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Meninos da Vila, rapazes do Futebol Clube do Porto (Juary e seus colegas)

Nas férias de inverno de 1979, mais uma vez, entre tantas que já tinham acontecido e que ainda aconteceriam, viajei com meus pais e meu irmão para São Paulo. Íamos de carro, sem cinto de segurança, tomando BR 101 e logo após sua congênere 116, a conhecida rodovia da morte. Era tudo muito perigoso, claro, a começar pelo péssimo asfalto e a mão-dupla de um ponto a outro do percurso. Saindo de Florianópolis, demorávamos dez ou doze horas, partindo geralmente de madrugada e chegando à casa dos avós na segunda metade da tarde. Meu pai detestava dirigir à noite.

Mas naquela quarta-feira fria nós chegamos, por algum motivo, um pouco mais tarde. Já era hora do evento que eu tanto esperava: a final do Campeonato Paulista de Futebol do ano anterior, que seria jogada entre o Santos e São Paulo. Era a terceira partida das finais referentes ao torneio do ano anterior, que se concluía depois de três turnos e um sem-número de jogos disputados por cada equipe. Calendários longuíssimos, com critérios de disputa confusos e incongruentes não eram incomuns. Naquele mesmo 1979, o campeão paulista viria a ser o Corinthians de Sócrates e dos inícios da Democracia Corinthiana.

Naquela final extemporânea, minha torcida era pelo Peixe – mesmo tendo ao meu lado o querido avô são-paulino, nós com o pai e o irmão frente à TV –, fascinado que estava pelos Meninos da Vila, em especial por um habilidoso meia chamado Pita, e por um igualmente jovem atacante, técnico e goleador, de nome Juary. Em uma equipe que foi se modificando ao longo do certame (pudera, com quase um ano de duração), o primeiro substituía Aílton Lira, titular nos primeiros meses, camisa 10 clássico que batia na bola como poucos, enquanto o segundo, com vinte e nove gols, seria o artilheiro da competição. Junto a eles estava o ponteiro-esquerdo João Paulo, driblador e mestre nos cruzamentos. Os toques rápidos, o jogo envolvente, a rapidez na conclusão das jogadas, me arrebataram para aquele time que fez o glorioso Santos campeão pela primeira vez depois da era Pelé.

Santos 1978
Fonte: reprodução

Oito anos depois, ainda jovem, mas não mais criança, visitei a cidade do Porto, na primeira vez em que estive na Europa. Saído havia poucos anos do pesadelo salazarista, Portugal contrastava com seus vizinhos europeus, tão diferentes na arquitetura e no urbanismo, na economia e nos costumes, no sebastianismo e nas expectativas para o futuro. Pois fora, no entanto, o Futebol Clube do Porto que levantara, na temporada recém-finda, a Taça dos Campeões da Europa, antecessora da atual ChampionsLeague. Na final os portugueses venceram o poderoso Bayern München (de Andreas Brehme e Lothar Mattäus, campeões da Copa de 1990) por dois a um, com um gol do craque argelino Rabah Madjer e outro, o decisivo, de um brasileiro que saíra do banco de reservas: Juary, que o time da Baixada lançara para o futebol e para o mundo.Junto com o ex-santista estavam mais dois brasileiros naquela histórica equipa campeã, o zagueiro Celso, titular absoluto, e Casagrande, que se lesionara no início da temporada, mas voltara a tempo de figurar entre os cinco suplentes do time na final.

Antes de chegar ao Norte de Portugal, Juary atuara no Atlas, do México, e em três equipes italianas, o Ascoli, onde foi ídolo, a Internazzionale e a Cremonese. Mas foram mesmo no Porto suas maiores façanhas, que incluem a conquista da Copa Intercontinental do mesmo 1987, desta vez vencendo o Peñarol campeão da Libertadores da América. Comandava o time uruguaio o longevo atual treinador da seleção de seu país, Óscar Tabárez, enquanto o atacante principal era Diego Aguirre, hoje treinador do Internacional de Porto Alegre onde, aliás, atuou como atleta. No Japão, novamente brilhou a estrela de Madjer, autor do gol da vitória por dois a um, marcado já na prorrogação. Juary viveu a aventura de ser campeão do mundo no banco de suplentes, enquanto seu compatriota, o zagueiro Geraldão, vindo do Cruzeiro, foi titular.

Juary
Juary na Inter de Milão em 1982. Foto: Wikipédia

Dos brasileiros que estiveram nas duas conquistas do Porto em 1987, é certo que Juary foi o grande destaque, coroando uma carreira de muito sucesso, mas que lhe rendeu poucas partidas pela seleção brasileira, o mesmo acontecendo com Geraldão. Celso, por sua vez, jamais vestiu a verde-amarela, mas compôs uma seleção mundial em jogo contra os melhores da Liga Inglesa. Foi em 1987, junto com Maradona, Platini e o também brasileiro Josimar, lateral-direito que se destacara na Copa do Mundo jogada no ano anterior, no México. Casagrande, por sua vez, frequentou o escrete por vários anos, disputando também o Mundial de 1986.

Por falar em Casagrande, às vezes ouço algum desafeto do comentarista perguntar onde ele teria atuado, como a questionar se estaria à altura das críticas que profere. A ponderação é em si mesma ilegítima, uma vez que o que precisa ser avaliado é se os argumentos que ele expressa são ou não consistentes. De qualquer forma, Casão jogou no Corinthians, São Paulo, Flamengo, Porto, Torino, seleção brasileira, tendo vencido uma Taça dos Campeões da Europa e disputado uma Copa ao lado de Zico, Sócrates e Júnior, entre outros feitos. É pouco?

Vinte e sete anos depois de Juary, um outro brasileiro brilhou pelo Porto na final da principal competição europeia. Contra o Mônaco, na moderníssima arena de Geselkirchen, casa do Schalke 04, na Alemanha. Omaestro dos portugueses foi Deco, mas quem abriu a contagem (que chegaria a 3 x 0) foi Carlos Alberto, aos dezenove anos de idade. Nos estertores de sua carreira, defendendo o Figueirense, eu o vi em campo. Era 2015 e ele ainda mostrava, em um ou outro momento, algo do grande jogador que foi, do craque que poderia ter sido. José Mourinho, o então jovem treinador que comandou o Porto na final de 2004, considera Carlos Alberto um dos mais agudos casos de desperdício de talento no futebol. Um brasileiro, como tantos, como nós, especialistas em desperdiçar a própria potência.

Ilha de Santa Catarina, novembro de 2021.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Meninos da Vila, rapazes do Futebol Clube do Porto (Juary e seus colegas). Ludopédio, São Paulo, v. 149, n. 8, 2021.
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