07.3

Memórias sobre a conquista de 1958

Marcel Diego Tonini 13 de janeiro de 2010
“A memória qualifica a imaginação, dá-lhe uma
estrada, um horizonte, atribui sentido aos fatos, e
isso nos transforma em deuses criadores das
verdades em que queremos crer”.
N. Scott Momaday
No último mês de junho, o Brasil completou 50 anos da sua primeira conquista da Copa do Mundo, ocorrida em 1958 na Suécia. A importante data levou a imprensa esportiva brasileira e internacional a fazer inúmeras reportagens comemorativas, matérias especiais e programas que contaram com a participação de jogadores da época e de estudiosos do assunto.Um dos fatores mais lembrados por todos foi o grande peso e valor desse título, entre outros motivos, por ser o primeiro do Brasil. Afinal, além de não ter triunfado em nenhuma das cinco Copas anteriores, o Brasil vinha de duas fortes decepções: em 1950, a maior de todas da história do nosso futebol, nós perdêramos de virada a final em pleno Maracanã lotado para o Uruguai, após excelentes atuações ao longo do certame; e em 1954, quando o Brasil não soubera perder para a estupenda seleção húngara e fora desclassificado ainda nas quartas-de-final. Vejamos a recente declaração de Zito, volante do selecionado brasileiro na Copa da Suécia, quando questionado se a seleção de 1958 foi a melhor da história do nosso futebol:

Foi a melhor, porque foi a primeira que ganhou. Não dá para fazer relação comparando posição por posição, mas simplesmente minha opinião é que a seleção de 58 abriu o caminho para as outras, já que foi o primeiro campeonato do mundo que o Brasil ganhou. Não posso dizer que foi a melhor, mas sim a mais importante. (http://esporte.uol.com.br/futebol/copa58/enquete/).

Até 1958, nossa seleção de futebol era vista como um time que não sabia decidir e inferior racial e mentalmente. Não à toa, Nélson Rodrigues havia elaborado, depois da derrota de 1950, o “complexo de vira-latas”: “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol.” (1993, p. 52).

Nesse sentido, muitos lembraram tanto do relatório desenvolvido pela CBD como da matéria publicada no France Football. Segundo Mario Filho (2003, p. 320), o referido relatório foi desenvolvido por Flávio Costa em 1956, após uma excursão à Europa para conhecer o futebol praticado por lá. Não só o futebol dentro do campo seria avaliado, mas também o comportamento dos nossos atletas. O caso mais falado é o do jogador negro Sabará, que chocou senhoras londrinas em um pomposo salão de chá ao entrar de chinelo, macacão, gorro de marinheiro e toalha no ombro. Quanto ao temperamento dos atletas, concluiu-se que eram instáveis, emotivos, vulneráveis, frágeis e mal educados, especialmente os negros e mestiços.

De acordo com Gordon Júnior (1996, p. 74), a CBD seguiu as recomendações do técnico e procurou convocar, na medida do possível, atletas que não fossem negros e mestiços. Se olharmos as primeiras escalações na Copa de 1958, veremos que essa hipótese não é infundada e merece maior atenção. Afinal, o único negro na estréia era Didi, reconhecidamente um craque antes do campeonato, e o seu reserva imediato também era negro, o Moacir. Ou seja, era o único que não podia ser substituído por um jogador branco. Embora a comissão técnica e os dirigentes possam ter tido boas razões, em todos os outros casos em que houve essa possibilidade, o negro sempre foi preterido: De Sordi no lugar de Djalma Santos, Orlando no de Zózimo, Joel no de Garrincha, Dida no de Pelé e Mazola no de Vavá.

O conceituado periódico France Football, a poucos meses do início da Copa da Suécia, publicou um levantamento sobre as possibilidades dos 16 finalistas com base na técnica individual, sistema de jogo, capacidade tática, preparo físico e condição psicológica. Ainda que os analistas do semanário louvassem a técnica individual brasileira e reconhecessem as nossas virtudes nos três itens seguintes, o quesito condição psicológica contava negativamente para a seleção e, assim, o Brasil deveria chegar no máximo como sexta força daquela competição.

De fato não há como negar e deixar de enaltecer o feito daqueles jogadores que compuseram a seleção brasileira em 1958. Pois, tinham um retrospecto muito desfavorável, superaram o descrédito geral, enfrentaram as cobranças que vinham de todos os lados, avançaram diante de grandes adversários (Inglaterra, URSS, França e Suécia) e, se tudo isso ainda não fosse suficiente, encantaram o mundo com um futebol primoroso e, ao mesmo tempo, de resultado.

Em meio às comemorações do cinqüentenário, certas declarações chamaram-me a atenção. É interessante notar como cada vez mais as estatísticas e comparações têm sido produzidas acerca dos esportes, em especial do futebol, através da informatização dos dados. Tem havido uma ânsia constante por se buscar os melhores times e atletas (destruidor de jogadas, passador, aquele que faz o menor número de faltas etc.), e, com posse dessas informações, tem sido elaboradas comparações entre equipes e jogadores de épocas diferentes. Um exemplo disso é o caderno especial de esportes da Folha de S.Paulo a respeito da Copa de 1958, lançado em 29 de junho de 2008 (página 2).

Uma antiga polêmica foi novamente debatida com a recordação do primeiro título brasileiro: qual seleção brasileira foi a melhor da história? O site UOL até lançou uma enquête e fez essa pergunta a alguns jogadores, jornalistas e escritores. Houve aqueles que foram mais comedidos como ex-meia Dino Sani:

Todos os times foram completos, porque chegaram a ser campeões. Lógico que alguns tinham mais falhas, faltavam grandes jogadores, como os de 1958 e 1970. Mas é porque o futebol foi evoluindo, foi ganhando mais força e diminuindo a qualidade técnica. (http://esporte.uol.com.br/futebol/copa58/enquete/).

De modo geral, as respostas tenderam a ver a seleção de 1958 como a melhor de todos os tempos. Nesse sentido, a declaração de Mazola é bastante representativa:

Na minha opinião foi com certeza a seleção mais completa de todos os tempos. Tínhamos um dos maiores goleiros de todos os tempos, dois laterais fantásticos. O meio-campo e o ataque, então, nem preciso comentar. (http://esporte.uol.com.br/futebol/copa58/enquete/).

Contudo, foi a fala do Pelé a que teve maior repercussão e causou mais comentários. Não só por ele ser o maior atleta do século, mas certamente porque ele fez parte de duas das maiores seleções da história do futebol: a de 1958, que contou com craques como Gilmar, Nilton Santos, Djalma Santos, Didi e Garrincha, e a de 1970, composta por Carlos Alberto Torres, Gérson, Rivelino, Tostão, entre outros. Vejamos a declaração do Rei:

Individualmente, acho que a de 58 tinha muito mais jogadores que a de 70. Se você for ver, Didi, Nilton Santos, Garrincha, Pelé, Bellini, excelente em bola alta, Zito no meio. Se comparar o número de jogadores, 58 tinha a melhor equipe. (Folha de S.Paulo, 29 de junho de 2008, p. 4).

Meu próprio pai veio a mim e criticou tal declaração: “Ele passou a vida toda falando que a seleção de 70 era a melhor, incomparável e tudo mais, e agora vem com essa conversa!”. Independentemente de qual seleção brasileira tenha sido a mais técnica e completa, precisamos entender que este é um momento propício para que Pelé e outras pessoas digam que aquele time de 1958 foi o melhor. Um outro ponto importante é que não devemos confundir memória com história. Esclarecemos que memórias “são lembranças organizadas segundo uma lógica subjetiva que seleciona e articula elementos que nem sempre correspondem aos fatos concretos, objetivos e materiais.” (MEIHY, 2005, p. 63).

A memória é sempre dinâmica e mutável, sujeita às vicissitudes das circunstâncias. Ainda que não possamos mudar o que vivemos e experienciamos no passado, lembramos e contamos no presente sempre de modo diferente do que outras vezes, por mais que os fatos e acontecimentos narrados sejam os mesmos. Portanto, a memória não é algo dado e acabado. Ela é constantemente reelaborada por nós, assim como a nossa interpretação do passado em função do presente. Citamos, por fim, o historiador e oralista José Carlos Sebe Bom Meihy:

Sempre mudamos nossa forma de recordar e montamos esquemas narrativos dependentes de fatores externos a nós mesmos. Assim, por exemplo, de acordo com o público ouvinte, com o tempo disponível, com o ambiente físico ou com nosso estado de saúde, variamos as soluções, que vão desde a escolha das palavras até o peso dos fatos. (2005, p. 77).

Provavelmente, quando estivermos em 2020 e formos completar o cinqüentenário do tricampeonato mundial, ouviremos inúmeras declarações dizendo que aquela seleção foi a melhor da história, inclusive das pessoas que assim classificaram a seleção de 1958, como o próprio Pelé.

Bibliografia

MEIHY, José Carlos Sebe Bom Meihy. Manual de história oral. São Paulo: Loyola, 2005.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, 1999.

Jornal Folha de S. Paulo, 29 de junho de 2008, Caderno Especial de Esportes a respeito da conquista da Copa do Mundo de 1958.

Sites
http://esporte.uol.com.br/futebol/copa58/enquete/
http://www1.folha.uol.com.br/folha/esporte/ult92u416144.shtml

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marcel Diego Tonini

É doutor (2016) e mestre (2010) em História Social pela Universidade de São Paulo, sendo também bacharel (2006) e licenciado (2005) em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP - Campus de Araraquara). Integra o Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-USP) e o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS-USP). Tem experiência nas áreas de Ciências Sociais e História, com ênfase em Sociologia do Esporte, Relações Étnico-raciais, História Oral e História Sociocultural do Futebol, trabalhando principalmente com os seguintes temas: futebol, racismo, xenofobia, migração, memória e identidade.

Como citar

TONINI, Marcel Diego. Memórias sobre a conquista de 1958. Ludopédio, São Paulo, v. 07, n. 3, 2010.
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