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Memórias do Tri, memórias de infância

Se, já adulto, tomei consciência sobre toda a polêmica que envolve a conquista do Tricampeonato Mundial de Futebol pela Seleção Brasileira e seu uso político no contexto da ditadura civil-militar, minhas lembranças daquele feito esportivo que sedimentaria o mito do “futebol arte” são envoltas de uma névoa nostálgica pelo tempo de infância. A pátina do tempo recobriu muitos detalhes. Hoje, restam apenas algumas poucas lembranças, talvez, não relegadas ao esquecimento justamente por terem sido, repetidas vezes, evocadas por atos de rememoração, feito as madeleines de Proust na famosa trilogia Em busca do tempo perdido, quando o contato de uma madeleine, espécie de bolinho, com um gole de chá despertou no narrador, involuntariamente, lembranças da infância. Este é, pois, um exercício de busca daquele tempo, como se revolvesse em um baú para encontrar objetos dos quais já havia me esquecido completamente.

A obra Em busca do tempo perdido (1913-1927), de Marcel Proust. Foto: Reprodução.

Um televisor preto e branco da marca Emerson à válvula e com gabinete de madeira: através desse aparelho que, aliás, de vez em quando, demandava alguns tapas no tampo superior para restabelecer a imagem e que me proporcionaria muitos choques até ser substituído por uma TV transistorizada três ou quatro anos mais tarde, pude acompanhar, ao vivo, o escrete canarinho em campos mexicanos, em junho de 1970. Se as lembranças do Mundial de 1966, disputado na Inglaterra, são muito tênues, para quem tinha à época pouco menos de 04 anos de idade, evocadas apenas por um álbum de figurinhas que meu pai colecionava, as lembranças de 1970 me permitem dizer que aquele foi o primeiro Mundial que acompanhei com certa consciência, aos quase oito anos de idade, que seriam completados em julho.

Aparelho televisor Emerson. Foto: Reprodução.

Recordo-me, inicialmente, de algumas curiosidades, dentre elas uma promoção que um fabricante de laticínios fez por conta da Copa do México: vale-brindes poderiam ser encontrados, por exemplo, em potes de manteiga. E não é que, lá em casa, encontramos um? Não me lembro mais da marca da manteiga, mas sim do vale-brinde, pequenino, envolto em uma película de plástico. Sorte que minha mãe não usou a manteiga para fazer os deliciosos quitutes de infância, brigadeiros, bolos, pudins, canudinhos salgados com recheio de palmito, tortas e muito mais. Senão, certamente, com fartas colheradas de manteiga, o vale-brinde teria ido parar em alguma massa, feito um ingrediente estranho… Aliás, gravado no vale-brinde estava o nome do prêmio: uma bola de borracha. Ela veio em boa hora, pois a bola que eu tinha em casa à época, mais pesada, igualmente de borracha, meio oval e gasta de tanto jogar, mas com a reprodução em serigrafia de autógrafos dos jogadores brasileiros campeões do mundo em 1962, demandava substituição urgente. E, assim, ganhei aquela bola como prêmio da manteiga…

Jogadores em miniatura, da campanha da Pepsi e da Crush. Foto: Reprodução.

Na esteira do colecionismo, também não faltaram os jogadores em miniatura, de plástico, dos refrigerantes Pepsi e Crush. Se não me falha a memória, a campanha consistia na troca de seis tampinhas desses refrigerantes por um jogador miniatura, disponível em estabelecimentos comerciais, como padarias, bares e pequenas mercearias – nada de hiper e supermercados, como nos dias de hoje. No verso das tampinhas, estava gravado o título da campanha. Eram 11 jogadores de plástico em diferentes posições: por exemplo, o arqueiro Félix estava em posição de salto a agarrar uma bola alçada na área; Pelé parecia matar a bola com toda categoria para dar sequência à jogada de ataque; e Jairzinho estava em posição de tiro, pronto para chutar e marcar o gol. Todos os jogadores traziam os números nas costas em relevo e não eram pintados, mas sim confeccionados maciçamente em plástico, e cada conjunto de 11 jogadores continha as seguintes cores, remetendo ao pavilhão nacional: azul, amarelo, verde e branco. 11 x 04 cores perfaziam um total de 44 jogadores! Haja Pepsi e Crush para beber!!!

Por força do destino, à época, um tio meu, irmão caçula de minha mãe, trabalhava em uma padaria em Santo André, bem distante de onde morávamos, na Freguesia do Ó. Foi dele que recebi a maioria dos jogadores e pude completar a coleção inteira nas quatro cores. Hoje, infelizmente, não tenho mais nenhum deles, perdidos em algum lugar, nas mudanças de residência. Mas me recordo, ainda, que transformei, anos mais tarde, um das figuras de plástico de Pelé, colada a um copo de iogurte invertido, feito pedestal, em um troféu para disputa de futebol de botão com a turma. Pintei o conjunto – jogador e pote de iogurte – de tinta prateada, que restava de algum kit Revell de aviões em miniatura. Acabei ganhando eu mesmo o troféu que confeccionara. Aliás, de futebol de botão, modéstia à parte, eu já entendia um pouco, pois ganhara meu primeiro par de times aos 04 anos de idade, um vermelho representando o tricolor do Morumbi – com os adesivos dos rostos dos jogadores colados ao centro e com uma tampa acrílica transparente sobre eles, ainda me lembro de alguns deles: o “eterno capitão” Bellini, Tenente, Jurandir e Paraná – e outro preto representando o alvinegro do Parque São Jorge – também ainda me lembro de alguns nomes: Galhardo, Dino Sani, Rivellino, que se tornaria o “reizinho do parque”, dono da “patada atômica”, e Nei.

Hoje em dia, quando entro na Sala “Grande Área” do Museu do Futebol, no Estádio do Pacaembu, fico vislumbrando as imagens daqueles souvenires e artefatos expostos nas paredes em busca de encontrar, talvez, entre eles, a imagem reproduzida e ampliada de algum daqueles memoráveis botões. Aliás, quase cinco décadas mais tarde, já na fase “Sub 60”, eu ganharia alguns troféus e medalhas em torneios organizados pela Federação Mineira de Futebol de Mesa, na categoria “amador”, na Copa Mineirão de Futebol de Mesa, no Museu Brasileiro do Futebol, no Estádio do Mineirão, em Belo Horizonte: o 1º lugar em 2014, o 2º lugar em 2015 e o 4º lugar em 2016. Devido à curva descendente de desempenho, correspondente à curva ascendente do nível dos adversários, decidi pendurar a “palheta” em 2016… E vale à pena mencionar: disputei os torneios jogando com um conjunto de botões oficiais, com estampas e cores do Borussia Dortmund, da Alemanha.

Times de futebol de botão, anos 1960. Foto: Reprodução.

Voltando aos tempos do Tri, alguns lances e detalhes dos jogos da Seleção Brasileira na Copa de 1970 restaram em minha memória, os nomes dos dois estádios – o Jalisco em Guadalaraja e o Azteca na Cidade do México –, o goleiro uruguaio Mazurkievski e o drible desconcertante de Pelé no quase gol que entraria para a história do futebol mundial e que, décadas mais tarde, ganharia seu devido tratamento literário no romance O drible, de Sérgio Rodrigues. Mas também me lembro da cotovelada que Pelé deu naquele mesmo jogo em um zagueiro uruguaio, me lembro vagamente do jogo Peru x Brasil, do jogo contra a Romênia, e também do jogo contra a Inglaterra. O modo de narrar de Geraldo José de Almeida, que, à época eu não sabia como se chamava, também ficou guardado na memória, sobretudo os gols: “Goooolll sensacional de Jairziiiiiinhoooo!!!”

A imagem do famoso drible de Pelé, e a capa do romance de Sérgio Rodrigues, O drible (2013). Foto: Reprodução.

Todavia, o jogo do qual mais me recordo é o da final contra a Squadra Azzurra. Não por algum lance específico, mas por seu placar, e isso tem uma razão de ser: minha mãe havia assinado um bolão, organizado por vizinhos que moravam em frente a nossa casa, num casarão – à época, chamávamos de “casão” – que mais parecia a sede de um clube do que uma residência, uma espécie de “oásis” numa rua em declive acentuado, que variava de casas de classe média cada vez mais modestas até, já próximo do Ribeirão Verde – que seria canalizado anos mais tarde e daria lugar à Avenida Edgar Faço – ser tomada por casebres que sempre eram assolados pelas enchentes. Mas havia um detalhe naquela aposta para o Bolão: minha mãe indicara dois palpites, que revelam que ela, que nem gostava de futebol, como muita gente, estava otimista em relação a uma vitória do Brasil: 4×1, registrado em meu nome, e 5×1, em nome de minha irmã. Nos momentos finais daquela partida, quando Carlos Alberto fez o quarto gol, minha irmã e eu ficamos envolvidos em uma disputa pessoal, eu torcendo por um “cessar fogo” do ataque brasileiro, e ela torcendo para que o escrete brasileiro assinalasse mais um gol. Em suma: minha mãe acertou o palpite registrado em meu nome, e eu, sem ter plena consciência disso, torci para que o Brasil não fizesse o quinto gol, já chegava, já era campeão mundial pela terceira vez, não precisava exagerar…

Seleção brasileira postada durante hino nacional na Copa do Mundo 1970. Foto CBF

Ao final da partida, minha irmã e eu subimos na laje de casa, que deveria ser o futuro segundo andar de um sobrado que não se construiu… De lá, pudemos ver e ouvir em todas as partes os traçados no ar e os estouros dos rojões por toda a parte, uma comemoração só. Mas eu estava mais preocupado com a minha vitória pessoal, que não era minha, afinal, quem havia acertado o placar no bolão tinha sido minha mãe. Aliás, aquele foi um dos poucos momentos em que meu pé frio não se fez presente. E por falar em pé, ou melhor, pés, eles seriam contemplados com aquele bolão.

Calçado da marca Vulcabrás, anos 1970. Foto: Reprodução.

Assim, tratei de descer da laje e me plantar na porta de casa, mirando o “casão” do vizinho da frente – se me perguntarem como se chamava, não me recordo mais –, esperando que de lá saísse alguém que traria o saldo do bolão. E não tardou a virem trazer o valor arrecadado em dinheiro. Não me recordo mais qual o valor em cruzeiros, e nem se nas cédulas de cruzeiros estavam estampados os rostos de ilustres figuras como Duque de Caxias, Almirante Tamandaré, o Imperador Pedro II, o Marechal Deodoro da Fonseca, Getúlio Vargas, o Barão do Rio Branco, ou se já era época das novas cédulas com Pedro I, Pedro II, o Marechal Floriano Peixoto, Rui Barbosa, o Marechal Deodoro da Fonseca, Osvaldo Cruz e Santos Dumont, homens barbudos ou bigodudos que, aos poucos, se tornariam cada vez mais familiares nas datas cívicas. Mas me lembro bem do destino que minha mãe deu àquele dinheiro: a compra de um par de sapatos  Vulcabrás, pois o par que eu usava já estava bem gasto e não harmonizava mais com o uniforme da Escola Estadual Mathias Aires, onde eu estudava na segunda série do Primário. Assim, meus pés se alegraram mais uma vez: se a manteiga havia trazido uma bola nova, o bolão trouxera os calçados, e a Seleção Brasileira, para a alegria de uma imensa torcida – e também dos ditadores de plantão, como descobriria mais tarde –, trouxera o Tri.


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Elcio Loureiro Cornelsen

Membro Pesquisador do FULIA - Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, da UFMG.

Como citar

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Memórias do Tri, memórias de infância. Ludopédio, São Paulo, v. 137, n. 16, 2020.
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