uma verdadeira multidão. Falou de pessoas que desde as primeiras horas do dia já estavam na porta do estádio; disse ter visto, não apenas uma vez, torcedores que chegavam até de marmitas, já que passariam muitas horas naquele local.

O sr. Raimundo falou do seu passado no futebol com muito carinho. Aparentemente não falou com tristeza do fato de ter abandonado esse esporte tão cedo. Disse, conformado, que quando o joelho começa a ter problemas, não há mais jeito. Que mesmo se operando, na volta às atividades, depois de duas ou três partidas, o joelho voltava a inchar.

Lembrava-se dos seus companheiros de Corinthians, além de outros jogadores dos outros clubes. Contabilizou os poucos colegas que ainda estão vivos. Da equipe corinthiana de 1941 e anos seguintes, continuavam vivos, no momento da conversa, Milani, Lopes e Teleco.

Apesar de memoriar com carinho o passado ligado ao futebol, o sr. Raimundo pareceu mais interessado no seu presente. Falou com muito orgulho e entusiasmo do seu trabalho, que parecia ser muito especializado. Trabalhava muito, apesar da sua idade. O futebol naquele momento não lhe interessava. Estava muito mais preocupado com o citado trabalho e com a sua igreja pentecostal. Especificamente em relação ao seu trabalho, gostava de passar muito tempo contando quais os “segredos” da sua profissão. Sua atividade requeria muita habilidade manual, e ele fazia tudo sozinho, dada a especialização.

Nas conversas informais, assim como na entrevista, falou muito da questão da discriminação racial que sofreu enquanto jogador e que continuou a sofrer, chegando até o momento da entrevista. Contou-me histórias muito interessantes, inclusive que envolvem a questão do assédio sexual que o jogador de futebol sofre, notadamente quando este está no auge da sua carreira profissional.

Assim, meu interesse em colher o depoimento do sr. Raimundo foi grande por saber que ele, apesar de jogar alguns anos num time grande como o Corinthians, não se tornou um jogador famoso. Hoje, a maior parte dos torcedores não o reconheceria. Aliás, até o clube só ficou sabendo dele há pouco tempo, e de maneira involuntária.

Falava também com muito gosto da sua igreja pentecostal, onde, segundo ele, não existia qualquer preconceito racial. Lá ele era igual a todos.

Era um homem solitário. Separado da sua mulher – então vivendo em Santos-SP -, morava num pequeno apartamento alugado, próximo ao centro de São Paulo. Falou com orgulho do seu automóvel.

Tratou-se de um depoimento muito interessante. Ao contrário das outras pessoas escutadas, a sua simplicidade fez aflorar um homem com limites e com esperanças, que jamais se guardou em frases-feitas ou coisas do tipo. O importante é que o futebol faz parte das suas memórias, mas dentro de um contexto muito maior de vida.

Francisco Dyonisio Mendes, o maior dos corinthianos

Outro entrevistado foi o sr. Francisco Dyonisio Mendes, conhecido como Chico Mendes, filho de espanhóis, nascido em 1920, associado ao Sport Club Corinthians desde 1933 e sempre acompanhando a vida do clube. Se meu interesse inicial por ele veio do fato da sua participação nos episódios da crise do clube nos anos 1940 — que culminaram com a intervenção da Diretoria de Esportes do Estado de São Paulo, destituindo um presidente, Manoel Correcher, que era espanhol — fui descobrindo a vida de uma pessoa pautada pelo amor a um clube. Talvez a sua ligação com o futebol não fosse tão significativa quanto aquela pelo Corinthians.

E o mais importante: ao falar da sua paixão, deixou rastros da cidade de São Paulo nos anos 1930 e 1940, principalmente do bairro do Brás, marcado pela presença do imigrante italiano e do espanhol. Na sua fala emergiu uma região paulistana que concentrava muitas das contradições de uma cidade que reservava seus privilégios para poucos. É neste sentido que Maria Célia Paoli demonstra que, no imaginário dos paulistanos das décadas citadas, pensava-se uma cidade dividida. De um lado os bairros operários, lugar desconhecido pelas elites urbanas; de outro, o centro e os bairros com equipamentos urbanos, espaço das elites. Daí afirmar:

“Desde o fim do século passado até as primeiras cinco décadas deste, a separação simbolizada pelo Tamanduateí e pela estrada de ferro que o ladeava — a ‘cidade’ e o ‘lado de lá’ —, constituiu o imaginário primeiro e o mais consistente que São Paulo produziu de si mesma como cidade moderna e industrial. Esta imagem era ambígua: o fascínio pela modernidade fabril e urbana se fazia acompanhar do desgosto com um mundo invadido pela presença da condição proletária. Lá pelos anos 30, a orgulhosa formulação paulistana de ser o ‘maior parque industrial da América Latina’ se fazia acompanhar de descrições lúgubres dos bairros fabris e de seus habitantes, onde as metáforas do trabalho operário aparecem como ‘multidões’ ou ‘colmeias’ prestes a se desordenarem por que são ‘amontoados de trabalhadores’ cansados, que vivem espremidos em suas péssimas moradias e têm estranhos hábitos.”

Ao mesmo tempo, a partir da interferência do poder público na vida do clube — em função da oficialização dos esportes em 1941 —, sentiu a presença de um Estado autoritário na vida interna do clube que tanto gostava. Assim, as suas memórias desvendam esta ação estatal a partir do olhar de quem as vivenciou.

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Murilo Antunes Alves, Paulo Schiesari, Oberdan Cattani, Francisco Raimundo Oliveira Santos e Francisco Dyonisio Mendes foram algumas das pessoas com quem pude conversar. Mais do que buscar histórias relacionadas ao futebol, procurei histórias de vida. Dentro dessas vidas, apareceram experiências articuladas ao futebol. Recuperar parte da história do futebol brasileiro passa, necessariamente, por recolher essas memórias.

Dados sobre os depoimentos orais:

FRANCISCO DYONISIO MENDES (CHICO MENDES) – Nascido em São Paulo (SP), no bairro do Brás, no dia 09 de Outubro de 1920. Seus pais e um dos irmãos eram imigrantes espanhóis. Conselheiro vitalício do Sport Club Corinthians Paulista. Então aposentado. A entrevista básica foi realizada no dia 02 de julho de 1996. Falecido ainda na década de 1990.

FRANCISCO RAIMUNDO OLIVEIRA SANTOS (CHICO PRETO) – Ex-jogador de futebol, que atuou como zagueiro do Sport Club Corinthians Paulista na primeira metade da década 1940. Nascido em Sergipe, no dia 19 de novembro de 1923, migrou com a família para Sete Lagoas (MG). Depois de parar com o futebol, trabalhou como torneiro mecânico. Aposentou-se e continuou trabalhando numa microempresa de sua propriedade. Trabalhava com resina repox, atividade quase toda artesanal. A entrevista básica com o Sr. Francisco Raimundo foi realizada no dia 05 de julho de 1996.

MURILO ANTUNES ALVES – Nascido em Itapetininga (SP) em abril de 1919, veio para São Paulo estudar Direito no Largo São Francisco, no final dos anos 1930. Em 1938, estreou com locutor de estúdio, mais tarde passando a ser locutor esportivo. Trabalha como jornalista da TV Record de São Paulo. Foi vereador paulistano por dois mandatos, de 1988 a 1996. A entrevista foi realizada no dia 25 de agosto de 1995. Faleceu em 2010.

OBERDAN CATTANI – Ex-goleiro do Palmeiras, nascido na cidade de Sorocaba (SP), no dia 12 de junho de 1919. No início dos anos 40, veio para São Paulo especialmente para jogar pelo Palmeiras, quando este ainda chamava Palestra Itália. Atuou pelas seleções paulista e brasileira de futebol. Na época da entrevista, estava aposentado. A entrevista principal foi realizada no dia 30 de maio de 1996. Faleceu em 2014.

PAULO SCHIESARI – Nascido em São Paulo (SP), no bairro do Bom Retiro, no dia 25 de setembro de 1924. Filho de imigrantes italianos. Formado em Direito, quando deu entrevista estava aposentado. Conselheiro vitalício da Sociedade Esportiva Palmeiras. A entrevista básica foi realizada no dia 16 de maio de 1996. Faleceu em novembro de 1997.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Plinio Labriola Negreiros

Professor de HistóriaEstudo a História do Corinthians Paulista e do Futebol

Como citar

NEGREIROS, Plínio Labriola. Memórias da vida e do futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 113, n. 15, 2018.
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