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Meninos Bons de Bola: arte e ativismo em quadra, construindo a visibilidade trans no futebol

Maurício Rodrigues Pinto 21 de fevereiro de 2019

Em 29 de janeiro de 2004, o Departamento de DST, AIDS e Hepatites do Ministério da Saúde fazia o lançamento da campanha “Travesti e Respeito: já está na hora dos dois serem vistos juntos”. O evento realizado no Congresso Nacional, contou com a presença de travestis, homens e mulheres transexuais que participaram da elaboração daquela que seria uma das primeiras iniciativas com foco no respeito e na inclusão da população trans brasileira. Por essa razão, o 29 de janeiro é reconhecido como o Dia da Visibilidade Trans[1].

No futebol espetacularizado, tal visibilidade é praticamente inexistente. Este ano, o Esporte Clube Bahia, clube da Série A que criou um Núcleo de Ações Afirmativas e tem se destacado por campanhas e posicionamentos políticos progressistas[2], emitiu uma nota anunciando uma mudança no seu regimento formalizando o uso do nome social em todos os procedimentos administrativos do clube, o que significa que o nome social passa a ser reconhecido, por exemplo, no crachá, na carteira de sócio e no registro de funcionários e funcionárias do clube[3]. Ainda assim, nenhuma ação concreta foi feita por clubes e confederações com o propósito de incluir e acolher torcedores e torcedoras trans nos estádios de futebol.

Vale destacar que a Coligay – torcida transgressora do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, que foi a única torcida gay a marcar efetivamente presença nos estádios de futebol no Brasil – chegou a contar com a participação de travestis, segundo a pesquisadora Luiza Aguiar dos Anjos (2018)[4]. Ainda assim, prevalecia a visão de que a presença delas nas arquibancadas poderia ser entendida como uma “avacalhação”, dando margem para que a Coligay fosse atacada e perseguida nos estádios (GERCHMANN, 2014, p. 114).

Em meio a esse universo ainda muito pouco acolhedor, em agosto de 2016, o orientador socioeducativo Raphael Henrique Martins percebeu, à época, a quase inexistência de espaços de encontro e sociabilidade entre homens trans como ele, em uma cidade como São Paulo, a maior metrópole do país, onde acontece aquela que é considerada a maior Parada do Orgulho LGBT do planeta, que chega a reunir mais de dois milhões de pessoas.

Querendo reverter esse cenário, Raphael, são paulino e apaixonado por futebol, mobilizou canais de interação em redes sociais dirigidos para homens trans, convidando-os para uma partida de futebol. O encontro aconteceu em uma manhã de domingo em uma das quadras de futsal do Parque da Juventude, situado no bairro do Carandiru, em São Paulo, reunindo cerca de 30 homens trans. Assim, surgia o Meninos Bons de Bola – também conhecido como MBB – primeiro time de futebol formado exclusivamente por homens trans do país.

Meninos Bons de Bola. Foto: Cleciane Tomé.

Nesses mais de dois anos de existência do time, foram muitas as tentativas de negar o direito de existirem enquanto time e sujeitos. Por conta de intimidações e ameaças de violência física, o time se viu obrigado a deixar de treinar e jogar nas quadras do Parque da Juventude. O motivo: a transfobia de usuários (cisgêneros heterossexuais) regulares do espaço que não aceitaram compartilhar a quadra ou jogar junto com homens trans. Tal violência é parte de uma transfobia e heteronormatividade estruturais, que estabelecem a cisgeneridade e a heterossexualidade como normas e negam o direito de existência plena da população trans, contribuindo, assim, para que o Brasil infelizmente seja considerado o país mais violento e que mais mata pessoas trans em todo o mundo.

De acordo a ONG Trangender Europe, que realiza o levantamento de assassinatos de pessoas trans e não binárias em mais de 70 países, o Brasil é o país em que ocorre o maior número de assassinatos de pessoas trans em todo o mundo. O Dossiê dos Assassinatos e Violências, produzido pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), revela que, no ano de 2018, 163 pessoas trans foram assassinadas, sendo 158 travestis e mulheres transexuais, quatro homens trans e uma pessoa não binária. Tal violência é um dos desdobramentos do que Berenice Bento (2008) chama de “patologização da experiência” transexual:

São múltiplas as violências cometidas contra as pessoas transexuais. A patologização da experiência talvez seja a mais cruel, pois irradia a convicção de que são pessoas inferiores. Cruzar os limites do gênero é colocar-se em uma posição de risco. Quando se afirma que existe uma norma de gênero, deve-se pensar em regras, leis, interdições e punições. São corriqueiras as notícias de pessoas transexuais assassinadas sem que haja apuração e punição dos culpados. […] Nessa cruel taxonomia, casos de pessoas transexuais assassinadas ocupam a posição mais inferior. […] Essa taxonomia acaba (re)produzindo uma pedagogia da intolerância” (BENTO, 2008, 163-164).

Depois de algumas tentativas de realizar os treinos em outras quadras públicas da cidade, surgiu a parceria com o Sindicato dos Bancários, que disponibilizou a sua quadra nos domingos de manhã, situada na Sé, bairro da região central de São Paulo, possibilitando ao Meninos Bons de Bola ter um espaço acolhedor e seguro para os encontros e treinos do time, onde os meninos podem jogar bola e ser quem são, sem o temor de qualquer tipo de constrangimentos.

Meninos Bons de Bola durante o Amistoso da Visbilidade Trans, que aconteceu na Quadra dos Sindicato dos Bancários em 2019. Foto: Cleciane Tomé.

Além da preparação física e técnica para a disputa de jogos amistosos e torneios para os quais são convidados, os encontros semanais também servem para a realização de rodas de conversa e como um momento de socialização entre os integrantes do time, além de amigos e familiares que vão acompanhar os treinos. Raphael fala sobre a importância do time na socialização entre pessoas que ainda se veem muito invisibilizadas pela sociedade, definindo o MBB como uma família:

Depois da primeira partida, sentamos em círculo e cada um contou um pouco da sua história. Foi bem forte. Somos invisíveis ainda e temos necessidade de falar. Hoje, se um de nós compartilha pensamentos negativos, acolhemos. Damos bronca, parabéns, nos incentivamos. Nos tornamos uma família.(Raphael, Meninos Bons de Bola)[5].

Além dos treinos regulares, o time também disputa partidas amistosas contra times considerados aliados, festivais e torneios que contam com a participação de outros times inclusivos e LGBT. No mês de janeiro, para comemorar e promover a visibilidade dos homens trans nas quadras e nos campos de futebol, o Meninos Bons de Bola participou de duas ações.

No dia 20 de janeiro, o time foi convidado pelo SESC Pompeia a organizar um festival de futebol soçaite que contou com a participação de outras cinco equipes: Real Gothic, Natus F.C., Diversus F.C., Bárbaros e Rosanegra Ação Direta e Futebol. O MBB enfrentou o Rosanegra, time de futebol formado por homens e mulheres, e foi derrotado pelo placar de 9 a 1. Apesar da derrota, na ocasião foi gravado o clipe da música “Tô no Jogo”, rap que pode ser considerado um hino do Meninos Bons de Bola.

Já no dia 26 de janeiro, o MBB enfrentou o time do Sindicato dos Bancários, no Amistoso pela Resistência Trans. Nessa ocasião, o Meninos Bons de Bola foi a desforra e goleou a equipe adversária pelo placar de 9 a 1, mostrando que o time tem maior entrosamento e consegue melhor rendimento nos jogos de futsal.

Apesar disso, os placares são o menos importante quando se trata da trajetória de (re)existência do Meninos de Bons de Bola. O MBB é protagonista na construção da visibilidade trans no futebol e também se fez semente, sendo notícia em diversos canais de comunicação do Brasil e de outros países, inspirando também o surgimento de outro time formado por homens trans, o Transviver Futebol Clube, de Recife (PE), criado em julho de 2018[6].

O time vence e faz história ao ressignificar sentidos que o futebol tem para a população LGBT, em especial para as pessoas trans. Se ainda revela-se um universo muito hostil e violento para corpos e subjetividades tidas como dissonantes da norma que ainda reverencia uma masculinidade hegemônica cisgênera e heterossexual como a “natural” praticante do jogo, o Meninos Bons de Bola faz do futebol uma ferramenta de inclusão, importante para a construção identitária de homens trans, constituindo-se em um espaço de sociabilidade que faz com que eles se sintam mais seguros em relação à sua identidade de gênero e à vontade para expressarem quem são.

Meninos Bons de Bola. Foto: Cleciane Tomé.

Se os prognósticos para os tempos e contendas atuais mostram-se bastante desfavoráveis, em especial para grupos sociais historicamente subalternizados, a música-hino do Meninos Bons de Bola sintetiza a resistência da população trans brasileira, ensinando que apesar do placar desfavorável, o jogo ainda não terminou e que é preciso seguir jogando:

O foco nos motiva a nunca desistir

Vamos sempre lutar, persistir para existir

Buscando o nosso espaço e reconhecimento

Cada vitória alcançada faz valer o sofrimento

E os que desmotivam, deixo de escanteio

Preconceito não tem vez,

Aqui é cartão vermelho!

Nem tudo vai ser ouro, muito menos prata

Focados em fazer muitos gols de placa

Esse é o nosso compromisso e não vamos desistir

O importante não é ganhar, mas sempre competir

Na vitória ou na derrota,

Conquistando novos fãs

Meninos Bons de Bola

Somos todos homens trans!

Unidos por um sonho,

que é mais que um compromisso

Nosso corpo em quadra

É arte e ativismo…[7]

Bibliografia:

ANJOS, Luiza Aguiar dos. De ‘são bichas, mas são nossas’ à ‘diversidade da alegria’ – uma história da torcida Coligay. Tese (doutorado) Programa de Pós-Graduação em Ciência do Movimento Humano da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2018.

BENTO, Berenice. O que é transexualidade. São Paulo: Brasiliense, 2008. (Primeiros Passos).


[1] Sobre a história do Dia da Visibilidade Trans, ler “Por que elegemos o dia 29 de janeiro como o dia da Visibilidade Trans?”. Disponível em: http://paradasp.org.br/por-que-elegemos-o-dia-29-de-janeiro-como-o-dia-da-visibilidade-trans/.

[2] Para conhecer mais detalhadamente as ações afirmativas e as pautas progressistas encampadas pelo E.C.Bahia, ler a matéria “Bahia de todas as cores, classes, crenças e gêneros”, publicada pelo El Pais. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/20/deportes/1542753637_302970.html.

[3] A nota divulgada no site oficial do clube diz: “As pessoas trans existem, possuem planos de vida, amam, andam pelas ruas, possuem famílias, merecem cuidados, desejam e precisam atuar no mercado de trabalho. Incluir, garantir a dignidade, respeitar e acolher são obrigações emergenciais da sociedade, de seus indivíduos e das instituições. Hoje, 29 de janeiro de 2019, Dia Nacional da Visibilidade Trans, o Esporte Clube Bahia reafirma a sua luta por um mundo mais justo, humano e igual e anuncia o uso do nome social em todos os seus procedimentos administrativos, a partir desta data. Respeitaremos o nome social das pessoas trans sejam elas sócias do Bahia, sejam elas funcionárias do Bahia, sejam elas torcedoras do Bahia ou sejam elas torcedoras de outros clubes (ou de nenhum). O nome social passa a ser o nome oficial no crachá, na carteira de sócio e onde for necessária a exposição do nome da pessoa.” Disponível em: https://www.esporteclubebahia.com.br/nome-social/.

[4] Dentre as pessoas entrevistadas por Luiza que se apresentam como ex-integrantes da Coligay, vale destacar a presença de Marcelly, que acompanhou a torcida por um ano. Apesar de admitir que se sentia intimidada e que era muito difícil para uma travesti frequentar estádios de futebol, ela relata que durante o período que ia ao Estádio Olímpico (antigo estádio do Grêmio) na companhia da Coligay nunca viveu uma situação de preconceito (ANJOS, 2018, p. 108)

[5] A fala de Henrique foi extraída da reportagem “Transgêneros se unem para formar time de futebol e ‘família’ em SP”, produzida pelo portal de notícias G1, em 17/05/2017. A reportagem na íntegra está disponível em: <https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/transgeneros-se-unem-para-formar-time-de-futebol-e-familia-em-sp.ghtml>. Acesso em: 15 set. 2018.

[6] Sobre a história do Transviver, ler a matéria “Jogo da Vida: A história do primeiro time de futsal do Norte-Nordeste formado apenas por homens transexuais”, publicada pelo Diário de Pernambuco. Disponível em: http://blogs.diariodepernambuco.com.br/transformar/?doing_wp_cron=1549489313.5366399288177490234375.

[7] Trecho da música do “Tô no Jogo”, composta por  Mc Troi e Henrique Martins e interpretada por Henrique Martins. O clipe está disponível no site YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=QHNqTesGOME.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Maurício Rodrigues Pinto

Bacharel em História, pela Universidade de São Paulo (USP, com especialização em Sociopsicologia, na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e mestre pelo programa interdisciplinar Mudança Social e Participação Política, da USP. Corinthiano, no seu mestrado pesquisou masculinidades e a atuação de movimentos de torcedorxs contrários à homofobia e ao machismo no futebol brasileiro. Integrou o coletivo HLGBT (Histórias de Vida LGBT) e participou do projeto que resultou no livro “Histórias de Todas as Cores: Memórias Ilustradas LGBT”, projeto selecionado pelo Programa de Ação Cultural da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo (ProaC), no edital de Promoção das Manifestações Culturais com Temática LGBT.

Como citar

PINTO, Maurício Rodrigues. Meninos Bons de Bola: arte e ativismo em quadra, construindo a visibilidade trans no futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 116, n. 21, 2019.
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